Chave
de leitura da Encíclica Laudato Si (Louvado Sejas)
1.
Precedentes da “Louvado Sejas”.
Grande
parte da humanidade acompanha e sofre com a visível decadência do ambiente que
embasa a vida na face da Terra.
A
erosão da biodiversidade, a perda de solos agrícolas, a destruição dos
mananciais de água, o aquecimento global, com todas as consequências perversas
dessa depredação, já impactam milhões de pessoas ao redor do globo.
Especialistas,
movimentos sociais, organizações não governamentais, igrejas e uma multidão de
pessoas de “boa vontade” buscam e lutam por uma reação das autoridades e do
poder econômico à altura da demanda crucial dessa “mudança de época”.
Nas
bases das igrejas – sobretudo da Católica e confissões cristãs tradicionais –
há décadas as pessoas estão envolvidas com essas causas fundamentais para a
humanidade e a Terra.
Entretanto,
não havia uma resposta convincente a partir de um centro influente e irradiador
de uma boa nova.
Ao
final da 5ª Semana Social Brasileira os participantes tinham uma novidade.
Enviaram ao Papa Francisco uma carta pedindo que ele promovesse uma reflexão
global, quem sabe um encontro das grandes religiões, cientistas e povos
tradicionais, para ajudar a humanidade a se colocar diante da magnitude do
desafio. Fundamentalmente, que a Igreja se manifestasse pelo cuidado com a
criação que Deus nos deu.
Então,
certamente com outras solicitações e premido pela realidade, o Papa lança a
“Louvado Sejas”, recolhendo as reflexões, lutas socioambientais e a realidade
sofrida da parcela da humanidade já envolta com essas questões.
A
importância desse documento para a humanidade só o futuro dirá. Entretanto, o
bem que ela já causou é incomensurável.
Falando
para dentro e fora da Igreja, já despertou e aglutinou forças antes
impensáveis. Com a encíclica o Papa Francisco nos dá o sinal que faltava para
começar uma reação planetária à altura desses tempos assombrosos, mas também
esperançosos, que agora atravessamos.
2.
Orgânica.
A
“Louvado Sejas”, encíclica do Papa Francisco que tem como foco central a
questão ecológica, é tributária do chamado “pensamento complexo”, isto é,
aborda a realidade de forma sistêmica, orgânica, integral e integrada. Nenhuma
das dimensões da realidade – ecológica, econômica, política, social,
humanitária, pessoal-subjetiva, etc. – é desconsiderada.
Ainda
mais, são tidas como dimensões de uma mesma realidade.
Como
diz o Papa Francisco, não são várias crises, mas uma só que tem múltiplas
faces. Nesse sentido, é uma encíclica sem precedentes na história da Igreja.
3.
Guinada bíblica.
Do
ponto de vista bíblico a encíclica tira o foco do ”dominai e submetei” (Gen.
1,28) para o “cultivar e guardar”(Gen. 2,15). Essa guinada bíblica pode parecer
secundária, mas é fundamental. Qualquer cristão envolto com a questão ecológica
sabe que nos movimentos ambientalistas sempre houve a acusação que o mundo
judaico-cristão é o responsável por formar essa mentalidade que toda criação
está sujeita ao ser humano para que ele dela disponha como quiser. A
coisificação da natureza teria como base essa visão religiosa do mundo.
Essa
afirmação é verdadeira apenas em parte. Não se pode esquecer que a “idade da
razão iluminada”, sobretudo a partir do Renascimento, tendo como dois de seus
pilares Descartes e Francis Bacon, vai colocar a racionalidade humana, como
absoluta e dominadora da natureza.
Portanto,
a ênfase no cultivar e guardar muda os parâmetros do pensamento
bíblico-teológico. Afinal o cultivar é a economia, e o guardar é a ecologia.
Essas irmãs siamesas terão que se equilibrar para que as bases da vida
continuem, permitindo assim que o ser humano também possa continuar na face da
Terra.
Essa
postura é a superação do antropocentrismo. Que biblicamente o ser humano é
diferente dos demais seres da criação não resta dúvidas. Afinal, é o único
feito à imagem e semelhança de Deus. Mas, com a tarefa de cuidar da criação, de
nominá-la, não de destruí-la.
O
documento não avança sobre o tema da “aliança”. Mas, é apenas questão de tempo.
No futuro essa dimensão da aliança com toda a criação, não apenas com o ser
humano, terá que ser incluída nessa reflexão, já a partir do Antigo Testamento,
não apenas a partir de Paulo em Rom. 8, 19-23.
Quando
Noé sai da arca com seus familiares e animais, Deus diz que vai fazer uma
aliança com eles: “De minha parte vou estabelecer minha aliança convosco e com
vossa descendência, com todos os seres vivos que estão convosco, por todas as
gerações futuras. Ponho meu arco nas nuvens, como sinal de aliança entre mim e
a terra. Quando eu cobrir de nuvens a terra, aparecerá o arco-íris nas nuvens.
Então me lembrarei de minha aliança convosco e com todas as espécies de seres
vivos, e as águas não se tornarão mais um dilúvio para destruir toda carne.
Quando o arco-íris estiver nas nuvens, eu o contemplarei como recordação da
aliança eterna entre Deus e todas as espécies de seres vivos sobre a terra.
Deus disse a Noé: este é o sinal da aliança que estabeleço entre mim e toda a
carne sobre a terra” (Gen. 9, 8-17).
A
insistência repetitiva do Criador é que a aliança é com “toda a carne”. Inclui,
mas ultrapassa o ser humano. Portanto, com toda a criação.
Finalmente,
o Papa vai insistir que cada criatura vale em si mesma, não pelo valor
utilitário que possa ter ao ser humano.
Assim,
o ser humano passa a ser entendido como um ser que é natureza, que dela
depende, mas que pode ser o seu coração, a sua inteligência, com a finalidade –
mais uma vez – de a cultivar e guardar.
4.
Guinada teológica.
Sutilmente
o Papa vai raciocinar – a lógica fundante do raciocínio pertence a eles – dois
teólogos marginais dentro da história da Igreja: Duns Scoto e Teilhard de
Chardin (n. 83, rodapé). As referências explícitas são mínimas – nominalmente
outros são mais citados -, mas o espírito da encíclica está eivado do começo ao
fim por essas teologias.
A
teologia de Duns Scoto é a expressão máxima da teologia franciscana. Observando
Francisco, sendo seu discípulo, Duns Scoto vai desenvolver sua teologia no
primado do amor, não do pecado. Como tal, a valorização de toda a criação com
todas as suas criaturas.
Sua
afirmação central é que “Jesus viria mesmo sem o pecado humano”. Por detrás
dessa afirmação está a ideia central que o prólogo do evangelho de João vai
sintetizar, como Ele sendo o Alfa e o Ômega, princípio, meio e fim de toda
criação. Ele é a ponte entre o Criador e a criação – sentido mais profundo de
sacerdote -, ao mesmo tempo que eleva a humanidade à condição divina, Nele Deus
se faz ser humano para sempre.
Quando
acena a Teilhard de Chardin, na verdade legitima sua especulação da grande
síntese, do projeto único que vai da criação à plenitude dos tempos, o
“pleroma”. Enfim, não há dois projetos, não há duas cidades, mas um projeto
único em processo que chegará à sua plenitude. É a superação do dualismo das
“duas cidades” de Santo Agostinho.
Além
do mais, o cristianismo do Papa Francisco é libertário, encarnado e tem como
ponto de partida os mais pobres, entre eles a Mãe Terra.
5.
Guinada eclesiológica.
A
guinada eclesiológica de Francisco já estava clara na encíclica “Evangelho da
Alegria”, lançada pouco antes da “Louvado Sejas”.
Essa
guinada eclesiológica retirou a Igreja da posição defensiva na qual andava,
voltada para si mesma, tendo que defender-se de escândalos de várias ordens,
muitas vezes frequentando páginas policiais, para uma agenda positiva da Igreja
nesse século XXI.
Francisco
vai insistir na Igreja servidora, que seja falha, que seja enlameada, mas a
serviço da humanidade. Vai retomar a centralidade da misericórdia, não da
condenação.
Agora,
na “Louvado Sejas”, a Igreja sonhada por Francisco inclui a dimensão ecológica
como expressão do cuidado. A Igreja, então, como servidora da humanidade e da
criação.
6.
Leitura de época:
Com
esses elementos ele insere a Igreja nos grandes desafios socioambientais do
século XXI. Mais ainda, fala para dentro da Igreja e à toda a humanidade. Melhor
ainda, é ouvido e respeitado por cientistas, autoridades, movimentos sociais,
organizações não governamentais e autoridades ao redor do mundo. Passa a ser um
grande líder da humanidade nesse momento da história, de transição de época.
Torna-se um homem à altura de seu tempo e de seus desafios.
7.
Guinada na linguagem.
A
linguagem do Papa em suas encíclicas é coloquial e pastoral, mas sem descurar
da teologia e da espiritualidade.
No
lançamento da “Louvado Sejas” em Brasília, uma pessoa da plateia fez – em
outras palavras – a seguinte observação: “acho que fiquei mais inteligente
esses dias. Eu lia os documentos da Igreja e nada entendia. Li a “Louvado
Sejas” e acho que entendi tudo que o Papa quis dizer”.
Todos
sabem que a experiência pastoral acumulada por Francisco é fundamental no seu
comportamento como Papa, mas também no seu modo de falar e escrever.
Seus
textos são belos, vivenciais, carregados de vitalidade e até poéticos, sem
perder profecia e contundência. Só pela linguagem, seus documentos já são
diferentes de todos os demais, parecem com os próprios evangelhos, diferentes
da linguagem mais conceitual e abstrata dos documentos oficiais da Igreja.
8.
Metodologia: Ver, Julgar, Agir, Celebrar
A
encíclica segue a metodologia do Ver, Julgar e Agir, porém, acrescenta a
dimensão celebrativa. Além do mais, seu ver não é puramente sociológico, mas já
traz consigo um “olhar bíblico-teológico”, isto é, tenta ver a realidade com os
“olhos de Deus”. Portanto, um ver posicionado. E para Francisco o olhar de Deus
tem lugar e preferência, isto é, os mais pobres, excluídos, marginalizados em
todas as suas periferias, como a econômica, política, social e existencial.
9.
Documento de longo prazo.
Esse
é um documento pioneiro cujo espírito vai perdurar por muito tempo. Claro que
terá que sofrer adaptações conforme as circunstâncias forem mudando, mas seu
espírito fundamental vai permanecer.
Teremos,
sim, que responder às urgências de nosso tempo, mas esse é um documento que
estará com os cristãos e a humanidade enquanto perdurar essa mudança de época.
(ecodebate)
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