Transposição do Rio São Francisco: má gestão dos recursos hídricos leva
Nordeste brasileiro à exaustão.
“É preciso saber que percentual de água o São Francisco pode dispor para
depois avaliarmos que tipo de projeto vamos realizar, inclusive para saber se
vamos resolver todo ou parte do problema hídrico e de abastecimento da região”
adverte o engenheiro agrônomo.
“Depois
de analisar e acompanhar a atual situação do Rio São Francisco, diria que o
Estado deveria ter apostado na revitalização do rio: precisávamos primeiro ter
água de boa qualidade e em volume no Rio São Francisco para futuramente
discutir se seria preciso uma transposição”, diz João Suassuna à IHU On-Line,
na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Segundo
ele, mesmo se a transposição tivesse sido concluída, dada a atual situação de seca no Nordeste brasileiro – quadro
que se repete há cinco anos – “hoje não seria possível retirar água do São
Francisco para abastecer 12 milhões de pessoas”, frisa.
Apesar
dessa situação, João Suassuna defende a conclusão da obra “porque do contrário”
ela “será um elefante branco, ou seja, seria assumir um atestado de
incompetência gastar 8,2 bilhões de reais num projeto e deixá-lo se transformar
num elefante branco”. Entretanto, alerta, “depois da conclusão, teremos um
problema grave: de onde retirar água para satisfazer as necessidades de 12
milhões de pessoas que estão sedentas no Nordeste”.
Na
entrevista a seguir, João Suassuna apresenta um panorama da exaustão hídrica das represas nordestinas e também comenta a proposta
do governo interino de Michel
Temer de investir 10 bilhões de
reais na revitalização
do Rio São Francisco nos próximos
dez anos. Trata-se de “uma ação louvável”, diz, mas “se o governo Temer
pretende gastar 10 bilhões na revitalização do São Francisco, ele tem que olhar
para a região e entendê-la de uma forma sistêmica, porque, do contrário, não
acredito numa revitalização”, adverte.
Suassuna também comenta
brevemente os casos de corrupção envolvendo a transposição
do Rio São Francisco e
frisa que, por enquanto, segundo informações do Tribunal de Contas da União – TCU, “200 milhões de reais estão envolvidos em
superfaturamento nessas obras, o que não foi esclarecido ainda diante da
opinião pública. Sabemos que várias das empreiteiras envolvidas na Lava Jato atuam na obra de transposição do Rio São Francisco e
há necessidade de que essas informações sejam muito bem esclarecidas diante da
sociedade, para que ela perceba o que está acontecendo e possa, depois, julgar
esse projeto da transposição do rio. É dinheiro público que está envolvido na
‘jogada’ e não podemos deixar essa situação ser conduzida da forma como está
sendo; a população tem que se manifestar”.
João
Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da fundação Joaquim Nabuco, no
Recife, e especialista em convivência com o semiárido.
IHU
On-Line - Qual
é a situação do Rio São Francisco hoje? Recentemente o senhor informou que a
represa de Sobradinho, uma das principais da região, está funcionando com 25%
da sua capacidade. O que isso significa em termos de abastecimento da
população?
João
Suassuna - Depois analisar e acompanhar a atual situação do Rio São Francisco,
diria que o Estado deveria ter apostado na revitalização do rio:
precisávamos primeiro ter água de boa qualidade e em volume no Rio São
Francisco para futuramente discutir se seria preciso uma transposição. O que está acontecendo hoje? O rio está seco, o
Nordeste está precisando de água, e se a transposição tivesse sido concluída,
hoje não seria possível retirar água do São Francisco para abastecer 12 milhões
de pessoas.
Gostaria
de fazer uma observação sobre a situação da bacia do Rio São Francisco: há
cinco anos ocorrem secas sucessivas no Nordeste, porque as chuvas foram abaixo
da média. Além disso, há um problema muito sério de uso excessivo das águas de
subsolo na bacia do São Francisco. Essas águas abastecem a vazão de base, a
qual tem uma importância muito grande no regime volumétrico do Rio. Para se ter
uma ideia, existe um aquífero na Bacia, chamado Urucuia, o qual é o mais
importante no que diz respeito à gestão da vazão e da quantidade de água que
corre no seu leito através desses aquíferos e chega a Sobradinho.
Metade
da vazão de Sobradinho é proveniente do aquífero Urucuia. É em cima desse
aquífero que hoje está se expandindo a cultura da soja, que está sendo irrigada
com pivô central. Mas o problema é que quando se irriga com pivô central, está
se secando os aquíferos, e ao secar os aquíferos, se interfere nas vazões de
base.
A represa de Sobradinho, quando foi construída, tinha a finalidade de
regularizar a vazão de 2.060 m3 por segundo do Rio São Francisco.
Com a retirada dessas águas do subsolo, essa vazão média está caindo e está
atualmente em 1.850 m3, quer dizer, a tendência é cair mais ainda.
Somada a essa retirada de água exacerbada do subsolo e somados esses anos de
seca, a represa de Sobradinho está atuando com 25% da sua capacidade, com a
perspectiva de entrar em volume morto no próximo mês de novembro, segundo
laudos já apresentados por técnicos. Ou seja, teremos um problema muito sério
porque a população que vive na margem do São Francisco não terá água para beber
e para irrigar as suas culturas.
“A questão é: que sujeitos humanos a medicina consente em produzir?”
“A questão é: que sujeitos humanos a medicina consente em produzir?”
IHU
On-Line - Qual
é a atual situação das obras de transposição do Rio São Francisco iniciadas no
governo Lula?
João
Suassuna - Até o final da gestão Dilma, essas obras estavam
cerca de 80% concluídas. A gestão Temer está dando sinais de
que quer investir não na conclusão da obra de transposição, mas na revitalização do rio, e já se fala em alocar 10 bilhões de reais para isso.
É uma ação louvável, não resta dúvida, mas acho que devem concluir esse projeto
da transposição, porque do contrário essa obra será um elefante branco, ou
seja, seria assumir um atestado de incompetência gastar 8,2 bilhões de reais
num projeto e deixá-lo se transformar num elefante branco. Então, acho que a
transposição deve ser concluída. Contudo, depois da conclusão, teremos um
problema grave: de onde tirar água para satisfazer as necessidades de 12
milhões de pessoas que estão sedentas no Nordeste. O Rio São Francisco não vai
ter essa água.
Por
isso, defendo que os hidrólogos têm de sair a campo novamente para identificar
quais são as reais necessidades de água para beber. Tem de se encontrar um
volume que seja capaz de atender às necessidades dos nordestinos. Esse trabalho
precisa ser feito também na bacia do Rio São Francisco para saber que volume de
água o rio tem para oferecer no sentido de atender às necessidades da
população. Os hidrólogos tinham uma ideia de qual era esse volume antigamente,
mas o cenário hidrológico mudou e, além disso, há muitas cisternas instaladas
na área rural. Então, essa nova equação ainda não foi feita. Identificado esse
volume, vamos ter que partir para a identificação de uma instituição que
garanta a distribuição
da água e que não sofra
ingerências políticas para abrir e fechar essas torneiras.
Você
pode me perguntar que instituição é essa. De fato, é difícil encontrar uma
instituição que não sofra ingerências políticas, mas quem sabe a polícia federal tenha que intervir para garantir a distribuição da
água, porque às vezes a situação chega a um ponto que vira caso de polícia.
IHU
On-Line - Por
que considera que é mais importante concluir a transposição do rio ao invés de
iniciar um novo projeto que visa à revitalização? Dada a atual crise, será
possível investir nesses dois projetos?
João
Suassuna - Porque só faltam 20% para concluir a obra. O meu receio é que depois
do dinheiro que foi gasto, essa obra vire um elefante branco. Não podemos
deixar que o São Francisco entre no hall da lista negra. Se der para começar a
revitalização e concluir a obra, seria o mais viável.
A transposição serviria para resolver um problema emergencial que
está ocorrendo em Campina
Grande, porque o principal
reservatório que abastece a cidade e outros 18 municípios está funcionando com
7% de sua capacidade. Então há a previsão de a represa que abastece Campina
Grande entrar em volume morto. Se isso acontecer, veja o problema que vamos
ter: 450 mil pessoas, que é a população dessa região, ficarão sem água, mas
elas têm que ser abastecidas de alguma forma, ou seja, precisa chegar água para
essas pessoas terem o que beber.
Mas
com a atual situação do Nordeste, com todas as represas numa situação de
exaustão, essa água virá de onde? A única solução será a água do Rio São
Francisco. Por isso defendo a conclusão do projeto, para que a transposição possa resolver, de forma emergencial, esse problema
que está acontecendo hoje em Campina Grande. Se não
colocar esse projeto a funcionar, Campina Grande não terá água para dar de
beber ao seu povo. Fala-se em implementar outros sistemas, como os de adução de
engate rápido, e isso é possível, mas vamos tirar a água de onde? É nisso que
temos de pensar.
Os hospitais de Campina Grande estão sendo abastecidos por caminhões-pipa; isso é
uma loucura. Se a transposição tivesse sido concluída, já estaria chegando água
para resolver esse problema. Mas para que a água chegue não podemos descuidar
desse trabalho que lhe falei anteriormente: temos de saber que volumes de água o Rio São Francisco pode nos fornecer.
IHU
On-Line - Como
está avaliando o novo programa de revitalização do Rio São Francisco, anunciado
pelo governo interino, chamado de Novo Chico, que pretende gastar 10 bilhões
até 2026, e atuar em três frentes: recuperação das nascentes e áreas
degradadas, modernização de agricultura irrigada e programa de aquicultura;
conclusão de 124 projetos de saneamento; e gestão e fiscalização ambiental com
recuperação de unidades de conservação?
João
Suassuna - É uma proposta interessante;
não resta dúvida. Todas as lagoas do Rio São Francisco estão com problemas
sérios porque o rio não está tendo volumes suficientes para reabastecer as lagoas.
E quando as lagoas secam, os peixes somem. Temos que olhar para tudo isso de
modo sistêmico e entender que a gota de esgoto que cai no Rio das Velhas vai
poluir outras regiões, porque moramos num vaso fechado que é o planeta Terra.
Essa proposta de revitalização é importante, mas como eu já disse
anteriormente, temos de saber também que volumes de água o Rio São Francisco
vai poder fornecer. Precisamos avaliar isso porque é a partir desse número que
será possível planejar a irrigação que está sendo feita no Rio São Francisco,
planejar que quantidade de água será lançada das represas do São Francisco etc.
IHU
On-Line - É
possível fazer esse cálculo rapidamente?
João
Suassuna - Esse é um trabalho que demora, mas que precisa ser começado. Não
podemos ficar de mãos atadas, ver o Nordeste seco, sem uma gota d’água e sem
saber o que fazer.
“Se
o governo Temer pretende gastar 10 bilhões na revitalização do São Francisco,
ele tem que olhar para a região e entendê-la de uma forma sistêmica, porque, do
contrário, não acredito numa revitalização”
IHU
On-Line - Como
o senhor avalia a nova proposta para o São Francisco à luz do projeto anterior
de transposição do governo Lula? Em que aspectos essas propostas se
diferenciam?
João
Suassuna - Se a obra de transposição não tivesse sido feita, a situação seria outra.
Inclusive, o Lula fez questão de enaltecer um diferencial ao dizer que
sua proposta era diferente da de Fernando Henrique Cardoso. A
proposta de FHC, ele dizia, apenas visava à transposição das águas,
mas o Lula dizia que queria mais, queria investir na revitalização do rio. Eu fiquei muito animado naquela época, porque ele
inclusive deu início a essa proposta ao criar uma subsecretaria só para mexer
com a revitalização do Rio São Francisco, mas a vontade foi diminuindo de tal
modo que começaram a investir muito mais na transposição do que na
revitalização, chegando ao ponto de que em uma determinada época o orçamento da
transposição era de 1 bilhão de reais e o da revitalização era de 100 milhões.
A partir daí não pude mais acreditar num projeto de revitalização em que se
aplicava 10% do que estava sendo investido num projeto de transposição. Já
nessa época eu comecei a não acreditar no projeto de revitalização do
rio São Francisco do governo Lula, com essa divisão de
recursos.
Estamos
numa situação emergencial no Nordeste, e se você me perguntasse se esse projeto
resolveria a situação do Rio, eu diria sinceramente: resolveria se chegássemos
a detectar qual é o volume
de água que o Rio São Francisco pode dispor. É preciso saber que percentual de água o
São Francisco pode dispor para depois avaliarmos que tipo de projeto vamos
realizar, inclusive para saber se vamos resolver todo ou parte do problema
hídrico e de abastecimento da região. Depois de voltarmos à situação de chuvas
e os reservatórios estarem abastecidos, temos de fazer um trabalho de gestão
dos recursos hídricos, porque do contrário voltaremos à estaca zero.
Para
não dizer que não foi feito nada, houve uma ação de tratamento de saneamento em algumas regiões, mas ficou somente nisso. A revitalização de uma bacia é uma coisa muito maior porque tem que
resolver a questão de reflorestamento das matas ciliares, cuidar dos vazamentos
sanitários, olhar a parte de dragagem dos rios que já estão assoreados, cuidar
da fauna, mas nada disso foi feito.
Se o
governo Temer pretende gastar 10 bilhões na revitalização do Rio
São Francisco, ele tem que olhar para a região e entendê-la de uma forma
sistêmica, porque, do contrário, não acredito numa revitalização.
Mapa da transposição do Rio São Francisco.
Mapa da transposição do Rio São Francisco.
IHU
On-Line - Como a discussão
política tem repercutido na região em que está sendo realizada a transposição
do Rio São Francisco neste momento de crise e de risco de abastecimento de
água, dado que várias empreiteiras e políticos estão sendo denunciados na Lava
Jato por conta da corrupção envolvendo essas grandes obras, por exemplo?
João
Suassuna - Tenho acompanhado essas
questões e inclusive já estão divulgando informações sobre a má administração
dos recursos públicos nas obras da transposição. O Tribunal de contas da União já chegou à conclusão de que 200 milhões de reais
estão envolvidos em superfaturamento nessas obras, o que não foi esclarecido
ainda diante da opinião pública. Sabemos que várias das empreiteiras envolvidas
na Lava Jato atuam na obra de transposição do Rio São Francisco e
há necessidade de que essas informações sejam muito bem esclarecidas diante da
sociedade, para que ela perceba o que está acontecendo e possa, depois, julgar
esse projeto da transposição do rio. É dinheiro público que está envolvido na
“jogada” e não podemos deixar essa situação ser conduzida da forma como está
sendo; a população tem que se manifestar.
Se
você fizer uma pesquisa hoje na região setentrional do Nordeste, 99% das
pessoas dirão que são favoráveis à obra, porque ainda não a receberam. O resto
do Nordeste é contra a obra porque não vai participar do recebimento dessas
águas. De outro lado, parte da população que era favorável ao projeto, já está
achando que ele não vai sair por causa das “falcatruas” que são feitas em torno
da má administração do dinheiro público e porque vários dos canais da
transposição estão rachando e ninguém está ligando para isso. Tudo isso está
fazendo a opinião do nordestino mudar em relação ao projeto. Isso é lamentável
de dizer? Sim, mas ninguém mais acredita nesse projeto.
O
problema maior do Nordeste é a falta de gestão dos recursos hídricos, porque os
principais açudes do Nordeste estão em uma situação lamentável em termos de
volume de água por conta de uma má gestão desses volumes. Quando se constrói
uma represa de grande porte, essa represa regulariza o rio que foi represado
num volume de regularização. Para você ter uma ideia, se utilizarmos o volume
dessa represa em volumes maiores do que a da regularização, a represa seca,
mesmo se tiver enormes volumes de água.
O
que acontece hoje no Nordeste é que os volumes de regularização
dessas represas estão sendo menores do que o volume de água que está sendo
retirado dela. Isso leva à exaustação e foi assim que acabaram com açudes em
várias regiões. Diante dessa situação, a solução apresentada é trazer água do Rio São Francisco, mas essa água vem de uma parte do rio que também já
está praticamente seca. Quando essa água chegar à represa, ela vai continuar
sendo mal gerida e, portanto, a água do São Francisco nessas represas também
vai acabar. Essa é a triste situação hídrica do Nordeste
brasileiro. (ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário