O ciclo hidrológico é uma
democracia – um sistema de distribuição para todas as espécies vivas. Na falta
de democracia da água, não pode haver vida democrática. – Vandana Shiva, Les
femmes du Kerala contre Coca-Cola
The principle equitiy,
perhaps more than any other technical consideration, carries with it the
promise of a more water-secure world for all. – World Water Development Report
2015 (O princípio equidade, talvez mais do que qualquer outra consideração
técnica, traz consigo a promessa de um mundo mais seguro à água para todos. -
Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial da Água 2015)
Um
bom ponto de partida é o antropoceno, conceito que ajuda a entender a amplitude
do impacto do ser humano, este bípede irrequieto e capaz tanto de criar como de
destruir, sobre todo o planeta. De 1750 para cá, com os avanços tecnológicos e
a progressão demográfica, geramos uma nova era. O planeta está literalmente em
nossas mãos. Em 1900, quando nascia meu pai, éramos 1,5 bilhão de pessoas. Hoje
somos 7,3 bilhões, indo rapidamente para os 10. Esta comparação ajuda a
entender o ritmo histórico desta explosão demográfica, pois estamos pouco
acostumados a pensar o longo prazo. É muita gente, todos querendo consumir
mais, com tecnologias cada vez mais poderosas, tanto de extrair como de
transformar e contaminar. Esta mistura é tóxica, a não ser que aprendamos a nos
administrar de maneira coerente com as necessidades e possibilidades reais.
O relatório de 2014 do WWF resume o drama em uma frase: “Atualmente, a população global está cortando as árvores mais rápido do que podem crescer de novo, capturando peixes mais rápido do que os oceanos conseguem recompor os estoques, bombeando a água dos rios e dos aquíferos mais rápido do que as chuvas conseguem preenchê-los e emitindo mais dióxido de carbono que aquece o clima do que os oceanos e as florestas podem absorver.” Em 40 anos, entre 1970 e 2010, eliminamos 52% da vida selvagem do planeta, sendo que a destruição maior se deu no bioma de água doce, onde perdemos 75% da vida vertebrada.
O relatório de 2014 do WWF resume o drama em uma frase: “Atualmente, a população global está cortando as árvores mais rápido do que podem crescer de novo, capturando peixes mais rápido do que os oceanos conseguem recompor os estoques, bombeando a água dos rios e dos aquíferos mais rápido do que as chuvas conseguem preenchê-los e emitindo mais dióxido de carbono que aquece o clima do que os oceanos e as florestas podem absorver.” Em 40 anos, entre 1970 e 2010, eliminamos 52% da vida selvagem do planeta, sendo que a destruição maior se deu no bioma de água doce, onde perdemos 75% da vida vertebrada.
O
drama da água está diretamente associado à desigualdade e ao modelo geral de
desenvolvimento elitista que adotamos. O World Water Development Report 2015 da
UNESCO constata que “as mesmas pessoas que não têm acesso adequado à água e
saneamento é provável que não tenham acesso à eletricidade e dependam de
combustível sólido para cozinhar. Cerca de 748 milhões de pessoas não têm
acesso a fontes adequadas de água potável, ainda que o número de pessoas cujo
direito de acesso à água não é satisfeito possa chegar a 3 bilhões; 2,5 bilhões
de pessoas continuam sem acesso a um saneamento adequado. Mais de 1,3 bilhão de
pessoas não têm acesso à eletricidade, e cerca de 2,6 bilhões utilizam
combustíveis sólidos (essencialmente biomassa) para cozinhar. Estima-se que
outros 400 milhões de pessoas dependam de carvão para cozinhar e para
aquecimento, os quais, como a madeira, carvão vegetal e outras biomassas causam
poluição do ar e têm potencialmente implicações sérias para a saúde quando
usados em fogões tradicionais”.
De
tanto sucesso como espécie, estamos ameaçando não só a vida do planeta como
evidentemente a nós mesmos. Esta verdade elementar, de que a vida não pode se
resumir a cada um arrancar o quanto pode, mas que precisamos, numa inversão
radical, pensar em quanto contribuímos para o bem-estar de todos e para a saúde
da terra, resume a inversão de valores civilizatórios que temos pela frente.
Uma boa imagem, é que nesta pequena espaçonave terra não há passageiros, somos
todos tripulantes.
Um
estudo da situação da água doce no planeta não pode, neste sentido, resumir-se
aos aspectos técnicos. Há uma mudança cultural no horizonte, e esta depende
vitalmente de uma população informada sobre as ameaças. Não podemos deixar de
lembrar que no Brasil 97% dos domicílios têm televisão, onde horas a fio as
pessoas são bombardeadas por mensagens consumistas, por uma glorificação do
progresso material individual, pelo sucesso a qualquer preço. A própria lógica
de como a humanidade é informada está em jogo. Os Murdoch, os Marinhos do
planeta estão na linha de frente da irresponsabilidade. Uma informação que vive
da publicidade de empresas interessadas em aumentar o consumo desenfreado é um
contrassenso. Falar em liberdade de imprensa com este tipo de lastro de
interesses econômicos não faz muito sentido, e se trata de um elemento
essencial da equação.
Ao contrário do petróleo, onde se dividem muito as opiniões sobre as disponibilidades futuras, no caso da água há poucas dúvidas quanto à situação cada vez mais dramática que enfrentamos. As reservas de água do planeta são constituídas por 98% de água salgada e 2% de água doce. Destes 2%, 87% estão bloqueados nas calotas polares e geleiras, e a maior parte do que resta se encontra em águas subterrâneas, na atmosfera e nos organismos vivos. As reservas de água útil são portanto relativamente limitadas, e em muitas regiões do mundo se tornaram escassas. Hoje cerca de um quinto das pessoas no planeta não têm formas de acesso à água limpa minimamente aceitável. Não são pessoas com visibilidade midiática. É uma tragédia silenciosa que se vai avolumando, ao ritmo do esgotamento dos lençóis freáticos, do derretimento das geleiras que alimentam os rios, da destruição das matas ciliares, da contaminação química e bacteriológica.
Ao contrário do petróleo, onde se dividem muito as opiniões sobre as disponibilidades futuras, no caso da água há poucas dúvidas quanto à situação cada vez mais dramática que enfrentamos. As reservas de água do planeta são constituídas por 98% de água salgada e 2% de água doce. Destes 2%, 87% estão bloqueados nas calotas polares e geleiras, e a maior parte do que resta se encontra em águas subterrâneas, na atmosfera e nos organismos vivos. As reservas de água útil são portanto relativamente limitadas, e em muitas regiões do mundo se tornaram escassas. Hoje cerca de um quinto das pessoas no planeta não têm formas de acesso à água limpa minimamente aceitável. Não são pessoas com visibilidade midiática. É uma tragédia silenciosa que se vai avolumando, ao ritmo do esgotamento dos lençóis freáticos, do derretimento das geleiras que alimentam os rios, da destruição das matas ciliares, da contaminação química e bacteriológica.
A
escassez nos obriga a considerar a lógica econômica de água e saneamento vistos
como setor econômico, diretamente impactado pelo processo universal de
urbanização. No campo frequentemente o poço ou o rio resolvem, e a natureza
absorve os resíduos. Na cidade o ciclo da água constitui uma indústria. E
tratando-se de um recurso vital no sentido mais forte da palavra, a sua
monopolização privada pode gerar grandes lucros e maiores dramas. Para uma
empresa privada que tem um contrato de gestão de água e esgotos, aumentar o
consumo constitui fonte de lucro, e jogar esgotos no rio e no mar equivale a
transferir os custos para a sociedade. As externalidades aqui são fortíssimas
pelos impactos que gera na saúde e no desconforto da população.
Na
lógica do lucro, é a escassez que faz subir os preços. Um bem público e
amplamente disponível como o ar pode ser vital, mas não gera lucros. Quando
temos um setor público bem administrado que nos fornece água segura na
torneira, não compramos água em garrafas no supermercado. E um bem vital,
quando se torna privado e passa a obedecer à lógica perfeitamente legal de
maximização do lucro, só encontrará limites aos preços e à contaminação
ambiental nas explosões políticas, nas revoltas que já foram vistas em tantas
cidades. Em termos econômicos, a apropriação privada de um bem vital e de
oferta limitada não faz sentido. Coloca-se, portanto o desafio do desenho da
regulação e da gestão do bem mais importante para a vida e que está se tornando
escasso.
Do
ponto de vista do consumo, a maior parte vai para a agricultura, que consome
75% da água, enquanto a indústria consome 15% e o uso doméstico atinge 10%,
isto como ordens de grandeza, e com enormes variações regionais e locais.
Lester Brown resume o problema: “Bebemos em média quatro litros de água por
dia, tanto in natura quanto sob
forma de café, sucos refrigerantes, vinho e outras bebidas. Necessitamos, porém
de 2.000 litros de água para produzir o alimento consumido todo dia – 500 vezes
mais do que bebemos. A rigor, “comemos” 2.000 litros de água por dia. Cada novo
ser humano acrescentado à população mundial eleva drasticamente o consumo de
água.”
Além
disso, a água que utilizamos recolhe os defensivos químicos da agricultura
moderna, os resíduos industriais e os esgotos domésticos, e se mistura às
reservas existentes, gerando um efeito multiplicador de poluição de uma massa
de água incomparavelmente superior ao volume de consumo. Neste
sentido, a destruição do recurso pode constituir um problema maior do que o seu
consumo, o que reforça o absurdo da situação.
Se
acrescentarmos o gigantesco desperdício de água potável causado por uso
irresponsável ou por instalações deficientes, temos de constatar que nesta
área, das mais vitais para o futuro da humanidade, não se dispõe de
instrumentos institucionais minimamente compatíveis para a sua gestão. Temos
aqui um dos exemplos mais críticos da destruição dos bens comuns, tão bem
estudados por Elinor Ostrom no seu Governing
the Commons. A visão de Ostrom, aliás, é preciosa, pois apresenta
dezenas de exemplos de como em diferentes regiões do mundo, desde os dramas da Califórnia
rica até as complexas soluções dos produtores de arroz na Ásia, sempre foi
essencial a presença organizada das comunidades afetadas e a construção de
processos colaborativos inovadores, na linha de pactos do uso e tratamento
equilibrados entre os diferentes agentes sociais. Aqui estamos além da simples
polarização ideológica entre privatização ou estatização.
Uma
contribuição importante na mesma linha pode ser encontrada no estudo de Hilary
Wainwright: “Das lutas transnacionais muito efetivas contra a privatização da
água emergiu uma ideia inovadora de parceria público-público, ou público-civil,
em que as organizações públicas e organizações da sociedade civil que
administram serviços públicos colaboram por cima das fronteiras nacionais para
dividir experiências, colaborar na busca de financiamentos, e de maneira geral
para fortalecer o poder das instituições públicas e civis na gestão de serviços
e utilidades públicas. Este modelo público-público/público-civil está se
tornando uma ferramenta institucional cada vez mais central na luta contra a
privatização e na busca de uma gestão pública de alta qualidade”.
Tocamos
aqui um ponto essencial: um bem comum, distribuído de maneira tão desigual no
planeta e nos países, tão vital para a sobrevivência de todos, não pode ser
gerido sem uma participação negociada e minimamente equilibrada dos diversos
usuários. Se a água for vista apenas como um produto oferecido por um produtor
e que um consumidor compra, teremos um poder desmesurado de quem controla a
oferta, e do lado da demanda prevalecerá a lei do mais forte. Trata-se de um
bem comum cuja gestão funciona de maneira adequada apenas onde se construíram
pactos entre os diversos agentes interessados, tanto em termos de distribuição
como de restrições sistêmicas de consumo segundo as circunstâncias. É uma área
onde estamos condenados a aprender a colaborar, planejar e construir capital
social. E o homo sapiens nunca
foi um grande construtor de consensos.
No
caso do Brasil, onde tivemos durante os governos militares um êxodo rural
extremamente acelerado – diretamente vinculado não só às oportunidades nas
cidades, mas em particular pela violência do latifúndio e a recusa de uma
reforma agrária que teria fixado mais gente no campo – as periferias urbanas se
desenvolveram muito mais rapidamente do que as capacidades de assegurar as
infraestruturas correspondentes. O resultado é que num país relativamente
próspero, com uma renda média per capita da ordem de US 10.000 em 2013, temos
97,6% de domicílios com televisão e 99,4% com acesso à luz elétrica, mas apenas
60,4% com esgotamento adequado, cifra que cai para 34,8% nos 20% de domicílios
mais pobres. A frequente privatização, que privilegia a venda de água aos
grandes consumidores, na linha das economias de escala, e não pensa o recurso
como bem comum, apenas agrava os desequilíbrios herdados de políticas públicas
controladas por elites.
Pesa
também aqui uma visão deformada da prosperidade como acúmulo de bens
individuais relativamente aos bens públicos de consumo coletivo. Ter um
apartamento de luxo, hoje custando na faixa de 15 milhões de reais, mas não
poder abrir a janela pelo fedor que exala o rio Pinheiros, rio que um dia
seguramente poderá constituir um espaço de lazer e convívio, dá uma ideia do
desequilíbrio entre o patrimônio individual e o investimento social. Na
ausência do desenvolvimento equilibrado entre bens comuns e patrimônio
individual, criam-se guetos de riqueza como Alphaville, dimensão patológica de
ricos que se encastelam para estarem de certa forma acima do país em que vivem.
Assim
a desigualdade, e a obsessão dos ricos em criarem ilhas de prosperidade em vez
de espaços urbanos integrados e equilibrados de convívio deformam profundamente
as soluções propostas. O capital coletivo acumulado, sob a forma de ruas
arborizadas, de redes de energia enterradas, de rios limpos e margens
urbanizadas para o lazer, de infraestruturas de transporte de massa que reduzam
a pressão do automóvel individual, de ruas resgatadas para o pedestre, de
parques que nos assegurem o tempo e o ambiente para respirar a vida, tudo isto
faz parte de uma visão que foi em grande pare abandonada em proveito de ilhas
de riqueza individual.
Todo
investimento em capital coletivo, necessariamente apoiado em amplas iniciativas
públicas, é apresentado como gasto, como inchaço da máquina pública e assim por
diante. E os impostos correspondentes, como são óbvios, como um crime contra a
humanidade. Ao nos espelharmos na água, o que aparece é a burrice de uma
construção social desequilibrada. A água é, antes de tudo, um problema político
e social, mais do que técnico e econômico.
A
burrice é tanto maior quanto se trata justamente das opções mais caras. Rose
George realizou uma pesquisa extremamente interessante sobre o que ela chamou
de The Big Necessity, que leva
o ser humano a defecar sobre o planeta ao ritmo de 1,7 milhão de toneladas por
dia: “As pessoas com saneamento decente têm menos doenças e perdem menos dias
de trabalho, e não têm de gastar com funerais para as suas crianças mortas com
cólera ou disenteria. Economizam nos medicamentos, e o estado economiza com
tratamentos hospitalares caros. Cada dólar investido em saneamento traz um
retorno médio de $7 em gastos evitados com saúde e ganhos de produtividade”. O
estudo de Rose George é precioso e direto. Onde a ONU fala em “water related diseases” ela explicita
que se trata essencialmente de “shit-related
diseases”. Estamos falando de milhões de crianças que morrem todo ano
das doenças geradas. A burrice econômica e a ganância das elites têm também
enormes custos humanos.
Os
desmandos, naturalmente, não são particularmente brasileiros. No balanço feito
para a Rio+20 em 2012, constata-se que um “no ritmo atual de progresso, o mundo
não cumprirá o objetivo das Metas do Milênio de reduzir pela metade a proporção
de pessoas sem acesso ao saneamento adequado em 2015. Na realidade, no ritmo
atual de progresso será necessário esperar até 2049 para que 75% da população
global possam dispor de instalações sanitárias e outras formas de saneamento
adequado”.
São
Paulo nos oferece um exemplo de a que ponto se trata mais de um problema
político e de gestão do que de falta de água: convivemos com o absurdo de
torneiras secas e inundações. A região metropolitana de São Paulo constitui uma
mancha urbana da ordem de 30 por 50 quilômetros, ou seja, 1.500 km2.
Destes, cerca de 950 km2 foram impermeabilizados com cimento ou
asfalto. Para se ter uma ideia do problema, uma chuva de 50mm representa 75
milhões m3 de água buscando saída na “bacia” assim formada. Na
ausência de políticas planejadas, as respostas se dão segundo as pressões
pontuais de populações desesperadas com inundações e os interesses das
empreiteiras.
A
resposta será a canalização de um trecho de córrego, para atender à demanda de
um bairro e aos interesses das empreiteiras, o que evidentemente acelerará a
chegada da água para o bairro seguinte. O acúmulo deste tipo de soluções
transformou São Paulo num conjunto de “tobogãs” em que a água chega com grande
rapidez às partes mais baixas, e hoje mesmo uma chuva média paralisa a cidade.
O gigantesco funil que se forma deságua no Tietê, onde a capacidade de
escoamento se vê naturalmente ultrapassada, o que por sua vez resulta em novos
contratos com empresas de desassoreamento, e na construção de piscinões de
contenção.
As
alternativas são conhecidas: em vez de simples canalizações que aceleram o
fluxo da água, precisamos proteger as várzeas, recuperar a permeabilidade do
solo, rearborizar encostas e melhorar a retenção de água nas áreas
intermediárias. O problema central reside por tanto, uma vez mais, na geração
de instituições e mecanismos de decisão que permitam voltar a um mínimo de
racionalidade na alocação de recursos.
Em
termos econômicos, enquanto um produtor de camisas que vende caro demais será
substituído no mercado por produtores menos gananciosos ou mais produtivos,
inclusive de outros países, no caso da água limpa trata-se de um bem escasso,
que pertence a um espaço econômico local, e cuja demanda é muito inelástica: as
pessoas pagarão qualquer preço por um bem que é vital. Aqui, em termos
rigorosos, a escassez torna-se uma formidável fonte de lucros potenciais, e é
natural que o controle do setor seja visto com cada vez mais interesse pelas
corporações internacionais da água como Veolia ou Suez-Ondeo.
No
caso brasileiro, o setor terminou sendo controlado por uma associação
firmemente estruturada de empreiteiras, de companhias estaduais de água e
saneamento, de empresas de loteamento e de políticos corruptos, o que implica
que tampouco se devem ter ilusões sobre as orientações que presidirão à
manutenção do sistema público existente. Esta articulação perversa de interesses
permite às empreiteiras sobre faturar de maneira escandalosa as obras, o que
reduz drasticamente o volume de infraestruturas disponíveis, além de
privilegiar obras faraônicas de pouco sentido econômico; as companhias
estaduais passam a serem essencialmente vendedoras de água, desleixando o
saneamento, na medida em que vender água constitui hoje uma grande indústria e
permite financiar tanto o sobre faturamento das empreiteiras como a reeleição
dos políticos corruptos; e no espaço cada vez mais valorizado das cidades,
comprar antes os terrenos que serão dotados de infraestruturas constitui uma
tradição dos grupos ligados à especulação imobiliária. Como os políticos
eleitos pelo setor permitem manter a legislação existente, ou inclusive
alterá-la no sentido de uma privatização ainda maior, os nós do sistema ficam
bem amarrados.
Há
uma série de fatores que dificultam a regulação do setor. Primeiro, trata-se de
um setor extremamente capilar, no sentido de dever chegar a cada residência,
cada empresa, cada comércio, cada unidade agrícola. Segundo, trata-se de um
setor que funciona como sistema, onde a água usada de um usuário pode se tornar
a fonte de poluição para outro, onde a poluição do solo pode destruir as
reservas de água de toda uma região, onde uma urbanização mal planejada pode
destruir áreas de mananciais e a sobrevivência de outras regiões. Em terceiro
lugar, trata-se de interesses difusos, em que a disponibilidade da água é vista
como algo óbvio e natural. As pessoas têm dificuldades de entender como uma
ação simples como a de jogar um objeto na rua ou no córrego, multiplicada por
milhões de habitantes, torna-se um drama social e econômico.
É
preciso salientar também a que ponto o caráter recente da urbanização pesa na
cultura do setor, já que as pessoas ainda não assimilaram o fato que água
tratada entregue no domicílio ou na empresa é um produto caro e escasso, e não
têm consciência da dimensão sistêmica da problemática ambiental urbana.
Finalmente, não podemos deixar de enfrentar a guerra das grandes corporações
internacionais pela comodificação da água, que seria privatizada e o seu uso
restrito a quem por ela possa pagar, como no mercado do petróleo ou da madeira.
Pelos
desafios que apresenta a problemática da água tanto pode evoluir para situações
catastróficas como pode se tornar um vetor das formas mais modernas de gestão
sistêmica, indispensáveis para um desenvolvimento minimamente sustentável no
longo prazo. Alguns pontos-chave a se levar em consideração poderiam aqui ser
os seguintes:
# Desenvolver a capacidade de planejamento:
trata-se de um setor onde as soluções adequadas devem levar em conta o
desenvolvimento no longo prazo, e envolvem sistemas articulados de
infraestruturas complexas e caras. Não há “mão invisível” que resolva este tipo
de problema. Trata-se de um setor que por natureza exige forte presença do
setor público, com capacidade de ultrapassar estreitas divisões setoriais e
regionais para planejar em função da principal unidade espacial que é a bacia
hidrográfica.
# Privilegiar as ações preventivas: os
custos de recuperação de regiões poluídas são incomparavelmente mais elevados
do que a prevenção. É preciso manter ou resgatar a permeabilidade do solo,
controlar a poluição industrial, reduzir os desmatamentos, proteger os mananciais,
criar uma cultura de redução e reciclagem de lixo e assim por diante. A questão
da água permeia praticamente todos os grandes desafios ambientais.
# Privilegiar o enfoque integrado: uma
empresa do Estado que lida com água pode achar que o aprovisionamento de um
bairro ou de uma região não se justifica, sem ver que os custos adicionais de
saúde gerados para outro segmento do Estado podem tornar-se incomparavelmente
maiores. Empresas coletoras de lixo deixam de prestar o serviço em bairros de
difícil acesso, levando a uma maior poluição dos córregos e rios, e em última
instância a custos muito maiores de abastecimento em água segura. Uma visão
ampla de saneamento urbano, ou de cidade limpa e saudável, envolvendo tanto o
abastecimento de água, como esgoto, lixo, drenagem e controle de vetores é
essencial para que as políticas tenham algum sentido.
# Privilegiar os espaços locais de ação:
a integração efetiva das políticas exige que os diversos segmentos de atividade
hoje separados sejam coordenados em função de resultados sinérgicos no nível de
cada comunidade. Resgatar a cidadania nesta área implica trazer o nível de
decisão para o nível onde o cidadão conhece o efeito das políticas
empreendidas. Este princípio da proximidade é essencial, pois deve permitir que
o grande ausente das decisões, o usuário dos serviços, tenha o seu papel
resgatado. Os municípios, grandes ausentes do processo, têm aqui um papel
essencial a desempenhar. Inclusive, o resgate da capacidade de ação tanto do
nível estadual como do nível federal exige melhor capacidade de gestão na base
local de forma a encontrar um mínimo de contrapeso às articulações corruptas
hoje dominantes. A remunicipalização da gestão da água em cidades onde foi
privatizada, como Paris, é neste sentido interessante.
# Desenvolver parcerias: é essencial
romper a articulação perversa e clandestina que se formou pelas empreiteiras,
empresas estaduais de água e saneamento, especuladores imobiliários e políticos
fisiológicos, com negociatas a portas fechadas, e substituí-la por espaços
formais de elaboração de consensos, com representação dos usuários, das
empresas de consultoria, dos institutos de pesquisa, de organizações da
sociedade civil ativas no setor, para que as decisões possam refletir
efetivamente o interesse público. As articulações existentes não se rompem
simplesmente colocando “homens honestos” no lugar dos “desonestos”: trata-se de
mudar a lógica institucional, e neste plano nada como associar ao processo o
conjunto de novos atores sociais de uma sociedade moderna. Os estudos de
Wainwright mencionados, apontando parcerias entre o setor público e os
movimentos sociais, e não público-privadas apenas, abre visões inovadoras.
# Mudança cultural: a mudança em
profundidade do comportamento dos diversos atores sociais e da população em
geral não se obtém apenas com leis e regulamentos. Tornou-se absolutamente
vital uma melhor compreensão por parte da sociedade dos problemas estruturais
que vivemos, e orientar gradualmente os valores para a redução do desperdício,
para a preservação ambiental e outras atitudes essenciais para a nossa
sobrevivência. Dificilmente tais mudanças comportamentais serão conseguidas sem
uma efetiva participação dos meios de comunicação de massa que hoje não só não ajuda,
como fomentam ativamente o consumismo irresponsável, a filosofia da modernidade
de cimento e asfalto, a obsessão pelo transporte individual, a embalagem cara e
não reciclável que entulha as ruas e os córregos da cidade.
O
setor de água e saneamento, no sentido amplo que aqui lhe damos, não padece da
falta de conhecimentos técnicos ou de engenheiros, e o seu problema sequer é de
financiamento. É a dinâmica de regulação do setor que é completamente
inadequada, frente às relações técnicas que o caracterizam e às relações sociais
e ambientais de uma sociedade moderna. O eixo de transformações necessárias não
se circunscreve nem na estatização nem na privatização. Trata-se, antes de
tudo, da democratização dos processos de decisão. Aqui, como em outros setores,
a ausência desta democratização está acarretando gigantescos custos econômicos
e sociais para a sociedade.
Os
textos apresentados no presente volume, curtos e diretos, permitem um sobrevoo
deste drama em construção, cobrindo áreas tão variadas como a situação do
Brasil em geral e das metrópoles em particular, os dramas explosivos do oriente
médio ou de países africanos, o poder das multinacionais da água, as respostas
que vão desde as cisternas do Nordeste até os programas de remunicipalização da
água, as guerras pelo controle das reservas com grandes usuários e poluidores
corporativos, os pactos indispensáveis para a regulação adequada deste recurso
vital e cada vez mais escasso. (ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário