“Certo ar de falência, certa
estrela na testa, certa sorte bifronte, certos objetos entesourados no fundo de
uma mala, certa mágoa ambígua, o som de certos ambientes, a impressão incerta
de estar numa travessia sem freios, a defesa de certos itens na lembrança caolha,
certos calafrios sem causa, o grau de inocência e tristeza em certas horas sombrias,
a importância de certos detalhes, a pergunta não-feita e sua certa resposta
incerta, o brilho anterior a certos sinais dados pela palavra espanto” - Leonardo
Fróes.
O
sociólogo Ulrich Beck, no livro “Sociedade de Risco: rumo a outra modernidade”
(Editora 34, 2010) faz uma distinção entre a “modernidade clássica” (ou
primeira modernidade) e a modernidade tardia (ou segunda modernidade). No
primeiro caso, quando prevalecia a “sociedade industrial” ou “sociedade de
classes” a dinâmica econômica e demográfica girava em torno da questão de como
a riqueza socialmente produzida poderia ser distribuída de forma socialmente
desigual e ao mesmo tempo “legítima”: “O pensamento e a ação das pessoas eram
dominados pela evidência da carência material, pela ‘ditadura da escassez’”.
Mas
na modernidade tardia surge um novo paradigma da sociedade de risco. Assim como
no século XIX a modernização dissolveu a esclerosada sociedade agrária
estamental e, ao depurá-la, extraiu a imagem estrutural da sociedade
industrial, hoje a modernização dissolve os contornos da sociedade industrial
e, na continuidade da modernidade, surge outra configuração social.
Beck
diz: “Enquanto na sociedade industrial, a ‘lógica’ da produção de riquezas
domina a ‘lógica’ da produção de riscos, na sociedade de risco, essa relação se
inverte”. Na reflexividade dos processos de modernização, as forças produtivas
perderam a inocência. “O acúmulo de poder do progresso tecnológico-econômico é
cada vez mais ofuscado pela produção de riscos”. Entre os principais riscos da
modernidade radicalizada estão a degradação ambiental e o aquecimento global.
Nesses novos conflitos ecológicos, o que está em jogo são negatividades:
“perdas, devastação e ameaças”.
Faço
a revisão acima, para refletir sobre a questão populacional no quadro atual da
modernidade tardia e da sociedade de risco. Em especial, pretendo questionar a
validade do bordão “O desenvolvimento é o melhor contraceptivo” lançado na
Conferência Mundial de População, ocorrida em 1974, na cidade de Bucareste.
Como se sabe, este bordão foi lançado para combater as visões neomalthusianas
que defendiam uma aceleração da transição da fecundidade no mundo e para marcar
a defesa do desenvolvimentismo como forma de solucionar os problemas da pobreza
e do engrandecimento das nações do “Terceiro Mundo”.
Os
dois países mais populosos do mundo (China e Índia), com apoio dos demais
países do movimento dos “não alinhados” (inclusive Brasil) colocaram o
crescimento econômico como prioridade da agenda nacional e internacional. O que
a Conferência de População de Bucareste fez foi reforçar a intenção de mimetizar
o processo de desenvolvimento da sociedade industrial do “Primeiro Mundo”, como
se o modelo da primeira modernidade fosse um evento positivo (a la Augusto
Comte) que mereceria ser globalizado, generalizado e absorvido por todos os
países do Planeta. O desenvolvimento é encarado como a utopia da grandeza
econômica, nacional, cultural, religiosa, militar, etc.
A
ideologia desenvolvimentista no campo de população e da acumulação de capital,
em geral, ignora ou subestima os riscos ambientais globais e minimiza os
desafios do crescimento demoeconômico em nome da escalada do progresso
industrial e do avanço das forças produtivas capazes de dominar e controlar a
natureza. Ou seja, a Conferência de Bucareste (e de certa forma o ODM, do ano
2000 e o ODS, da agenda 2015-2030) estabeleceu uma prioridade em relação à
transição da economia agrária e rural para a economia urbano-industrial em
detrimento da transição demográfica. Como disse o Papa Paulo VI, no espírito da
encíclica Humanae Vitae, com seus princípios natalistas e populacionistas:
“Precisamos aumentar o banquete e não diminuir os comensais”.
Mas
em 1960, o mundo tinha uma população de 3 bilhões de habitantes. Em 2016 já são
7,4 bilhões de habitantes. Um aumento de 4,4 bilhões em apenas 56 anos. A
projeção média para o final do século é de 11,2 bilhões de habitantes em 2100.
Serão, portanto, acrescidos outros 4 bilhões. Se fosse na lógica da segurança
da “modernidade sólida” (expressão de Bauman) a questão central seria como
produzir riquezas e como repartir os seus frutos. Mas na lógica da sociedade de
riscos, este crescimento populacional pode simplesmente estar colocando pessoas
no mundo para sofrer com as inseguranças da modernidade tardia e colocar ainda
mais estresse sobre o meio ambiente. Na primeira modernidade cada indivíduo era
uma fonte de capital humano e um potencial consumidor. Na segunda modernidade,
cada nova pessoa é fonte de risco para si e para o planeta, pois os riscos são
globalizados e não possuem fronteiras.
Como
mostra Herman Daly (2014), a primeira modernidade avançou sobre um mundo
antropicamente vazio, em que a escala de produção de bens e serviços era
pequena, o elemento escasso ou fator limitante da produção era o capital
manufaturado, enquanto os recursos naturais e ambientais (capital natural) eram
abundantes. Havia milhões de rios e florestas e nenhum assentamento humano
próximo a eles; assim, o custo de oportunidade do uso desses rios era
praticamente zero e o conceito de externalidade negativa tinha pouca
importância.
Mas
no mundo cheio – superpovoado, superconsumista e superexplorador da natureza –
em que o tamanho da economia passa a sufocar a capacidade de sobrevivência do
capital natural fica difícil gerar os serviços ambientais necessários para o
bem-estar humano. O custo de oportunidade no uso dos recursos naturais é alto e
o conceito de externalidade negativa adquire importância elevada. Não por
acaso, neste mundo, os novos projetos precisam demonstrar que geram muito mais
benefícios que custos. No mundo cheio há excesso, e não escassez, tanto de
capital manufaturado como de mão-de-obra. Nele, o fator limitante da produção
material passou a ser o capital natural, tanto no que se refere à
disponibilidade de recursos naturais e de serviços ambientais (sources) como em
capacidade de acúmulo e absorção de resíduos (sinks).
O
panorama descrito acima mostra que as condições econômicas, sociais,
demográficas e ambientais do século XXI são muito diferentes das condições
existentes nos séculos anteriores. A humanidade já provocou grandes danos nos
ecossistemas do Planeta. Desmatou florestas para explorar a agricultura e a
pecuária; represou rios, drenou pântanos, alterou a paisagem natural e está
provocando a 6ª extinção em massa de espécies. Revolveu a terra para extrair
minérios, foi buscar petróleo no fundo do subsolo e emitiu gases de efeito
estufa que alteram a química da atmosfera, provocando o aquecimento global e a
acidificação dos solos e das águas. A degradação da biodiversidade e o
aquecimento global são os grandes riscos colocados à civilização e à vida na
Terra.
Desta
forma, é preciso repensar o crescimento populacional na sociedade de risco, de
Ulrich Beck, e no mundo cheio, de Herman Daly. Não faz mais sentido manter
taxas positivas de crescimento demográfico, quando as condições ambientais
apresentam taxas negativas e o colapso ambiental está desenhado no horizonte.
Ou seja, não dá para manter o progresso humano às custas do regresso ambiental.
Existe um sobrecarga da Terra que nos alertam as metodologias da Pegada Ecológica
e das Fronteiras Planetárias, que mostram que a humanidade já ultrapassou os
limites da sustentabilidade da capacidade de carga Terra. Não dá para continuar
com o crescimento demoeconômico às custas do empobrecimento e da degradação da
biocapacidade do meio ambiente.
A
questão demográfica deve ser estudada, atualmente, dentro deste contexto da
sociedade de risco e do mundo cheio, ou seja, numa situação global de déficit
ambiental. Nascem, nos dias atuais, 140 milhões de bebês todos os anos no
mundo. Se este número ficar estável e a esperança de vida ao nascer alcançar 80
anos, então a população mundial chegaria a 11,2 bilhões de habitantes (140
milhões vezes 80), em 2100, e ficaria estável em torno deste número se a
natalidade e a esperança de vida permanecessem nesses patamares durante as
próximas décadas. Isto significaria que a população mundial de 6 bilhões de
habitantes, em 1999, teria um acréscimo de 5,2 bilhões de pessoas no século
XXI.
Acontece
que a pegada ecológica já superava a biocapacidade da Terra em 64% em 2012 (a
humanidade está utilizando 1,64 planetas). No ritmo das últimas décadas
chegaríamos em 2100 consumindo mais de 5 planetas. Seria uma coisa totalmente
insustentável, o que poderia levar a civilização e os ecossistemas ao colapso.
O déficit ambiental ocorre devido ao aumento do consumo médio (pegada
ecológica) dos habitantes do globo e da diminuição da biocapacidade (devido ao
aumento da população). Evidentemente, são as parcelas mais ricas da população
mundial que mais contribuem para o aumento do consumo. Mas mesmo que houvesse
uma hipotética distribuição justa do consumo, assim mesmo o déficit
permaneceria elevado e os riscos teriam efeitos globais.
Portanto,
é preciso diminuir o consumo e a população. Acontece que a população vai
continuar crescendo devido à inercia demográfica. Por conta disto, há quem diga
que só dá para mexer no consumo e não na população. Mas essa visão é fruto de
um equívoco. Realmente não dá para diminuir o tamanho da população
imediatamente, mas dá para reduzir desde já o ritmo de crescimento e
determinar, no presente, a queda futura do decrescimento demográfico.
Queda
na taxa de fecundidade se deu em todas as regiões brasileiras.
Portanto,
mesmo não dando para diminuir a população imediatamente, dá para reduzir o
ritmo de crescimento. Basta reduzir a natalidade mundial. Ao invés do
nascimento de 140 milhões de bebês todos os anos, poderia haver uma diminuição
da natalidade para 130, 120, 110 ou 100 milhões de nascimentos. Por exemplo, se
a natalidade mundial diminuir para 100 milhões de bebês até 2030 (e ficar neste
patamar) e a esperança de vida subir para 80 anos, então teríamos uma população
estável de 8 bilhões ao invés de 11,2 bilhões de habitantes no mundo.
O
gráfico acima mostra que o número de nascimentos no mundo passou de 97 milhões
de bebês, na média do quinquênio 1950-55, para 140 milhões na média do
quinquênio 2015-20. A projeção média da ONU indica que este número de
nascimentos deve se manter aproximadamente neste nível até o final do século,
gerando uma população de 11,2 bilhões em 2100.
Porém,
na hipótese de uma queda mais rápida da natalidade, o número de nascimentos
poderia cair para 70 milhões de bebês até 2100. Se este número ficar estável e
a esperança de vida ficar em 80 anos, então a população poderia se estabilizar
em 5,6 bilhões ao invés dos 11,2 bilhões de habitantes. O número de pessoas
sujeitas aos riscos ecológicos se reduziria pela metade.
Além
do mais, a queda da natalidade poderia gerar outros efeitos benéficos. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que existem mais de 220 milhões de
mulheres em período reprodutivo sem acesso aos métodos de regulação da
fecundidade. O número de gravidez indesejada é alto. A meta # 5B dos ODMs
dizia: “Alcançar, até 2015, o acesso universal à saúde reprodutiva”. Esta meta
não foi alcançada. Agora, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
também colocam como meta a universalização dos serviços de saúde sexual e
reprodutiva até 2030. Evidentemente, esta procrastinação não é boa para a saúde
das mulheres e nem para os bebês que nascem de uma gravidez indesejada e vão
correr riscos cada vez maiores diante dos desafios econômicos, sociais e
ambientais. Por exemplo, o surto dos casos de microcefalia, diante da epidemia
de zika, poderia ser evitado se houvesse bons serviços de saúde reprodutiva no
país.
Segundo
o International Food Policy Research Institute (IFPRI), o Índice Global da Fome
(IGF) apresenta as categorias alarmante e extremamente alarmante, especialmente
naqueles países onde existem altas taxas de fecundidade. Também as taxas de
mortalidade materna são mais altas onde é menor o acesso aos direitos sexuais e
reprodutivos. Além disto, muitas mulheres são vítimas de violência sexual e da
segregação de gênero, o que impede que elas tenham autonomia social e
capacidade de autodeterminação reprodutiva. Além disto, alta dependência
demográfica nas famílias aumenta a competição por alimento entre os filhos, o
que prejudica os mais fracos e necessitados. O fim da gravidez indesejada
ajudaria a reduzir a fome, reduziria os níveis de mortalidade materna e
fortaleceria o bônus demográfico feminino.
Para
Beck, a natureza não pode mais ser concebida sem a sociedade e a sociedade (e a
população) não mais sem a natureza. A destruição da natureza passa “a ser
elemento constitutivo da dinâmica social, econômica e política. O imprevisto efeito
colateral da socialização da natureza é a socialização das destruições e
ameaças incidentes sobre a natureza”. Ou seja, a humanidade já ultrapassou a
capacidade de carga e está explorando o meio ambiente a uma taxa mais alta do
que a capacidade de regeneração. O crescimento ficou deseconômico, como mostra
Herman Daly e o mundo caminha para uma estagnação secular, como mostra Larry
Summers. Neste quadro, seria irresponsabilidade as políticas públicas continuar
apoiando o crescimento demoeconômico.
O
mundo precisa de decrescimento, pois já ultrapassou a capacidade de carga do
Planeta. Mesmo, em uma situação hipotética em que houvesse uma justa
distribuição de renda no mundo, ainda assim nosso modelo de produção e consumo
seria insustentável. Portanto, não basta combater a desigualdade é preciso
decrescer o tamanho da economia e do impacto humano sobre o Planeta, pois o
problema não é simplesmente o consumo dos ricos, mas sim o volume do consumo
global (Alves, 29/08/2014; Mantilla, 07/07/2016).
Estas
ideias não são novas e já foram antecipadas no livro “O Declínio Próspero” de
H. T. Odum, conforme pode ser consultado em Ortega (2015). Diante da
possibilidade do colapso das condições que sustentam a Economia, a População e
o Meio Ambiente em escala planetária, “o livro coloca a possibilidade de um
declínio com prosperidade apesar das condições desfavoráveis existentes, e
oferece ideias para promover a sustentabilidade e, ao mesmo tempo, cuidar da
mitigação das mudanças climáticas e das mazelas sociais”.
Como
escrevi em outro artigo (Alves, 11/07/2016): “A natureza não depende da
sociedade, a sociedade depende da natureza. O lema do debate sobre população e
desenvolvimento no século XXI deveria ser: menos gente, menos consumo, menor
desigualdade social e maior qualidade de vida humana e ambiental”. Os direitos
humanos devem estar em sintonia com os direitos ambientais e o bem-estar das
espécies não humanas.
Portanto,
pode-se considerar o debate entre população, economia e ambiente com parâmetros
diferentes daqueles estabelecidos na velha dicotomia entre controlismo versus
natalismo. Numa perspectiva que integre os direitos humanos com os direitos
ambientais, a queda da natalidade pode ser vista como uma forma de evitar o
aumento do sofrimento humano na sociedade de risco e uma forma de reduzir a
degradação ambiental e a perda de biodiversidade.
Assim,
avançar na implementação dos direitos sexuais e reprodutivos é uma forma de
melhorar a qualidade de vida do ser humano, especialmente para as mulheres que
mais sofrem com as relações patriarcais, diminuir os riscos e a população em
risco, e evitar uma catástrofe ecológica nos tempos do acirramento das
externalidades negativas do “mundo cheio” da hipermodernidade. (ecodebate)
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