“Não creio
que há dez anos os cientistas percebessem quão rapidamente se verificaria o
potencial para uma rápida elevação do nível do mar”, afirmou em 2016 Maureen
Raymo, uma autoridade mundial em paleoclimatologia. De fato, no último decênio
os cientistas vêm detectando uma forte aceleração na taxa de elevação do nível
do mar, causada pela expansão térmica da água e pelo degelo continental,
processos agravados por furacões mais poderosos e por rebaixamento
(subsidência) do nível dos deltas (devido ao represamento dos sedimentos
fluviais e ao esgotamento dos aquíferos próximos do litoral). O fato que a
urbanização dos litorais continue se intensificando, malgrado a certeza dessa
aceleração, é mais um exemplo do estado de denegação das evidências em que se encontram
as sociedades contemporâneas, incluindo seus segmentos mais escolarizados.
No artigo precedente
(“Degelo e elevação do nível do mar”, Jornal da Unicamp, 16/VII/2017), reportei o montante
da elevação média global do nível do mar ocorrida no século XX (19 cm entre
1901 e 2010) e propus um quadro sintético das diversas projeções dessa elevação
para o século XXI. Trata-se agora de vislumbrar alguns de seus efeitos no
século XXI. Evidentemente, se vier a se verificar a projeção de uma elevação de
“vários metros” (several meters) entre 2065 e 2165,
sugerida por James Hansen e 18 coautores num trabalho de 2016, pouco restará já
neste século do que entendemos habitualmente por civilização contemporânea.
Dada a altíssima credibilidade científica dos autores, essa projeção não pode
ser menosprezada. Mas é preferível se ater aqui à base mais extensa do atual
consenso científico, isto é, à faixa compreendida entre os cenários
intermediários baixo e alto, projetada em 2012 pela National Oceanic and
Atmospheric Administration (NOAA). Essa projeção é pouco discrepante, de resto,
das demais estimativas já discutidas. Ela situa a elevação média global do
nível do mar até 2100 entre 50 cm e 1,2 metro em relação a 1992, conforme
mostra a figura 1.
Podemos
classificar as consequências de uma elevação entre 50 cm e 1,2 metro em seis
categorias: 1. inundações recorrentes da infraestrutura urbana e refugiados
climáticos; 2. desaparecimento das pequenas ilhas do Índico e do Pacífico; 3.
salinização dos deltas; 4. intrusão marinha nos aquíferos; 5. destruição de
ecossistemas costeiros e 6. vulnerabilização das usinas nucleares situadas à
beira-mar. Aqui, há espaço para tratar apenas dos dois primeiros itens, mas
será necessário voltar aos demais em artigos futuros.
1.
Inundações recorrentes da infraestrutura urbana
Entre as 20
mais populosas cidades do mundo, 13 são portos marítimos ou fluviais em zona
costeira. Dado que o volume do comércio marítimo internacional triplicou em 30
anos (UNCTAD, 2008), tem-se uma primeira ideia de quanto o capitalismo
globalizado depende da funcionalidade desses e de outros grandes portos. Em
2011, um trabalho coordenado por Susan Hanson identificou as 136 cidades
portuárias acima de 1 milhão de pessoas mais expostas aos impactos da elevação
do nível do mar e de extremos climáticos até os anos 2070. Dessas 136 cidades,
52 estão na Ásia, 17 nos EUA, 14 na América do Sul, das quais 10 no Brasil,
conforme mostra a figura 2.
O trabalho
assume três pressupostos: (1) uma elevação média do nível do mar de 50 cm até
2070; (2) uma intensificação de 10% nos níveis extremos da água em tempestades
tropicais e extratropicais, somente nas áreas já afetadas (+ 50 cm); (3)
subsidência antropogênica do território costeiro de 50 cm entre 2005 e 2070,
nas 36 cidades situadas em deltas e nas quais esse fenômeno já é observado.
Essa avaliação mostra, portanto, um aumento de inundações recorrentes de até
1,5 metro nas cidades concernidas por esses três fenômenos combinados. O
trabalho assume também, baseado nas projeções da ONU, que nos anos 2070, seis
dessas cidades serão mais populosas que qualquer cidade hoje (mais de 35
milhões de pessoas) e que Bombaim (Mumbai), Karachi, Lagos e Dhaka (situada no
delta Ganges-Brahmaputra), terão então mais de 50 milhões de pessoas. A
projeção central desse trabalho é que nos anos 2070 a população exposta a
inundações, por efeitos combinados de elevação do nível do mar e maiores
tempestades, atingirá 148 milhões de pessoas, das quais 90% estarão
concentradas em 12 países: China, Índia, Bangladesh, EUA, Vietnã, Japão,
Tailândia, Mianmar, Egito, Costa do Marfim, Nigéria e Indonésia. No que se
refere aos prejuízos econômicos, um trabalho mais recente projeta que, “com as
mudanças climáticas e subsidência, a proteção presente necessitará ser
aumentada para evitar prejuízos inaceitáveis de USD 1 trilhão ou mais por ano.
Mesmo que, graças a investimentos de adaptação, as probabilidades de inundações
permaneçam constantes, a subsidência e a elevação do nível do mar aumentarão as
perdas globais por inundação para USD 60 a 63 bilhões por ano em 2050”.
Quantos
serão os refugiados climáticos já no segundo quarto do século? O termo
refugiados climáticos, cunhado por Lester Brown nos anos 1970, abrange várias
categorias de sinistrados pelas mudanças climáticas: elevação do nível do mar,
mas também fome, escassez hídrica, calor letal, eventos meteorológicos extremos
etc. Segundo a International Organization for Migration (IOM), as estimativas
globais para 2050, extremamente díspares, vão de 25 milhões a 1 bilhão de
pessoas, sendo 200 milhões a figura mais comumente citada. A CARE Danmark, por
exemplo, avalia que “apenas em 2015, desastres relacionados ao clima deslocaram
14,7 milhões de pessoas. E “já em 2025, até 2,4 bilhões de pessoas no mundo
podem estar vivendo em áreas sujeitas a escassez hídrica intensa, a qual pode
deslocar algo como 700 milhões de pessoas por volta de 2030”.
Quantos desses
refugiados climáticos serão expulsos de seus lares especificamente por causa da
elevação do nível do mar neste século é mais incerto. A cada ano a Holanda e a
Alemanha gastam 250 milhões de euros em defesa de seus litorais. Segundo um
estudo coordenado por Fabrizio Antonioli, em 2100 o nível do Adriático
setentrional estará 140 cm acima do nível atual, de modo que a Itália perderá
283 km de seu litoral entre Trieste e Ravenna, incluindo Veneza. Se isso deve
ocorrer na Itália, o que dizer, então, de países pobres como o Brasil, mais
indefesos ainda? Vimos acima que, segundo Susan Hanson e colegas (2011), a
população exposta a inundações atingirá 148 milhões de pessoas em 2070. Um
trabalho apresentado no World Economic Forum de 2015 mostra os montantes
populacionais afetados, em função de um aumento de 2º C e 4º C na temperatura
média superficial do planeta. Os resultados são sintetizados na figura 3.
A soma
desses refugiados climáticos por efeito da elevação do nível do mar apenas
nesses dez países variará de 166 a 418 milhões, segundo a intensidade do
aquecimento global. Prevê-se, hoje, um aquecimento médio global de +2º C em
relação às médias pré-industriais até meados do século e +4º C até o seu final.
Por certo, a água se aquece muito mais lentamente que a atmosfera e, portanto,
não é provável que o número de refugiados climáticos desses 10 países atinja em
breve essas cifras apenas por efeito da elevação do nível do mar. Mas no
Brasil, as cidades costeiras serão duramente atingidas já neste século.
2.
Desaparecimento das pequenas ilhas
Em todo o
caso, nos próximos 50 anos o oceano pode varrer do mapa algumas das 52 nações localizadas
em pequenas ilhas, as chamadas SIDS (Small Island Developing States),
onde se concentram quase 1% da humanidade e uma ainda enorme biodiversidade.
Shamshad Akhtar, secretária-executiva da Comissão Socioeconômica da ONU para a
Ásia e o Pacífico (UNESCAP), afirma que a elevação do nível do mar representa
para essas ilhas “a mais grave das ameaças para a sua sobrevivência e
viabilidade, incluindo para algumas a perda total de seu território”. Sobretudo
os atóis (ilhas coralinas) estão condenados. No Oceano Índico, boa parte das
ilhas Maldivas, com seus 329 mil habitantes vivendo entre menos de 1 metro e 2
metros acima do nível do mar, deve desaparecer até meados do século. E um grupo
de pesquisadores do CNRS, na França, projeta que entre 5% e 12% das 1.269 ilhas
francesas devem desaparecer num futuro próximo, ameaçando de extinção cerca de
300 espécies endêmicas.
No Pacífico,
prevê-se o desaparecimento de ilhas da Micronésia e da Polinésia, como Tuvalu,
Quiribati e as Ilhas Marshall, com uma população total, apenas nesses três
arquipélagos, de 180 mil habitantes. Com a elevação do nível do mar, resíduos
radioativos, armazenados desde 1979 numa casamata chamada Runit Dome (nas Ilhas
Marshall), ficarão submersos, o que os levará a vazar no oceano, através das
crescentes rachaduras do concreto. De acordo com um relatório de 2013 do
Departamento de Energia dos EUA, “o solo ao redor da cúpula já é mais
contaminado que o seu conteúdo”. Esses resíduos correspondem a 30 toneladas de
Plutônio-239, com uma meia-vida de 24 mil anos, lá deixadas pelos
norte-americanos após as “67 detonações nucleares nas ilhas da Micronésia
ocorridas entre 1946 e 1958 – uma carga explosiva equivalente a 1,6 bombas de
Hiroshima detonada todos os dias ao longo de 12 anos”. Michael Gerrard, do
Sabin Center for Climate Change Law, na Columbia University, que visitou essa
casamata em 2010, declarou: “Runit Dome representa uma trágica confluência de
testes nucleares e mudanças climáticas. Ele é o resultado dos testes nucleares
norte-americanos e do abandono de grandes quantidades de plutônio. Agora, ele
começou a submergir em consequência da elevação do nível do mar ocasionado
pelas emissões de gases de efeito estufa por países industriais liderados pelos
Estados Unidos”.
Se acrescentarmos aos
impactos acima descritos outros efeitos da elevação do nível do mar, como a
salinização dos solos e da água doce (superficial e subterrânea) próxima ao
litoral, a destruição dos ecossistemas litorâneos (20% dos mangues já se
perderam entre 1980 e 2005), além da crescente vulnerabilidade das usinas
nucleares, podemos começar a fazer uma ideia do mundo que a máquina de
acumulação de capital a que chamamos capitalismo e nossa concepção
antropocêntrica do mundo, que é em última instância seu sustentáculo ideológico,
estão legando aos nossos filhos e à vida no planeta. (ecodebate)
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