Crianças de comunidades vazanteiras sofrem com a crise do rio São Francisco
As
crianças encharcadas de meninice nos convidam a brincar no São Francisco, no
norte de Minas Gerais. Nascidas e crescidas ao lado de suas margens, elas
sabem, mesmo com a farra inventada, que o rio já não é o mesmo.
Arregaçamos nossas calças até os joelhos e entramos em um dos braços do
Velho Chico, utilizado pela comunidade do Quilombo da Lapinha, no município de
Matias Cardoso. E percebemos que as águas, de tão baixas, podem ser
atravessadas a pé sem muita dificuldade. Crislaine da Conceição, de 10 anos,
conta, brinca nas águas do São Francisco quase todos os dias. “Mas o rio está
muito baixo. Antes a água ficava aqui [põe a mão sinalizando a altura do
peito], agora está aqui [aponta para os pés]. Nem dá pra brincar mais como a
gente brincava antes”, diz.
Crislaine
é uma criança vazanteira, integrante de uma população tradicional que vive nas
áreas inundáveis do médio São Francisco. Nessas comunidades, o rio é parte da
casa e da vida de cada um. Todos os dias, crianças e adultos vão até ele para
pescar, tomar banho, usar suas águas para cozinhar e lavar utensílios. Mas, há
alguns anos, os vazanteiros vêm enfrentando dificuldades para produzir
mandioca, milho e feijão, devido à secura e à poluição do São Francisco. “O rio
significa para mim a minha vida. Sem o rio não sou ninguém”, diz Maria
Aparecida Paz, a Dinda, em sua casa no Quilombo da Lapinha. É seguida por
Dermira Borges, a Deca, que complementa: “É, o rio é um pedaço de nós. A gente
nasceu e se criou no São Francisco. Rio vivo, nós vivos. Rio morto, nós
mortos”.
Além
das dificuldades crescentes para o cultivo, os moradores se preocupam também
com a falta de peixes. “Antes era o seguinte. A mulher estava cozinhando, você
dizia: ‘Vou lá pegar o peixe’. Ia com a vara e o anzol, e na hora você já tinha
peixe pro almoço e pro jantar. Hoje é uma dificuldade muito grande para pescar.
Você chega até a margem do rio, olha, olha e não vê um peixe, nada”, lamenta
Manoel Ferreira de Souza, mais conhecido como Manuel Saruê, vazanteiro e
pescador.
As
comunidades vazanteiras combinam atividades de agricultura, pesca, criação animal
e extrativismo e se distribuem por território segundo os ciclos naturais das
águas, procurando manter acesso a regiões fertilizadas por matéria orgânica em
margens e ilhas. São chamados de “povos das terras e águas crescentes” porque
estão sempre acompanhando o rio, de modo a mudar suas casas e áreas de plantio
de acordo com os períodos de cheias e baixas do São Francisco.
Chegar
até eles é ser logo tomado pelas crianças que nos acolhem. Em meio às
conversas, meninos e meninas puxam nossas mãos, brincando e rindo, e logo nos
levam até o fundo de suas casas, onde mora o São Francisco.
Thaislaine
Rodrigues, de 11 anos, vive na ilha de Pau Preto, também pertencente ao
município de Matias Cardoso. Seu dia a dia é como o de toda criança. Às 6 horas
já está de pé, ainda sonolenta, mas animada com o dia que começa. Toma café e
vai para a aula, que diz ser tão divertida que quase não vê o tempo passar.
Quando volta, ajuda a mãe no almoço e na limpeza da casa. À tarde, faz seu
dever da escola e brinca com os irmãos, os gêmeos Gustavo e Breno, cinco anos
mais novos.
O
que faz diferir a rotina de Thaislaine da de tantas outras é a presença
silenciosa e constante do São Francisco, rolando suas águas no fundo do
quintal. O café tomado de manhã, tão logo a menina acorda, é feito com as águas
do rio, que também lavam a casa e são usadas para cozinhar o almoço da família.
Bem à vontade no São Francisco, ela conta que todos os dias vai até ele:
“Quando é 5 horas da manhã a água está tão morninha! É muito bom tomar banho aqui”.
As mudanças não passam despercebidas nem para seus olhos de criança. “O rio
está mais seco, cheio de areia. E tem muita coisa lá dentro, umas ostras que
não tinha antes. Coisas sujas”, diz.
O
Velho Chico em crise
O
São Francisco é o maior rio que “nasce” e “morre” em território brasileiro,
brotando na serra da Canastra, em Minas Gerais, e desaguando no oceano
Atlântico ao fim de seus 2.863 quilômetros de extensão. Sua bacia hidrográfica
abrange 503 municípios de seis estados – Minas Gerais (36,8%), Bahia (48,2%),
Pernambuco (10,9%), Alagoas (2,2%), Sergipe (1,2%) e Goiás (0,5%) – e o
Distrito Federal (0,2%). E suas águas passam pelos biomas do cerrado, caatinga
e mata atlântica, fazendo do Velho Chico fonte essencial para a vida de pessoas
e comunidades.
Há
alguns anos, cerca de 13 milhões de pessoas que vivem das águas do São
Francisco vêm notando que o seu Velho está diferente. Para Ruben Siqueira,
pesquisador e integrante da Articulação São Francisco Vivo, é uma evidência
“até para quem não quer ver” de que o rio está à míngua. “Temos
reservatório operando com o mínimo, uma
mancha negra que surgiu na baixa de Paulo Afonso, vários indícios de
crise”, disse. A
atual seca do São Francisco é considerada a pior dos últimos cem anos, o
que compromete o uso do rio como fonte de alimentação, higiene e transporte
pelas comunidades que vivem em seu entorno.
Em
junho, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco lançou a campanha “Eu viro a carranca pra
defender o Velho Chico”, como forma de chamar atenção para o momento
crítico. Claudio Pereira, coordenador da Câmara Consultiva Regional do Médio
São Francisco, lembra que a situação do rio já é denunciada há 30 anos. E a
crise atual é produto do abandono do problema. “O governo, nas escalas
municipal, estadual e federal, vê o rio como um recurso infinito e não percebe
que não se trata apenas de água, mas de um contexto social, cultural e
econômico vulnerável que pode a qualquer momento acabar. Além da escassez da
água, o rio sofre com o uso de agrotóxicos, produção agroindustrial, esgotos
domésticos e de grandes indústrias, demandas de irrigação… São interesses
econômicos que têm prevalecido em detrimento das capacidades e condições do rio
São Francisco.”
Em
relatório divulgado no ano passado, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas
traz levantamentos
sobre a situação do rio, examinado em 258 estações de monitoramento. Entre
2013 e 2014, a bacia do rio São Francisco aumentou em 3% o seu nível
hipereutrófico, o que caracteriza elevada concentração de matéria orgânica,
comprometendo o uso de suas águas. E registrou uma densidade de cianobactérias
superior a 50 mil células por mililitro (o valor máximo permitido para uso de
recreação e contato primário é de 10 mil células por mililitro). O São
Francisco está entre os que tiveram as piores condições em relação aos ensaios
ecotoxicológicos, que detectam efeitos tóxicos causados em organismos-teste.
Nas amostras utilizadas do rio, foi observada a letalidade dos organismos,
apontando para um “efeito agudo” de toxicidade, que pode estar associado a
esgotos domésticos e efluentes industriais.
Tão
logo ouvem a pergunta “o rio mudou?”, as crianças vazanteiras do Quilombo da
Lapinha disparam sua lista de impressões: “Está seco, muito baixo… Ele antes
era alto, não tinha mato no meio dele”, diz um grupo de meninos e meninas após
a brincadeira em suas margens. Em Pau Preto, caminhando na extensa praia que a
secura do rio deixou à mostra, Thaislaine conta que fez um trabalho na escola
sobre o São Francisco. “Eu também já fiz uma pesquisa aqui com a professora e
meus colegas. A gente queria ver como o rio está. E ele está muito poluído”,
diz. Sua mãe, Maria Edna Porto, reclama do mau cheiro das águas, que pode
sentir de sua casa. “É a primeira vez que eu vejo o rio desse jeito. Eu fico
preocupada porque por enquanto a gente tem água. Mas e daqui a uns dez anos? Se
o rio acabar, os vazanteiros não têm como sobreviver”, afirma.
Em
Pau Preto, a secura compromete o transporte por balsas – meio utilizado pelas
crianças para irem à escola. Agora, elas precisam acordar mais cedo para fazer
o caminho por terra, o que acrescenta pelo menos uma hora no percurso até a
aula. O nível das águas está tão baixo que muitas áreas guardam apenas uma
lembrança de já terem sido habitadas pelo rio, adivinhado na terra úmida e em
pequenas conchas encontradas no chão. Nessas áreas, praias extensas, Davi
Rodrigues toca seu gado a cavalo. Devido à dificuldade em manter a atividade de
pesca, o pai de Thaislaine precisou se dedicar à criação de animais para
sustentar a família.
“Por
que o rio São Francisco está tão seco e poluído?”, perguntamos às crianças
vazanteiras. E elas apontam a falta de chuva, típica do semiárido mineiro, como
motivo principal. Iudi Gonçalves, de 11 anos, indica outro possível motivo: “É
por causa dos empresários que tiram água da gente”, acredita. E Cícero Lima, da
articulação Vazanteiros em Movimento, dá razão ao menino: “Crise toda vida
teve, essa não é a primeira. O rio ficava seco, mas se recuperava. Hoje, pega
um metro de água de um afluente ou chuva, os projetos de irrigação tiram dois”,
diz.
O
projeto a que Cícero e Iudi se referem é o Jaíba, que, mesmo em face da
situação crítica do rio, segue desviando suas águas – mais especificamente,
410,3 milhões de metros cúbicos por ano. Em atuação há mais de 40 anos no norte
de Minas Gerais, o projeto de irrigação é criticado por movimentos
sociais, que denunciam a taxação desigual entre pequenos e grandes produtores.
Para
os vazanteiros, o projeto Jaíba é sinônimo de temores. Pouco se sabe das
consequências do desvio de águas de um rio em crise, do qual necessitam para
sua sobrevivência. Além disso, sua atuação já deixou marcas na vida do povo das
vazantes. Em sua política compensatória, o projeto significou a expulsão do seu
território tradicional, quando dezenas de famílias vazanteiras tiveram de sair
para que fossem criadas Unidades de Conservação.
Quando
preservar é excluir
Construído
para ser o maior projeto de irrigação da América Latina, o Jaíba possui mais de
18 mil produtores beneficiados no norte de Minas Gerais. Alguns de seus canais,
que utilizam águas do São Francisco, são maiores do que os próprios braços do
rio. Fruto da parceria entre os governos federal (Codevasf) e de Minas Gerais
(Ruralminas), sua implantação teve início nos anos 1950 e se expandiu durante
os anos 1970 com o empréstimo do Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento (Bird), instituição financeira do Banco Mundial.
De
lá para cá, foram quatro etapas de operação do projeto. Na segunda delas, no
final dos anos 1990, foi imposta uma política ambiental compensatória pelo
Banco Mundial, devido aos danos causados no cerrado brasileiro. Em outubro de
1998, os decretos 39.953/1998 e 39.954/1998 criaram, respectivamente, as
Unidades de Conservação dos parques Verde
Grande e Lagoa
do Cajueiro. E, em 2000, começou o processo de desapropriação das fazendas
que comporiam o parque.
O
que não se leva em conta, em todo o processo compensatório, é a existência de
comunidades que há séculos viviam naquela terra e que foram expulsas para a
construção dos parques. Nessa época, as comunidades tradicionais ainda não se
reconheciam como tal, mas a violação de direitos serviu de impulso para lutar
por eles. “Não existe comunidade tradicional sem território. A Constituição diz
que é dever do Estado proteger as manifestações culturais porque elas
contribuíram para o que o povo brasileiro é hoje, mas o Estado não cumpre essa
obrigação”, afirma André Souza, assessor jurídico do Centro de Agricultura
Alternativa do Norte de Minas, entidade de apoio aos direitos dos povos e
comunidades tradicionais.
No
Quilombo da Lapinha, cujos moradores se identificam como “vazanteiros
quilombolas”, o processo de autorreconhecimento se deu em 2005, certificado
pela Fundação Palmares. No ano seguinte, a comunidade iniciou sua primeira
retomada, recuperando área referente à Fazenda Casa Grande, de 4.000 hectares,
propriedade da empresa Farevasp. Em seu laudo antropológico, a comunidade se
identifica com um território equivalente a 7.720 hectares, que também
corresponde a parte da área do Parque Lagoa do Cajueiro. O Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dedica-se atualmente à elaboração do
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), previsto para o final
deste ano, após o qual será feita a identificação definitiva do território. A
assessoria do Incra não sabe informar quanto tempo levará até a titulação
definitiva do território do Quilombo da Lapinha.
Em
Pau Preto, o reconhecimento como “vazanteiros” não garantiu uma fundamentação
jurídica tão consistente como a dos quilombolas. A comunidade vazanteira
depende da assessoria jurídica de organizações e pessoas que buscam um caminho
para a regulação de seu território. Com esse apoio, realizou sua primeira
ocupação em julho de 2011, retomando a área da Fazenda Catelda, propriedade da
Agropecuária Catelda S.A. A partir daí, iniciaram-se reuniões de negociação
entre os vazanteiros e o Instituto Estadual de Florestas (IEF), órgão
responsável pelo Parque Verde Grande.
Essas
negociações já se estendem por oito anos. Para que a comunidade retorne
legalmente ao seu território de origem, é necessário um processo de desafetação
da área do Parque Verde Grande, mas o órgão responsável pela ação, o IEF,
negou-se oficialmente a realizá-la em parecer técnico divulgado em abril deste
ano. Procurado pela reportagem, o IEF não quis se pronunciar sobre o caso.
A
comunidade parte agora para a pressão política, com o apoio da Articulação
Rosalino de Povos e Comunidades de Tradicionais. “Eu costumo dizer que aqui
nesta região, sobretudo na comunidade de Pau Preto, é o povo da resistência, da
paciência e da esperança renovada”, diz Maria Zilah de Mattos, que há 18 anos
acompanha os vazanteiros pela Comissão Pastoral da Terra. “Eles falam: ‘Qual
vai ser o futuro dos nossos filhos amanhã se a gente não conseguir garantir o
peixe e o território?’. É um povo que sempre viveu sem nenhuma visibilidade e
teve sempre uma luta para permanecer aqui.”
Água
e terra são as principais reivindicações das comunidades tradicionais, que na
vida coletiva manejam os poucos recursos naturais de que dispõem. “Vocês tão
vendo essa beleza aqui nessa margem do rio? Pois é, se ainda existe isso aqui
agradece a Deus e a nós que estamos aqui. Porque, se os empresários estivessem
aqui, até o barulho do rio já estaria desmatado”, aponta Manuel Saruê. “Tem
hora que a gente fica até revoltado com esses tipos de lei que eles fazem, que
é contra o ser humano sobreviver naquela área.” A conservação do meio ambiente,
aliada ao acesso ao território pelas comunidades tradicionais, é garantida pela
Constituição Federal e pela Convenção da Biodiversidade, da qual o Brasil é
signatário. Apesar disso, a concepção conservacionista de órgãos estaduais em
Minas Gerais reforça a contradição entre homem e terra. “Esta é a grande
contradição e a revolta das comunidades. Se foram elas que preservaram, por que
agora têm que sair? Por que não há uma compatibilidade entre a comunidade e seu
modo de vida com a preservação ambiental?”, diz André Souza.
Para
os vazanteiros, o São Francisco é mais do que suas correntezas que passam:
chega a ser algo vivo. Até possui sua entidade protetora, o “cumpadre” do rio
(como é chamado), descrito como um homem negro de chapéu que mora dentro do São
Francisco e comanda suas águas, decidindo quem delas recebe peixes e cuidados.
As crianças tremem de medo tão logo ouvem falar do “cumpadre”, mas os adultos
já se acostumaram com ele. “Quando a gente era criança e ficava fazendo muita
farra no rio, minha vó falava: ‘Ei, pode parar. O rio tem dono! ’”, lembra
Dinda. “E tem umas coisas: você não entra de sandália dentro do rio. Tem que
pedir licença para entrar. Se estiver fumando, você tira um pouquinho do fumo e
joga no rio, para dar para o ‘cumpadre’. É uma ciência que a gente acostumou a
ter, de respeito com o rio.”
“Sem
água nós não vivemos”, sabem as crianças vazanteiras. Sem terra, tampouco.
Correndo e brincando nas águas do rio São Francisco, as crianças não sabem, mas
encarnam silenciosa dúvida para quem as observa: será que elas, quando adultas,
ainda levarão os saberes transmitidos no modo de tirar vida da água, contando
lendas sobre o “cumpadre”, firmando os pés em seu território, se reconhecendo
como seus pais se reconheciam? Será que – como o rio São Francisco – irão
resistir? (ecodebate)
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