Mundo
pelo avesso: É preciso lutar para não morrer de sede nas margens dos rios.
Um dos atos da luta emblemática
do povo de Correntina pelo direito à água.
“Ninguém vai morrer de sede
nas margens do rio Arrojado. E ninguém também não pode morrer de sede nas margens
de rio nenhum. A sociedade tem que lutar pela vida. E a luta pela água é essa”,
afirma Jamilton Magalhães, conhecido como Carreirinha, da Associação de Fundo e
Fecho de Pasto de Correntina, na Bahia. Infelizmente, a intenção de Carreirinha
não corresponde à realidade dos fatos. Apenas em 2016, cinco pessoas morreram
em decorrência de conflitos pela água. A informação é do relatório Conflitos do
Campo Brasil, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2017, que
aponta 172 conflitos de água no Brasil. Segundo a própria CPT, esse número pode
ser ainda maior, pois algumas mortes ocasionadas pela luta pela terra também
abarcam conflitos pela água. Na verdade, a palavra conflito esconde (ou pode
atenuar) a seriedade do embate, que se acentua cada vez mais no Brasil rural
entre grandes fazendeiros e especuladores de terras e moradores do território
que convivem há gerações em harmonia com as plantas e animais, preservando
tanto os recursos naturais, como as águas superficiais de rios e córregos e aquelas
guardadas nos lençóis freáticos.
Na cidade de Correntina,
oeste baiano, essa é uma realidade constante há cinco décadas, com a chegada
dos fazendeiros vindos da região sul do país e se intensificou no final dos
anos 1990 com o investimento do capital estrangeiro – japoneses, chineses,
italianos, americanos, entre outros. “As terras de Correntina foram ocupadas há
mais de 300 anos e neste período nenhum rio havia secado. A partir da
década de 1970, o agronegócio chegou na região e aí que iniciaram, de fato, os
conflitos na região. E, mais fortemente, nos últimos 20 anos, a partir da
chegada do agronegócio internacional, vários rios começaram a desaparecer”,
aponta Jandira Lopes, da Acefarca, uma das organizações da ASA que atua no
território.
Correntina é uma cidade com
33 mil habitantes e cercada por vários rios, o que leva à cobiça de grandes
fazendeiros, devido à oferta hídrica. Historicamente, esse povo vive da
agricultura e da criação de animais, organizados em comunidades de Fundo e
Fecho de Pasto, com seus espaços coletivos onde os rebanhos são criados soltos.
“Como o vale [do rio Arrojado] em si era muito rico em pastagem, os animais
eram quem determinavam os territórios, andavam de fora a fora. E, com a chegada
deste povo do Sul do país e até de outros países também, começou a apossar
desta terra trazendo documentos forjados, escrituras montadas e com capangas,
pistolagem, uma certa quantia de balas para amedrontar o povo. Aquilo que era
livre, um território sem cerca, começou a se limitar”, diz Jamilton Santos
Magalhães, da Associação de Fundo e Fecho de Pasto de Correntina.
Correntina já foi destaque na
mídia algumas vezes por conta da exploração dos seus recursos naturais.
Recentemente, os holofotes se voltaram para a cidade por causa do conflito da
população da cidade com os fazendeiros locais. Ao passo que os moradores de
Correntina sofrem com a escassez de água, o Instituto do Meio Ambiente e
Recursos Hídricos (Inema) concedeu à Fazenda Igarashi, por meio da Portaria nº
9.159, de 27 de janeiro de 2015, o direito de retirar do rio Arrojado uma vazão
de 182.203 m³/dia, durante 14 horas/dia, para a irrigação de 2.539,21 hectares,
o equivalente a 106 milhões de litros de água por dia.
“Como é que uma fazenda pode
usar num dia o que seria suficiente para abastecer 6,6 milhões de cisternas no
Semiárido ou para abastecer uma cidade de 30 mil habitantes no mês? Então é
contraditório dizer que isto está dentro da legalidade”, afirma Cleidiane
Barreto, da comunidade de Fecho de Pasto, jovem militante do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) e comunicadora popular da Acefarca.
Para Jandira, a questão é que
o governo concede as outorgas, mas não fiscaliza no dia a dia. “Eles vão usar
de acordo como eles querem, na medida em que eles quiserem e que tiverem
necessidade. Pra muita gente, algumas outorgas que são dadas no município de
Correntina são para o período de sequeiro, mas se falta a chuva neste período
agora [que seria de chuva] é claro que eles vão utilizar [a água]. O que
governo tem controle disso? Têm medidores? A gente sabe que não tem. A fazenda
Iguarashi é esse caso aí”.
Intercontinental – A realidade de Correntina está incluída em um
contexto bem maior. A região faz parte do Matopiba ou Mapitoba, que é um
projeto governamental de incentivo ao agronegócio envolvendo parte dos estados
do Maranhão, Piauí e Bahia e todo o estado do Tocantins. É justamente nessa
região do Cerrado onde vivem diversos povos e comunidades tradicionais, que
está a maior oferta hídrica do País. São essas águas, inclusive, que alimentam
o rio São Francisco, que está em colapso há algum tempo devido a má gestão das
suas águas.
Não por acaso, o Cerrado está
na mira da expansão da produção de commodities para exportação. É a fronteira
agrícola da vez. E o resultado deste “desenvolvimento” que gera um enorme
passivo social e ambiental é o desmatamento acelerado do bioma. São derrubados
por minuto o equivalente a 2,6 campos de futebol no Cerrado. Nesta velocidade,
em 12 anos, o Cerrado não existirá mais.
O estudo Pegada hídrica das importações europeias de produtos agrícolas:
tendências e desenvolvimento no contexto da escassez de água feito pela Technische Universität Berlin a
pedido da organização alemã Bröt fur die Welt (Pão para o Mundo) e apresentado
no Brasil em março, aponta Minas Gerais como o Estado brasileiro que mais
exporta ‘água virtual’ para a União Europeia e para Alemanha. Segundo Iulia
Dolganova, uma das pesquisadoras responsáveis, quando os dados de exportação
são analisados sem considerar a água embutida nos alimentos, o destaque vai
para o Mato Grosso, conhecido pela exportação de grãos, em especial soja. Mas
ao incluir a quantidade de água utilizada nesses produtos exportados, Minas
Gerais se destaca. Assim como a Bahia, o Cerrado mineiro tem sido explorado
pelo agronegócio com o monocultivo do café e do eucalipto.
A pesquisa, que analisou
apenas dados da água azul (que são as águas subterrâneas e superficiais),
também demonstra que dos 11 Km³ de águas importadas pela União Europeia (UE)
apenas em 2015, o impacto é maior em países como Paquistão e Turquia, que já
vivenciam crises hídricas, o que demonstra que esse modelo de produção focado
na exportação está longe de favorecer as populações locais. Ao contrário,
acabam degradando os recursos naturais. Segundo Luis Muchanga, da União
Nacional de Camponeses de Moçambique (Unac) – país que também teve analisados
seus dados de exportação agrícola para UE – embora a região não seja conhecida
pela escassez hídrica, “já há muitos casos de conflitos em regiões banhadas por
rios, uma vez que as comunidades são expulsas dos seus territórios ou impedidas
pelas grandes empresas de fazer uso dessas águas”. Os dados da pesquisa indicam
que, entre os anos 2000 e 2015, as importações da UE contribuíram para aumentar
em 24 vezes a escassez hídrica em Moçambique.
A luta do povo de Correntina
é a luta de muitos povos e comunidades tradicionais mundo afora, que são
invisibilidades pelo poder público e pela mídia. No Fórum Alternativo Mundial
da Água (Fama), ocorrido no final do mês de março, em Brasília, foi lida uma
Carta-Denúncia dos Povos, que aponta a importância desse bem para essas
populações e também denuncia as práticas do agronegócio. “Clamamos por socorro
das nossas matas, florestas e águas que vêm sendo violentadas por práticas que
levam a contaminação, como a de rejeitos tóxicos das atividades de mineração,
do derramamento de esgotos não tratados, de práticas de desmatamento, criação de
gados que destrói a natureza e as nascentes acabam secando”. Clique aqui para ler
o documento na íntegra.
“A gente percebe que a luta pela água é do Vale
do Arrojado, é da região Oeste, é do Brasil, mas é uma luta mundial. E como é
que o povo pode ajudar Correntina? Nem só ajudar Correntina, mas como é que o
povo pode ir contra esse modelo de acabar com as águas? É que Correntina
não fique sendo apenas a luta de Correntina, que também haja outras formas [de
enfrentamento] em outros lugares.
Porque o que nos atinge em Correntina, atinge vários outros países. Então é
internacionalizar mesmo a luta em defesa das águas”, afirma Cleideani.
Para o agronegócio, a
água é um bem comum?
Já dizia o ditado: contra
fatos não há argumentos. Mas mesmo assim, a Confederação Nacional da
Agricultura e Agropecuária do Brasil (CNA), lançou a cartilha Fatos e Mitos,
durante o 8º Fórum Mundial da Água. O documento tem como objetivo desmistificar
a premissa de que a irrigação é vilã da escassez hídrica.
A primeira questão apontada
como um mito é de que 70% da água do Brasil é usada para irrigação. Segundo a
FAO, a agricultura é responsável pelo uso de até 70% da água do mundo. Dados da
Agência Nacional de Águas (ANA), responsável por regular todo o sistema hídrico
nacional, publicados no relatório Conjuntura Hídrica no Brasil confirmam que
“atualmente, o principal uso de água no país, em termos de quantidade
utilizada, é a irrigação”. De maneira didática e ilustrada, o documento ainda
aponta que “a demanda total de água retirada para irrigação no Brasil é
969m³/s. Esse uso é ainda mais relevante quando se considera o consumo, pois o
retorno direto ao corpo d’água é muito pequeno quando comparado aos demais
usos”. Em números, estamos falando de um consumo de 745m³/s, contra 224m³/s de
retorno. Para ler o relatório na integra, clique aqui.
Segundo o pesquisador da
Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, “esse percentual de 70% de água
utilizada na irrigação é um dado verdadeiro, e no Brasil é até um pouco mais de
70%. Não há gestão desses recursos hídricos aqui no nosso país. Então fica uma
coisa meio maluca. Inclusive, a situação do [rio] São Francisco hoje torna bem
clara essa nossa preocupação. Pra você ter uma ideia, na região do Mapitoba,
eles estão utilizando as águas de subsolo do Aquífero Urucuia, que é uma
aquífero que atende não só a Bacia do São Francisco, mas atende também a Bacia
do Rio Tocantins”.
Nesse ‘sistema vascular’ que
são as águas brasileiras, as águas de Urucuia alimentam o rio Arrojado, em
Correntina. É tudo como uma grande teia. “O que o povo precisa entender é que o
Cerrado do oeste baiano não é importante só para o oeste baiano, não é
importante só para Correntina. O Cerrado é importante para o Brasil, o Cerrado
é importante para o mundo. Há dois anos se iniciou a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado – Sem
Cerrado, Sem Água, Sem Vida. Acho que a população precisa
acordar para isso e que precisa fazer esta luta conjunta em defesa das águas”,
ressalta Jandira Lopes.
Entre outras questões não
menos controversas, a publicação da CNA ainda afirma que os pivôs centrais não
gastam muita água. “Um pivô central de porte elevado, um pivô que irriga de uma
tacada cem hectares. Aquelas rodelas que a gente vê, aqueles círculos, aquilo
ali chega a ter 10 hectares. É um pivô desse que tira do subsolo 2600 m³/h. E
naquela região do Mapitoba tem mais de cem equipamentos desses. Então você vê
que é um uso maluco de água naquela região. Se não houver cuidado pra você
gerenciar de forma mais segura esse tipo de coisa, o recurso hídrico vai
embora! Ele é finito!”, alerta João Suassuna.
Jandira Lopes destaca que “a
grande maioria destas fazendas, além de tirar a água dos rios através dos
pivôs, têm a abertura de poços artesianos de alta vazão. Isto também faz com
que a água dos rios vá diminuindo”.
Outra premissa que a CNA tenta desmentir é o
fato da água para irrigação ser classificada como uso consuntivo. Para entender
melhor, segundo a ANA, qualquer atividade humana que altere as condições
naturais das águas é classificada como consuntiva ou não consuntiva. “Os usos consuntivos
são aqueles que retiram água do manancial para sua destinação, como a
irrigação, a utilização na indústria e o abastecimento humano. Já os usos não
consuntivos não envolvem o consumo direto da água – a geração de energia
hidrelétrica, o lazer, a pesca e a navegação, são alguns exemplos, pois
aproveitam o curso da água sem consumi-la”, explica a ANA no seu site
institucional.
Na publicação Fatos e Mitos,
a CNA afirma que o critério “não leva em consideração que parte da água de
irrigação vira alimento, parte volta ao ciclo hidrológico na forma de vapor
d’água e outra parte penetra na terra e serve de recarga aos aquíferos”. No
entanto, João Suassuna contesta: “se for desse jeito, nada tem uso consuntivo.
Se você tira a água do rio para abastecer a população, por exemplo, essa água
quando chegar nos municípios também vai evaporar e vai entrar no ciclo
hidrológico? Não é dessa forma. Então é uso consuntivo, sim, porque é retirada
do rio e a água não retorna para o rio. A irrigação é um uso consultivo, sim, e
tem os seus problemas pra se fazer isso. Pois como você está tirando essa água
em volumes enormes, você está, de certa forma, diminuindo aquela vazão do rio”,
explica ele.
A conta pelo uso desenfreado das águas é alta e
está sendo paga pelo povo brasileiro, especialmente pelas comunidades e povos
tradicionais, que sempre produziram seus alimentos ao mesmo tempo em que cuidam
dos recursos naturais. Agora esses povos têm sido privados de usufruir desses
recursos, quando não perdem também seus territórios e, junto, a sua identidade.
“As terras [em Correntina] que ainda têm água são nas comunidades de
Fundo e Fecho de Pasto e é uma luta durante vários anos destas comunidades para
legalizar os territórios, a tentativa da discriminatória [ação
discriminatória das terras públicas para reconhecer a titularidade das
comunidades tradicionais]”, afirma Jandira. (ecodebate)
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