Lama
do rompimento das barragens em Mariana pavimentou rios por onde passou
Dano
é irreversível
A
avalanche de rejeitos gerada em Minas Gerais pelo rompimento de duas barragens
da mineradora Samarco, controlada pela Vale e a australiana BPH, causou danos
ambientais imensuráveis e irreversíveis. Apesar da lama não ter um teor tóxico,
ela pavimentou os mais de 500 km por onde passou devastando, com impacto ainda
difícil de calcular completamente para grande parte do ecossistema da região.
“Podemos dizer que 80% do que foi danificado lá é perda, não há como pensar em
um plano de recuperação ambiental”, explica Marcos Vinícius Polignano,
coordenador do Projeto Manuelzão. O projeto ambiental, da Universidade Federal
de Minas Gerais, monitora a atividade econômica e seus impactos ambientais nas
bacias hidrográficas e trabalha com a revitalização dos principais rios
mineiros.
Em
entrevista, ele afirmou que a mineração precisa ser reinventada: “Não podemos
continuar pensando que podemos fazer modelos do século XVIII em situações do
século XXI”.
Qual
a dimensão do estrago ambiental causado pelo rompimento das barragens?
É de
uma magnitude que eu diria imensurável a princípio. Há várias situações. A
extensão do dano é tal que estamos com a lama chegando na foz do Rio Doce, no
Estado do Espírito Santo, a mais de 500 km do local do rompimento da barragem.
A avalanche de lama rompeu e despejou cerca de 62 milhões m3 de
rejeitos. Apesar dessa lama não ter aparentemente uma composição tóxica do
ponto de vista químico, a densidade por si é altamente impactante, porque ela
foi fazendo um tsunami de rejeitos que por todos os lugares em que passou
devastou, matou e impactou. Uma mesma onda produziu três efeitos. Ela devastou,
já que arrebentou tudo que viu pela frente, ela impactou porque se consolidou,
não foi passageira, se espalhou ao longo de todo esse trajeto. Ela praticamente
produziu os três efeitos simultaneamente.
E
como fica o ecossistema?
A
onda foi pavimentando o trajeto, porque aquilo é uma massa com certa densidade,
não é essa lama de enchente que é mais rala, ela tem densidade e uma liga,
dessa forma foi pavimentando onde passou. Ela ocupou tanto o leito do curso
d’água como as margens. Dependendo da região, chegou a uma faixa de 50 a 100
metros para além da borda do rio. As comunidades que estavam no caminho
perderam todas as suas propriedades, perderam seu meio de vida, porque tinham
pequenos agricultores que tiveram as fazendas devastadas, sem contar todo o
prejuízo do ecossistema que substituído. Imagina que o ecossistema aquático foi
totalmente ocupado por esse material de rejeitos.
E
qual situação dos rios da região?
Esse
tsunami todo chegou rapidamente aos rios. A lama saiu de um afluente, que era o
Guaxalu, passou para o Rio do Carmo e atingiu o Doce que é o rio principal, que
configura a bacia. Então foi descendo rio abaixo, trazendo outros efeitos,
matando todos os peixes já que a densidade da lama retirou o oxigênio da água.
Há cenas chocantes de peixes pulando para fora da água. Um quadro absolutamente
tétrico, horrível, inimaginável. O rio Doce tinha uma biodiversidade bem
diversificada, cerca de 80 espécies diferentes. Todos os sistemas se
interligam, tem espécie no fundo do rio outro debaixo de pedra, isso foi tudo
alterado, são danos imensuráveis, porque o que perdeu em cada metro que a onda
passou é absurdo, você perdeu e terá um reflexo na qualidade e quantidade da
diversidade aquática que sobreviveu.
Há
uma previsão de recuperação do rio Doce?
No
caso do rio Doce, como ele é maior, como tem outros afluentes, isso ajuda na
recuperação. Acho que em 10 anos talvez ele consiga ter um padrão melhor, mas
mesmo assim, dada a dimensão, ainda é uma estimativa que não vai ter como
medir.
E as
comunidades ribeirinhas qual e extensão do dano?
Todas
as comunidades também ao longo do curso da água tiveram seu abastecimento
comprometidos. Quanto mais próximo do rompimento, maior o comprometimento.
Essas comunidades vão ficar sem água potável por um tempo que a gente ainda não
dá para calcular. Como a intensidade foi diminuindo ao longo do percurso,
existe uma tendência que o rio Doce em alguns pontos melhore essa qualidade de
uma forma mais rápida. Talvez no prazo de uma semana a água possa ser tratada e
distribuída para a população. Mas, em compensação, esse material foi todo
sedimentando ao longo do rio. E essa situação pode piorar no próximo período
das chuvas, já que grande parte do material que foi despejado pela lama de
resíduos vai ser levado para dentro do rio, contribuindo de uma forma
absolutamente incalculável para o assoreamento do rio Doce, de importância
nacional que esse ano já teve dificuldade para conseguir chegar até a foz nessa
época de seca.
Ou
seja a chuva criaria uma nova enxurrada de lama?
Sim,
pois a chuva vai lavar tudo que está pavimentado. Dessa forma, o monitoramento
das águas do rio Doce terão que ser muito frequentes para garantir a qualidade
da água e a saúde das pessoas que moram no entorno da região.
Há
alguma possibilidade de retirar essa lama concretada antes do período chuvoso?
Sem
chance. Imagina tirar 62 milhões m3 de resíduos que se
espalharam numa distância de mais de 100 km? Não há como retirar esse material,
nem para onde levar. Como isso foi feito ao longo do rio, há lugares que você
nem tem acesso. A realidade é que tivemos danos ambientais irreparáveis. Quem
vê dá televisão não tem dimensão da real situação do que foi essa situação.
Esses danos são irreversíveis. Podemos dizer que 80% do que foi danificado lá é
perda, não há como pensar em um plano de recuperação ambiental. Não existe.
Esse acidente vai ficar para sempre na história de Minas, será sempre uma
cicatriz da questão ambiental do Estado e um alerta para que realmente a gente
faça uma gestão ambiental comprometida com a vida e com o meio ambiente. A
economia é importante para gerar riqueza, mas ela não tem juízo. Se nós não
começarmos a ter mais juízo nessas práticas que a gente faz, nós não vamos ter
salvação. Imagina o custo disso além das perdas de vida, de ecossistema, o
próprio custo econômico para todos, inclusive para o próprio Estado, é
absolutamente impensável você continuar fazendo uma gestão temerária como temos
feito no meio ambiente ao longo da história.
Em
sua opinião falta fiscalização no setor?
Nos
últimos 14 anos, já tivemos cinco rompimentos de barragens de magnitude não tão
grande como essa, mas que foram impactantes. O que mostra que o nosso sistema
está equivocado. Primeiro de tudo temos que entender que isso não foi uma
fatalidade, não foi terremoto, cataclismo, isso diz de um projeto. E projetos
são de responsabilidade da empresa, isso diz da empresa e da falta de
monitoramento do Estado. Falta fiscalização, sim. Imagina em um desastre dessa
proporção não havia nenhum plano de contingência, sequer um alarme. Se não
fosse por pessoas heroicas anônimas que saíram correndo e avisando sobre o
rompimento das barragens, o número de vítimas seria absolutamente maior. Se tivesse
acontecido às 4h da manhã então, o efeito dessa tragédia teria quintuplicado.
Isso diz muito de uma insustentabilidade ambiental no Estado. Isso desmascara,
fala contra tudo aquilo que aparentemente se tenta produzir de propaganda e
efeito.
Mas
um acidente desse porte não existe apenas uma causa, o que tem é uma cadeia de
causas. O evento final pode ter sido uma fissura na barragem, mas começa lá
trás, no planejamento, no modelo de mineração, no monitoramento e na
fiscalização, tudo equivocado. Um conjunto de fatos tem que ser esclarecidos
para que Mariana não seja apenas mais um quadro na parede. Ou começamos outro
modelo ou vamos continuar enterrando biodiversidades, pessoas e histórias.
Isso
não foi uma fatalidade, não foi terremoto, cataclismo, isso diz de um projeto.
E
como mudar esse modelo do quais várias cidades são tão dependentes?
A
mineração precisa ser reinventada. Já há tecnologias novas e é preciso entender
que não se pode minerar em qualquer lugar. Mas acima de tudo, não podemos
continuar pensando que podemos fazer modelos do século XVIII em situações do
século XXI. (ecodebate)
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