Por que falar de direito à
água? Porque cada vez mais este direito pode ser ameaçado por novas
circunstâncias políticas e econômicas na sociedade brasileira. Este tópico é
muito recente como reflexão e discussão no Brasil e no mundo. Basta dizer que
ele nem consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Avalio que a sua
ausência neste documento que nasceu depois das atrocidades da Segunda Guerra
Mundial se deve ao fato de que o direito à água era visto como algo tão
assegurado que sequer necessitava ser ressaltado naquela Declaração. Ele
somente foi mencionado em documentos internacionais anos mais tarde nas
convenções que tratam de minorias que ainda lutam por direitos sociais e
individuais como mulheres, crianças e portadores de necessidades especiais. Foi
apenas na primeira década deste milênio que a Organização das Nações Unidas
teve este tema discutido com maior profundidade ao ter uma resolução pelo
direito à água votada pelos países membros, discussão esta pautada pela Bolívia
e que em sua primeira votação foi derrotada, sendo aprovada posteriormente em
2010.
É bem verdade que no Brasil
este direito já estava presente no Código das Águas, elaborado nos anos trinta
do século passado, ao garantir que as águas públicas deveriam priorizar a
“necessidade da vida”. Esta lei garantia o acesso a estas águas, mesmo que
fosse necessário aos que dela necessitavam que caminhassem por áreas privadas
que as margeassem.
Mas na prática nem sempre
este direito foi assegurado aos grupos mais vulneráveis no Brasil. Hoje sabe-se
que para proporcionar mão de obra barata para as fazendas de café e para as
indústrias do estado de São Paulo, por exemplo, governos federais dos anos
quarenta e cinquenta atrasaram obras hídricas no Nordeste como forma de
pressionar a migração forçada de moradores de áreas atingidas pelas secas, em
um flagrante desrespeito ao direito humano a dessedentação. Favelas e zonas
rurais sempre foram relegadas ao esquecimento no acesso a água limpa e de qualidade.
Basta lembrar que na última crise hídrica de São Paulo, comunidades periféricas
sofreram com a falta de água enquanto as mansões dos bairros ricos da cidade
continuaram com as suas piscinas cheias (não se conhece campanha publicitária
da Sabesp para que piscinas não fossem abastecidas, apenas as que culpavam o
“banho demorado” pelo desperdício de água). E como não lembrar dos povos
indígenas do Brasil e de outros cantos do planeta que são expulsos de suas
terras muitas vezes porque estas possuem água em abundância, fazendo com que
estes mudem para áreas onde terão dificuldade no acesso a rios ou lagos. Isso
nos leva a concluir que muitas vezes este direito é negado por interesses
políticos e econômicos.
Parte do mural Água, origem da
vida (Autoria de Diego Rivera)
Estudos também demonstraram que
por causa da dificuldade no acesso a água de qualidade para o consumo, mulheres
em áreas rurais caminham por quilômetros para conseguir chegar as fontes,
poços, lagos ou rios e trazê-la para suas casas em latas ou potes carregados em
suas cabeças. Este direito negado também vem vitimando milhões de crianças em
todo o mundo com doenças que são transmitidas por águas contaminadas em áreas
pobres das grandes cidades e em zonas rurais. Como não concluir que sem direito
à água, vários outros direitos também são negados aos mais pobres ou a grupos
historicamente vulneráveis. Ao furtar este direito essencial, populações
precisam migrar ao seu encontro para fugir da morte e muitas vezes é a morte
que encontram nesta busca.
Há um outro aspecto com relação
a este assunto nem sempre mencionado: o aproveitamento político que a negação
deste direito gera. No Brasil há vários casos. Embora o Nordeste sempre apareça
em primeiro plano quando o assunto é a troca de favores políticos por água,
como não lembrar dos chamados “políticos de bica d´água” no Rio de Janeiro em um passado não muito recente (década de sessenta e
setenta), quando lideranças partidárias trocavam votos por bicas d´água nos
morros cariocas. Também é o caso das periferias da cidade de São Paulo sua luta
por água encanada em suas casas ainda em nossos dias. Há ainda o caso da
transposição do Rio São Francisco, vendida como garantidora de água para parte
da população nordestina, quando é do conhecimento que aquela água transposta
será a garantia de irrigação para grandes plantações do agronegócio no
semiárido.
A ideia de que a água é um bem
comum a que todos os seres (humanos e não humanos) tem direito vem sendo
ampliada basicamente porque ela é cada vez mais um alvo do mercado que nela vê
uma oportunidade de lucro a perder de vista. A posse da água ou mesmo de sua
distribuição por monopólios empresariais privados em um mundo cada vez mais
urbano, coloca em perspectiva até que ponto os governos estão garantindo este
direito fundamental para a vida. Assegurá-lo é a garantia de que outros
direitos como saúde, higiene, lazer, o cultivo e o preparo de vários alimentos,
etc. também serão garantidos. É preciso ressaltar que não basta ser acessível,
é fundamental que seja limpa e de qualidade. Algo cada vez mais difícil devido
a sua poluição por agrotóxicos no campo e detritos industriais e domésticos nas
cidades.
A boa notícia é que esta
discussão já vem trazendo resultados positivos em várias localidades do Brasil
e do mundo no tocante a garantia do direito à água para as famílias mais
carentes. Em nosso país há a tarifa social com bases de cálculo diversos, a
depender do estado ou do município. Em outros lugares existe a discussão sobre
a gratuidade de uma quantidade de litros de água per
capita, com o entendimento
de que isto garante outros direitos como saúde, higiene, boa alimentação, etc.
Para a Organização
Mundial da Saúde (OMS) é necessário o consumo mínimo per
capita de cem litros
diários de água. Este montante seria o suficiente para uma pessoa saciar a
sede, ter uma higiene adequada e preparar os alimentos (muitas vezes não
levamos em contar que a quantidade de água que possuímos vai incidir na forma
como nos alimentamos). Não seria
então o caso de garantir que cada cidadão e cada cidadã tenham o direito a
estes 100 litros de água e somente paguem o que for consumido acima deste
número de referência? O quanto seria economizado em gastos com saúde, por
exemplo? Porém, mesmo a suposição deste direito está ameaçada pelo curso da
privatização das empresas de distribuição de água no Brasil atualmente.
O mercado da água como uma das
últimas fronteiras a ser desbravada por empresas atreladas a este novo negócio
é uma realidade vivenciada por várias populações em nosso país. Não que ela não
tenha sido privatizada antes em muitas localidades brasileiras, mas esta
privatização não estava sob a tutela da lei e o incentivo de governos. Também
não significa que sendo pública o direito a seu acesso será garantido. Muitas
comunidades ainda reivindicam água em suas torneiras em estados e municípios
brasileiros que monopolizam a sua posse. Entretanto, sendo pública isso torna
mais fácil a pressão sobre os poderes responsáveis pela sua distribuição, por uma
tarifa que contemple os ganhos dos mais pobres ou até mesmo pela distribuição
de uma quantidade mínima gratuita que garanta saúde, higiene e alimentação de
qualidade. Não devemos e nem podemos demonizar o mundo dos negócios privados,
pois o Estado não pode a tudo prover todo o tempo, mas a água é um elemento
natural basilar para manter a vida no planeta e a sua monopolização por um
grupo econômico é por demais perigosos. O lucro gerado para estas empresas será
imenso e há de aumentar em seus balanços anuais, pois diferentemente de outros
itens comercializáveis, a água está pronta para a venda tendo como custo a sua
distribuição.
A água privatizada não
alcançará os que dela necessitam e priorizará apenas aqueles que podem por ela
pagar. Os menos favorecidos da sociedade serão, mais uma vez, privados de um
direito essencial à sua sobrevivência. Não custa sempre repetir que “água não é
mercadoria”. (ecodebate)
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