“O Aquífero Guarani é visto como uma reserva de
água para o futuro, mas ele já é intensamente usado no Brasil há muitos anos, e
o pior, de maneira irresponsável, com pouca fiscalização de poços clandestinos,
poluição e exploração acima da capacidade de recarga das regiões”, afirma a
jornalista.
O
acordo que regula a utilização das águas do Aquífero
Guarani, assinado entre Argentina, Uruguai,
Paraguai e Brasil, “é o primeiro tratado do mundo sobre águas transfronteiriças
assinado sem que um conflito bélico ou diplomático estivesse em curso” e “se
destina, sobretudo, a determinar a titularidade do Aquífero Guarani, ou seja, dizer
quem são os únicos donos dessa reserva”, informa Cinthia Leone dos Santos em
entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Autora
da dissertação de mestrado intitulada “Aquífero
Guarani: atuação do Brasil na negociação do acordo”, Cinthia explica como aconteceram as negociações
entre os quatro países, incentivadas pelo Uruguai. Segundo ela, “o Brasil foi
membro que dificultou as negociações por temer ingerências dos outros três
envolvendo a gestão de sua parte do Aquífero”.
Cinthia
pontua que entre os pontos fracos do acordo, “o documento se dedica pouco à
proteção ambiental do Guarani e muito mais a dizer quem são os donos e como
eles podem dispor da água”.
Cinthia
Leone dos Santos é graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência
Ambiental – Procam, da Universidade de São Paulo. Atualmente é membro do Grupo
de Pesquisa Laboratório de Geografia Política – GEOPO e assessora de imprensa
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
IHU On-Line – Em que consiste o acordo que regula a utilização das águas do Aquífero Guarani? Quando e por quais razões ele foi elaborado?
IHU On-Line – Em que consiste o acordo que regula a utilização das águas do Aquífero Guarani? Quando e por quais razões ele foi elaborado?
Cinthia
Leone dos Santos - Ele é o primeiro tratado do mundo sobre águas transfronteiriças
assinado sem que um conflito bélico ou diplomático sobre ele estivesse em
curso. Ele se destina, sobretudo, a determinar a titularidade do Aquífero
Guarani, ou seja, dizer quem são os únicos donos dessa reserva. O documento
também exclui a possibilidade de que disputas sobre o Guarani sejam levadas ao
tribunal de Haia ou qualquer outro fórum internacional, indicando que essas
desavenças só poderiam ser discutidas em um fórum próprio.
IHU
On-Line – Como se deu a negociação deste acordo? Pode comentar e
explicar seus principais momentos?
Cinthia
Leone dos Santos - No momento em que as negociações sobre o acordo foram
iniciadas, havia um debate na comissão de direito internacional da ONU sobre a
titularidade dos Aquíferos transfronteiriços. Uma corrente de diplomatas
defendia que essas reservas fossem consideradas águas internacionais. A
motivação inicial para a criação do acordo foi, então, fazer um documento que
se opusesse a essa visão e antecipasse uma legislação sobre o tema. Por isso a
titularidade e a determinação de quem pode legislar sobre o Aquífero foram os
pontos fundamentais do documento.
IHU
On-Line – Como se deu a atuação do Brasil e dos representantes do
Uruguai, Argentina e Paraguai na negociação deste acordo? Que pontos cada um
dos países levantou durante a negociação?
Cinthia
Leone dos Santos – O Uruguai foi o país que buscou convencer os demais sobre a
necessidade do acordo. A Argentina estava excessivamente preocupada com
possíveis danos que uma parte poderia causar à outra e as disputas decorrentes
disso. O Paraguai não teve uma atuação tão expressiva. O Brasil foi membro que
dificultou as negociações por temer ingerências dos outros três envolvendo a
gestão de sua parte do Aquífero.
Localização do Aquífero Guarani
Localização do Aquífero Guarani
IHU
On-Line – Que informações técnicas subsidiaram o acordo?
Cinthia
Leone dos Santos - As informações técnicas vieram sobretudo do projeto SAG, realizado por estudiosos dos quatro países e financiados pelo
Banco Mundial. Com esse estudo foi possível saber, por exemplo, que a retirada
de água em um ponto do Aquífero não afeta a disponibilidade em outro ponto, no
país vizinho. Esse tipo de dado foi fundamental para que se pudesse ter um
tratado sobre o Guarani.
IHU
On-Line – Quais são os pontos fortes e os pontos fracos do acordo?
Cinthia
Leone dos Santos - Os pontos fortes foram esses que já destaquei. O ponto fraco
é que o documento se dedica pouco à proteção ambiental do Guarani e muito mais a dizer quem são os donos e como eles
podem dispor da água.
IHU
On-Line – Por que Argentina e Uruguai já ratificaram o acordo, enquanto
Brasil e Paraguai ainda não?
Cinthia
Leone dos Santos – Argentina e Uruguai se esforçaram pela obtenção do acordo,
conforme os documentos analisados pela minha dissertação. O Paraguai, para quem
o tema a princípio era neutro, viveu após a criação do tratado uma grande
turbulência política, com um golpe civil que destituiu o presidente e fez com
que o país fosse expulso do Mercosul. Essa expulsão indignou os que tomaram
posse por meio do golpe, e assim eles passaram a rejeitar no Congresso
diferentes projetos de lei relacionados a países do bloco como forma de
retaliação, e entre esses projetos estava o acordo Guarani. Ou seja, a não
ratificação por lá se deu pela contaminação do tema pela pauta política. Como,
desde então, a democracia paraguaia não se recuperou plenamente, não houve
espaço para uma nova discussão do tema.
No
Brasil, o que podemos é especular. Há quem defenda que o Congresso brasileiro
não teve tempo para levar o acordo à votação, mas sabendo que a diplomacia
brasileira considera a negociação do acordo um precedente negativo, como
mostram as correspondências diplomáticas e estudos sobre o episódio feitos pelo
próprio Itamaraty. Pode ser que o Ministério das Relações Exteriores – MRE tenha
recomendado a não ratificação. Mas, de novo, isso é especulação.
“Se
fosse ratificado, o acordo criaria um órgão capaz de centralizar dados
científicos e de gestão, inclusive para capitalização técnica de agentes
públicos”.
IHU
On-Line – Quais são os desdobramentos políticos e ambientais desse
acordo?
Cinthia
Leone dos Santos - Se fosse ratificado, o acordo criaria um órgão capaz de
centralizar dados científicos e de gestão, inclusive para capacitação técnica
de agentes públicos. Essa seria a principal consequência do ponto de vista
ambiental. No campo político, os documentos mostram que os diplomatas
brasileiros veem no episódio precedente negativo no que diz respeito à
ingerência dos vizinhos. Ou seja, ele pode influenciar negativamente futuras
discussões sobre recursos naturais transfronteiriços
IHU
On-Line – Deseja acrescentar algo?
Cinthia
Leone dos Santos - O Aquífero Guarani é visto como uma reserva de água para o “futuro”, mas
ele já é intensamente usado no Brasil há muitos anos, e o pior, de maneira
irresponsável, com pouca fiscalização de poços clandestinos, poluição e
exploração acima da capacidade de recarga das regiões.
Durante
as negociações, o Brasil demonstrou que teme ingerência estrangeira sobre sua
porção do sistema Aquífero Guarani, incluindo uma desconfiança contra os outros
donos do Guarani. Ainda sobrevive uma ideia de que alguém quer tomar nossa
enorme porção de água, mas a grande ameaça ao Aquífero hoje é a nossa própria
gestão irregular. (ecodebate)
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