Esquema,
em corte vertical, dos aquíferos de Recife: consumo descontrolado está forçando
a entrada de águas do mar e de águas salobras de aquíferos superficiais, com
risco de degradação irremediável.
Se
utilizadas com critério, as águas subterrâneas podem ser um importante recurso
complementar para o enfrentamento da crise hídrica. No entanto, a perfuração
indiscriminada de poços e o consumo excessivo estão levando os aquíferos da
Região Metropolitana de Recife ao limite de uma salinização irreversível. Ao
mesmo tempo, os aquíferos da Região Metropolitana de São Paulo – que poderiam,
com baixo investimento e em prazo relativamente curto, proporcionar um aporte
adicional de 1 metro cúbico de água boa por segundo – encontram-se
subutilizados. O duplo alerta foi feito pelo pesquisador Ricardo Hirata, do
Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas-USP) do Instituto de
Geociências da Universidade de São Paulo.
O estudo
sobre a situação de Recife foi coordenado por Hirata em Projeto Temático
apoiado pela FAPESP: “Projeto Coqueiral: desafios
associados à qualidade da água em Recife: como enfrentar a contaminação e a
salinização das águas subterrâneas sob a perspectiva de mudança ambiental
global e seu contexto social”.
Já o
estudo sobre a situação de São Paulo foi publicado por ele e colaboradores na
Revista DAE, mantida pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de
São Paulo): “Água subterrânea para abastecimento público na Região
Metropolitana de São Paulo: é possível utilizá-la em larga escala?”.
Aquíferos
de Recife: consumo e salinização
“Na contabilidade oficial, a água subterrânea
atende a 13% do abastecimento público da Região Metropolitana de Recife. Mas,
quando consideramos os 14 mil poços existentes na região, que cobrem as falhas
no fornecimento público, descobrimos que esse número está subestimado. A água
subterrânea atende de fato a 28% do consumo”, disse Hirata à Agência FAPESP.
“Milhares
de poços foram perfurados sem respeito aos critérios técnicos e sem controle
por parte administração pública. Não me refiro apenas poços de pouca
profundidade nos bairros pobres, mas também a poços tubulares de mais de 100
metros, os chamados ‘artesianos’, em condomínios ricos como os dos bairros de
Boa Viagem e Pina. Em consequência disso, os aquíferos encontram-se agora
seriamente ameaçados, com intrusão de água do mar e início de salinização. Se
persistir o ritmo atual de bombeamento, os aquíferos poderão estar
irremediavelmente perdidos por volta de 2035”, prosseguiu o pesquisador.
Segundo
dados levantados pelo Projeto Coqueiral, 70% dos poços de Recife são ilegais. E
a zona sul da região metropolitana, onde reside a população de alta renda,
concentra o maior número de poços tubulares privados do país. Houve um aumento
dramático da perfuração durante a grande estiagem de 1997/98. A situação é
agravada pelo comércio de água por meio de carros-pipa, que se tornou um
negócio altamente rentável na cidade. Os proprietários dos veículos enchem os
tanques com água de poço e saem vendendo nos condomínios. “Recife vive a típica
‘tragédia dos comuns’, quando a soma das soluções individuais [perfuração de
poços] acarreta um problema para todos [superexploração dos aquíferos]”,
comentou Hirata.
O
bombeamento desmedido ameaça fazer agora aquilo que uma elevação de quatro
metros do nível do mar, ocorrida há cerca de 5 mil anos, não conseguiu fazer:
salinizar os aquíferos. “Fizemos a datação da água dos aquíferos profundos por
meio do teste do carbono 14 [que estabelece a data do material pela proporção
entre os isótopos 14 e 12 do carbono presentes na amostra]. E descobrimos que
essa água é doce e pura há mais de 18 mil anos. Sabemos que, há cerca de 7 mil
anos, o mar começou a subir. E atingiu seu nível máximo, quatro metros acima do
atual, por volta de 5 mil anos atrás. Mas o decorrente avanço do oceano para o
interior da área continental não foi suficiente para alcançar a área de recarga
dos aquíferos. Por isso, eles não foram salinizados”, informou o pesquisador.
Essa
área de recarga é uma elevação topográfica, de rochas do embasamento
cristalino, existente na região serrana que fica a oeste de Recife. É por ela
que as águas das chuvas, que se infiltram no solo, entram nos aquíferos. Se, no
último grande avanço, o mar tivesse chegado até essa região, os aquíferos
teriam sido salinizados. Mas isso não aconteceu.
De
fato, houve uma salinização em época anterior, há cerca de 120 mil anos, quanto
o nível do oceano esteve muito mais alto. Mas, com a continuidade do processo
de recarga, novas águas doces despejadas pelas chuvas foram se infiltrando nos
aquíferos ao longo de milênios, empurrando a água salgada através do aquitarde
(rochas de baixa permeabilidade, associadas às formações Paraíso e Estiva), até
a área de descarga no fundo do mar.
“Existe
um movimento natural de oeste para leste. As águas novas entram nos aquíferos
na área de recarga, e saem no mar. Esse mecanismo faz com que a idade das águas
subterrâneas seja crescente de oeste para leste. Elas são mais jovens perto da
serra e mais velhas perto da costa. Mas esse ciclo está sendo comprometido
agora pelo bombeamento excessivo, que diminui as cargas hidráulicas da água
doce no interior dos aquíferos e possibilita a intrusão da água salgada”,
explicou Hirata.
Projeto
Coqueiral
Segundo
o pesquisador, conduzir o Projeto Coqueiral foi como montar um grande
quebra-cabeças. A pesquisa integrou estudos nas áreas de geologia,
hidrogeologia, macrossociologia (urbanização e política institucional de gestão
da água), mesossociologia (percepções e participações coletivas no manejo da
água) e microssociologia (práticas individuais relativas ao uso da água).
Muitas informações sobre o passado remoto, relativas à evolução do nível do mar
ou às variações do clima regional, ficaram registradas nas águas subterrâneas.
E foram recuperadas por meio de miríades de análises.
Por
exemplo, o conhecimento de que houve uma intrusão de água salgada no passado
remoto foi possível porque se sabe que, nos processos de salinização e
dessalinização, muito frequentes em aquíferos, existe uma troca de cátions, que
fica registrada na água. Foi esse registro que permitiu constatar a ocorrência
de uma salinização do aquífero e de uma posterior “lavagem” (freshening) com
água doce. “Como a última grande ingressão do mar no continente capaz de causar
tal salinização aconteceu há 120 mil anos, acreditamos que, desde então, o
aquífero está sendo dessalinizado. E, como as águas atuais são doces, e foram
datadas pelo carbono 14 com idades variando de 8 a 18 mil anos – portanto,
muito anteriores à época da mais recente elevação do nível do mar –, pudemos
deduzir que, nessa segunda ocorrência, não houve salinização. Isso é
consistente com outro dado, que é o fato de que uma elevação de quatro metros
não é suficiente para que o avanço do mar terra adentro chegue até a área de
recarga”, detalhou Hirata.
Pela
medição da quantidade de gases nobres dissolvidos na água atual, foi possível
determinar também qual era a temperatura da água na época da recarga, isto é, a
temperatura da água há cerca de 18 mil anos. “Atualmente, a temperatura média
de Recife é de 25,5º C. A temperatura média na época da recarga era 15º C. Ou
seja, a região encontrava-se, então, 10 graus mais fria – o que corroborou
outras estimativas sobre o clima da época, associado ao final de uma glaciação.
Já as idades recentes das águas de aquíferos mais rasos foram confirmadas pela
análise de gases CFCs e SF6, presentes somente em águas com menos de 60 anos.
Foram muitas variáveis que, medidas, ajudaram a montar o quebra-cabeças”,
afirmou o pesquisador.
As
águas subterrâneas de Recife estão distribuídas em três grandes estoques: Boa
Viagem, um aquífero pouco profundo e livre, vulnerável à salinização e à
contaminação, amplamente utilizado pela população pobre; Beberibe, um aquífero
profundo e confinado, usado no abastecimento público e industrial; e Cabo,
outro aquífero profundo e confinado, usado no abastecimento privado residencial
da população de maior poder econômico.
O
sobreconsumo atual está salinizando não apenas o aquífero superficial, mas também
os aquíferos profundos. “O bombeamento intensivo tem mudado a direção e o
sentido dos fluxos de água subterrâneos. Uma parte da água que chega agora aos
aquíferos profundos vem de unidades mais rasas, pela indução da recarga por
meio de fluxos verticais descendentes através do aquitarde, e também do oceano,
pelo deslocamento horizontal de leste para oeste”, explicou Hirata.
A
quantificação desse fenômeno e relação precisa entre a taxa de extração de água
e a taxa de recarga com água doce são as variáveis que os pesquisadores
pretendem agora determinar, com o aperfeiçoamento da modelagem numérica.
Aquíferos
de São Paulo: potencial subutilizado
Assim
como em Recife, também na Região Metropolitana de São Paulo existem dois tipos
de estoques de água subterrânea: o aquífero sedimentar, localizado em áreas em
que o relevo é mais suave; e o aquífero cristalino, que se estende abaixo do
aquífero sedimentar e aflora em locais onde o relevo é mais acidentado. “É essa
água subterrânea que também dilui os esgotos lançados nos rios, sustenta a vida
aquática e recarrega os reservatórios superficiais de abastecimento público em
épocas de estiagem”, informou Hirata.
“Nas
áreas de baixa ocupação urbana, mais permeáveis, predomina a recarga natural
por chuvas; nas áreas mais impermeabilizadas e de forte urbanização, as fugas
das redes públicas de distribuição, da coletora de esgotos e das galerias
pluviais podem representar mais de 50% da recarga dos aquíferos”, escreveram os
pesquisadores no artigo publicado na Revista DAE.
O
volume de água de recarga que se infiltra anualmente nos aquíferos da Bacia do
Alto Tietê é estimado em 53 m3/s. Desse montante, 33 m3/s
poderiam ser captados de forma segura por meio de poços profundos, sem
interferir no fluxo de base dos rios. Tal número é quase a metade da atual
capacidade instalada do sistema produtor metropolitano, computada em 67,7 m3/s.
A
água subterrânea já é intensamente utilizada em algumas áreas, mas sem
cumprimento de critérios técnicos e gestão centralizada. “O último levantamento,
realizado em 2009, estimou a existência de 12 mil poços profundos, retirando
dos aquíferos cerca de 10 m3/s. Desse total, apenas 4.931 poços
encontravam-se cadastrados no Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE).
Em função da estiagem dos anos 2013, 2014 e 2015, o ritmo de perfurações foi
intenso, especialmente de poços irregulares. E há várias zonas aquíferas com
sintomas de superexploração, o que ocorre quando a taxa de bombeamento é maior
do que a capacidade do aquífero, criando prejuízos ao recurso, aumentos
intoleráveis aos custos da extração ou impactos ecológicos”, afirmou Hirata.
Apesar
disso, a maior parte dos aquíferos da Região Metropolitana de São Paulo ainda
apresenta capacidade de maior extração. E, no artigo citado, o pesquisador e
seus colaboradores recomendaram ao órgão gestor que novos poços para
abastecimento público fossem construídos em áreas subutilizadas, em especial
onde já existe estrutura de adução e estocagem de água tratada, como uma
estratégia para minimizar os impactos da crise hídrica.
“Evidentemente,
o plano de construção deveria valer-se dos melhores recursos técnicos
disponíveis, com a utilização de modelos digitais do terreno, imageamentos
óptico e acústico das fraturas em poços, medições de velocidades de fluxos
etc., resultando em sucesso na locação de poços produtivos. Além disso, uma vez
construído, cada poço precisaria ser monitorado continuamente, para se obter a
melhor relação entre as vazões necessárias, a exploração segura dos aquíferos e
o consumo de energia elétrica, além da identificação de problemas que
eventualmente exigissem manutenção. E o gerenciamento de um conjunto de poços
estratégicos teria que ser integrado por um sistema automático de operação e
controle por telemetria”, sublinhou Hirata.
Qualidade
da água
Segundo
as contas dos pesquisadores, 180 poços públicos permitiriam oferecer à
população um aporte adicional de um metro cúbico de água por segundo, a um
custo para construção, operação e manutenção competitivo em relação ao custo de
obtenção de novas fontes de água superficial.
“Existe
uma falsa percepção de que a água subterrânea da Região Metropolitana de São
Paulo é de baixa qualidade devido à contaminação por esgotos, vazamentos de
tanques de combustíveis em postos de serviços e infiltração de substâncias
químicas em zonas industriais. Mas tais situações restringem-se apenas a
determinadas áreas. Milhares de poços tubulares profundos legais existentes
receberam outorga de uso porque as análises químicas requeridas demonstraram
que a água era potável. De fato, a água subterrânea, especialmente quando
captada nas porções mais profundas do aquífero, é melhor protegida da poluição
do que a água dos reservatórios superficiais”, ponderou o pesquisador.
“Além
disso, quando bem captadas, as águas subterrâneas dispensam tratamento químico,
obrigatoriamente utilizado no tratamento de águas superficiais. E não geram
resíduos sólidos – o que torna sua gestão muito menos custosa”, acrescentou.
(ecodebate)
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