Crise hídrica: obras de anel rodoviário de R$ 6,8
bi afetam rios e nascentes em SP
Em visita a trecho em construção do Rodoanel em
área de preservação, reportagem encontrou vazamento de água drenada de uma
montanha por todo o canteiro de obras.
Em meio à mais grave crise hídrica já registrada
no Sudeste brasileiro, rios e nascentes que abasteceram a capital de São Paulo
até o início dos anos 1960 são alvo de desavenças entre governo estadual,
Ministério Público e ambientalistas.
Promotores do Ministério Público de São Paulo
(MP-SP) suspeitam de falhas em licenças ambientais relacionadas a um túnel que
desabou em dezembro no Trecho Norte do Rodoanel ─ rodovia de 44 quilômetros,
orçada em R$ 6,8 bilhões, que cruza áreas de preservação ambiental na Serra da
Cantareira.
Por meio de blogs, redes sociais e vídeos no
YouTube, a população local alega que mais de 100 nascentes teriam sido
soterradas durante a construção da rodovia. Entre pilares de concreto, aterros
e túneis, a reportagem flagrou um vazamento em uma nascente desviada pela
construção, além de acúmulo de sedimentos no fundo de córregos.
À BBC Brasil, a Secretaria de Transportes do
governo paulista negou soterramentos e reconheceu "efeitos
temporários" sobre as águas, que não fazem parte do Sistema Cantareira e
desembocam atualmente no rio Tietê.
Montagem mostra rio desviado por aterro construído para pistas do Rodoanel em área de preservação.
Montagem mostra rio desviado por aterro construído para pistas do Rodoanel em área de preservação.
"Vira esgoto e poderia ajudar no
abastecimento da cidade", reclamam moradores do Horto Florestal, bairro
vizinho à construção.
A administração de Geraldo Alckmin diz que
trabalha para "reduzir ao máximo o impacto residual da obra" ─ que
seria inaugurada neste ano mas foi adiada para o primeiro semestre de 2017.
Em entrevista à BBC Brasil, Laurence Casagrande,
presidente da Dersa (empresa de desenvolvimento rodoviário do governo
estadual), defendeu o empreendimento e afirmou que todas as investigações
anteriores do MP foram julgadas improcedentes pela Justiça paulista.
Responsabilidade do governo de São Paulo, a obra
tem apoio financeiro do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e do PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento), do governo federal.
‘Pequenos impactos’
Licenciado pela companhia de saneamento estadual
Cetesb e aprovado pelo Ibama, o trecho final do anel rodoviário não tem efeitos
diretos sobre os reservatórios do sistema Cantareira ─ mas recebe críticas por
seu impacto na bacia hidrográfica da região.
Imagem das obras no lote 5 do Rodoanel Norte - cronograma para término das obras, agora marcado para o primeiro semestre de 2017, foi alterado pela quarta vez.
Imagem das obras no lote 5 do Rodoanel Norte - cronograma para término das obras, agora marcado para o primeiro semestre de 2017, foi alterado pela quarta vez.
"A cada 50 metros existe uma pequena nascente
ali. A obra corta, e corta muito, os mananciais da serra", diz o
ambientalista Carlos Bocuhy, membro do Conselho Nacional de Meio Ambiente, em
Brasília.
O presidente da Dersa, responsável pela obra,
recebeu a reportagem da BBC Brasil em seu gabinete, no 10º andar de um edifício
na zona sul da cidade. Laurence Casagrande diz que a "Justiça comprovou a
regularidade do Rodoanel" e que discorda dos efeitos apontados pelo MP e
por entidades de defesa ambiental.
Obra do Rodoanel Norte está orçada em R$ 6,8 bilhões - construção do Rodoanel completo é tocada pelo governo de São Paulo há 17 anos.
Obra do Rodoanel Norte está orçada em R$ 6,8 bilhões - construção do Rodoanel completo é tocada pelo governo de São Paulo há 17 anos.
"Esta obra é exemplo internacional em
preservação", diz, em frente a um cartaz do empreendimento. "Não
estou dizendo que existe, mas se houver um soterramento de nascente, essa água
vai sair por algum lugar. Deixar isso acontecer poderia prejudicar a própria
obra."
O executivo ressalta o legado da rodovia.
"Vai haver alguma modificação? Sim, vai haver modificação. Ficará tudo
igual ao que era antes? Não, não vai ser tudo exatamente igual. Mas entende-se
que os benefícios que a obra traz compensam esses pequenos impactos, mesmo
aqueles que permaneçam", afirma Casagrande.
O trecho norte completa o projeto "Rodoanel
Mário Covas", autoestrada de 177 quilômetros, cuja construção começou em
1998 para aliviar o trânsito nas avenidas marginais que cruzam a cidade.
Segundo a Dersa, depois de pronta, a via em construção poderá retirar até 17 mil
caminhões que circulam todos os dias pela marginal Tietê.
Gota d’água
Governo do estado de São Paulo afirma que o traçado escolhido para o trecho "não prejudica mananciais de abastecimento".
Governo do estado de São Paulo afirma que o traçado escolhido para o trecho "não prejudica mananciais de abastecimento".
O governo do Estado de São Paulo afirma que o
traçado escolhido para o trecho "não prejudica mananciais de
abastecimento" (em referência às represas do sistema Cantareira).
O geólogo Antônio Manuel dos Santos Oliveira,
coordenador do Laboratório de Análise Geoambiental da Universidade de Guarulhos
- cidade atravessada por 53% do Trecho Norte do Rodoanel -, no entanto, afirma
que, diante da crise hídrica, todas as fontes de água disponíveis deveriam ser
aproveitadas.
"Hoje em dia cada gota d'água conta, não? Se
é recomendado que fechemos a torneira para escovar os dentes, seria bom que
estes pequenos recursos fossem privilegiados ao invés de sofrer com os impactos
de uma obra como esta", diz.
Entre as possibilidades de uso dos rios afetados
pela obra estaria a redistribuição do sistema de abastecimento em pequenos
reservatórios regionais. A iniciativa, segundo ambientalistas, poderia aliviar
o sistema Cantareira (hoje com 19% de sua capacidade máxima) e permitir diversidade
de fontes hídricas em tempos de seca.
Junto a moradores da região e à Dersa, a
reportagem da BBC Brasil visitou diferentes canteiros de obras ao redor da
Serra da Cantareira durante a última semana para verificar o estado dos rios
que cruzam a construção.
Engenheiros do governo e técnicos ambientais da
OAS, construtora responsável por dois trechos da obra, conduziram a visita ao
primeiro canteiro, no lote 2 do Rodoanel Norte. Ali, apresentaram ferramentas
como réguas para controle e medição de assoreamento em rios, caminhos e
tubulações de concreto para desvio de cursos d'água e plantações de mata ciliar
para proteção de córregos.
Túnel
A reportagem pediu para visitar a área que abriga
os destroços de um túnel que desabou em dezembro do ano passado dentro de uma
área de preservação permanente em Guarulhos.
Pilares se mesclam a árvores nas bordas da Serra da Cantareira, região norte de São Paulo.
Pilares se mesclam a árvores nas bordas da Serra da Cantareira, região norte de São Paulo.
Quatro meses depois do desabamento do túnel, as
obras estão paralisadas e não existe laudo apontando as causas do acidente.
Procurado, o IPT (Instituto de Pesquisa Tecnológicas), responsável pela
elaboração do laudo, disse que "os trabalhos das equipes naquele local
estão em andamento, não havendo até o momento previsão de prazo para conclusão
e entrega do relatório final".
Na área do túnel destruído, a BBC Brasil encontrou
cursos d’água cercados por morros aterrados por tratores, sem controle de
assoreamento. Um vazamento em frente aos destroços espalhava a água drenada de
dentro de um morro para o meio do canteiro de obras ─ surpresa também para os
técnicos que acompanhavam a visita.
Segundo Casagrande, os problemas encontrados pela
reportagem são temporários. "Esta é uma situação transitória, que precisa
ser consertada, e imagino que seja corrigida rapidamente", diz.
"Antes esse rio passava ali em cima. Era tudo mato, a gente tomava banho nele. Agora é só terra e não dá para molhar nem a canela", diz vizinha à obra.
"Antes esse rio passava ali em cima. Era tudo mato, a gente tomava banho nele. Agora é só terra e não dá para molhar nem a canela", diz vizinha à obra.
O presidente da Dersa lembra que todos os
canteiros de obras contam com fiscalização ambiental. "Se houvesse um
crime ambiental ali, a construção seria embargada", diz.
O promotor de Justiça Ricardo Manuel Castro, do
Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público de
SP, investiga os impactos ambientais da construção desde o período anterior ao
início da obra.
À BBC Brasil, por telefone, Castro disse que o
"desmoronamento pode ter ocorrido por insuficiência dos levantamentos que
ensejaram o registro ambiental". Daqui duas semanas, o promotor se reunirá
com o governo para "discutir os impactos decorrentes da paralisação (das
obras na região do túnel), impactos ambientais recorrentes dos desmatamentos já
feitos e a continuidade destas obras de impacto."
Água e barro
Ambientalista Elisa Puterman e o índio guarani Lenildo Wassu: "Esta cratera foi um rio que era usado pelos índios".
Ambientalista Elisa Puterman e o índio guarani Lenildo Wassu: "Esta cratera foi um rio que era usado pelos índios".
Em frente a um córrego de água barrenta que corria
pela lateral do aterro construído para a passagem das pistas, a reportagem
encontrou duas irmãs. "Antes esse rio passava ali em cima. Era tudo mato,
dava para tomar banho nele. Agora é só terra e não dá para molhar nem a
canela", diz uma delas.
A Dersa afirma que todos os desvios em rios são
autorizados pela Justiça. "Temos outorga para todas as interferências em
cursos d'água. Fazemos a intervenção e devolvemos na condição mais próxima
possível da original", diz o presidente da companhia.
Morador diz que nesta área existiam um córrego e uma nascente, que teriam sido aterrados.
Morador diz que nesta área existiam um córrego e uma nascente, que teriam sido aterrados.
"É preciso avaliar também que talvez parte
dessa diminuição venha da falta de chuva no ano passado e o morador não saiba
diferenciar", justifica Casagrande.
Inimiga feroz da obra, a editora e ambientalista
Elisa Puterman, que mora a poucos metros da construção, chora ao mostrar as
enormes pilastras que cortam a mata dos fundos de sua casa. "Estão
implodindo a Cantareira", diz. "Isto é uma área de preservação, ajuda
na umidade, no resfriamento da cidade. Veja aquele rio: era caudaloso, intenso.
Agora é só barro."
Junto ao índio guarani Lenildo Wassu, que mora em
uma reserva próxima, ela diz ter identificado uma das nascentes soterradas no
bairro Ponte Alta, em Guarulhos. Segundo a Dersa, a nascente registrada nas
fotos está localizada a "aproximadamente 25 metros ao sul do limite de
interferência da obra".
Após a publicação desta reportagem, a BBC Brasil
recebeu a seguinta mensagem da Dersa, publicada abaixo na íntegra:
Cabe à DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S/A
lamentar que algumas informações contidas na reportagem "Crise hídrica:
obras de anel rodoviário de R$ 6,8 bi afetam rios e nascentes em SP"
estejam bastante equivocadas, a começar pelo próprio título, que vincula as
obras do Rodoanel Norte à crise hídrica do sudeste brasileiro. Nenhum dos rios
ou nascentes que fazem parte da área onde o empreendimento é desenvolvido
integra qualquer sistema de fornecimento de água para a capital paulista ou
para qualquer outro município. O próprio texto, em seu primeiro parágrafo,
contraria o título ao tratar os mananciais ali existentes como "rios e nascentes
que abasteceram a capital de São Paulo até o início dos anos 1960",
portanto, há pelo menos meio século. Mesmo assim, vale reiterar ainda que
nenhum curso d'água foi soterrado em razão das obras, mas sim tratado e drenado
sem prejuízo definitivo. O que há são desvios transitórios até que o
empreendimento seja concluído. Há ainda na reportagem a sugestão de que um
vazamento poderia ter acarretado o desabamento de um túnel. Também é
absolutamente infundada. O pequeno vazamento constatado pela reportagem é
externo ao túnel, tem característica transitória e ocorreu em um dos tanques de
drenagem, construído exatamente para permitir o retorno dessa água, que tem
origem subterrânea, ao subsolo. (bbc)
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