A transição da fecundidade
é um dos fenômenos sociais de mudança de comportamento de massa mais
importantes da história da humanidade. Existe consenso na queda da mortalidade.
Mas não existe a mesma unanimidade diante da queda da fecundidade, pois há
muitas “escoras culturais pronatalistas”.
Mesmo assim, praticamente
todos os países e regiões do mundo (o Níger é uma grande exceção) já iniciaram
o processo de transição da fecundidade. Contudo, o nível, o padrão, o início, o
ritmo de queda e o final do processo variam sobremaneira. De modo geral,
pode-se dizer que a Europa (e países de forte influência europeia como EUA,
Canadá e Austrália) liderou a transição demográfica, pois foi o continente que,
ainda no século XIX, experimentou a redução do tamanho médio das famílias.
O gráfico acima mostra que
a taxa de fecundidade total (TFT) dos países desenvolvidos já estava abaixo de
3 filhos por mulher em 1950. A Ásia, a América Latina e Caribe (ALC) e a África
Subsaariana tinham TFT acima de 6 filhos por mulher. Contudo, a Ásia e a ALC
iniciaram a transição da fecundidade na década de 1960 e devem ficar com TFT
abaixo do nível de reposição (2,1 filhos por mulher) já na década de 2020.
Entretanto, a transição da
fecundidade da África Subsaariana só começou na década de 1980 e acontece de
forma lenta, quando comparada com as outras regiões do mundo. O gráfico abaixo
mostra que o tempo gasto para a TFT passar de mais de 5 filhos para menos de
2,1 filhos por mulher foi de 50 anos na ALC e de 55 anos na Ásia. Porém vai
gastar 100 anos na África Subsaariana. Como começou mais tarde e vai demorar
mais tempo, a lenta transição da África Subsaariana vai fazer com que a média
mundial gaste 110 anos para passar de 5 para 2,1 filhos.
A tabela abaixo mostra o
ultimo quinquênio antes da TFT cair abaixo de 5 filhos por mulher e o primeiro
quinquênio com TFT abaixo do nível de reposição. Nota-se que a África
Subsaariana só terá fecundidade abaixo de 2,1 filhos por mulher no século XXII.
Isto também vai atrasar a redução da fecundidade na média mundial.
O efeito de uma transição
da fecundidade tardia é o rápido crescimento demográfico. Segundo a Divisão de
População da ONU, em 1950, a população da Europa era de 549 milhões de
habitantes, de 544 milhões na China, de 376 milhões na Índia, 179 milhões na
África Subsaariana e 169 milhões na América Latina e Caribe (ALC). A população
somada de Europa, China, Índia e ALC era de 1,6 bilhão de habitantes, sendo que
a população da África Subsaariana naquela época representava cerca de 10% deste
total.
Mas como o ritmo da
transição da fecundidade foi diferente em termos nacionais e regionais a
distribuição espacial e o ritmo de crescimento populacional mudou a
configuração entre os continentes. Em 2016, a Europa já apresentava o segundo
menor contingente de habitantes (641 milhões) a China e a Índia ficavam com
primeiro e segundo lugar e a África Subsaariana, com 1 bilhão de habitantes
ficava em terceiro lugar.
Para 2046, a situação vai
mudar bastante conforme as projeções médias da ONU. A população da África
Subsaariana deve atingir 2 bilhões de habitantes, ficando em primeiro lugar. Em
seguida vem a Índia com 1,7 bilhão de habitantes, superando a China (com 1,36
bilhão), a ALC com 779 milhões de habitantes, superando a Europa com 711
milhões de habitantes.
Na
segunda metade do século XXI, a população vai decrescer na maior parte do
mundo, mas vai continuar crescendo na África Subsaariana e deve atingir 3
bilhões de habitantes em 2072 e 4 bilhões de habitantes em 2100. Ou seja, no
final do século, a população da África Subsaariana será equivalente à população
de Índia, China, Europa e ALC também com 4 bilhões de habitantes. Portanto,
entre 2016 e 2100 a população da África Subsaariana vai passar de 1 bilhão para
4 bilhões de habitantes, colocando um grande desafio para a redução da pobreza,
a melhoria da qualidade de vida e a sustentabilidade ambiental. Há que destacar
que o Norte da África já está em uma fase mais adiantada da transição
demográfica e deve apresentar estabilidade do crescimento até o final do
século.
Para entender a lenta
transição demográfica da África Subsaariana vale a pena ler o trabalho Africa’s
unique fertility transition, do demógrafo John Bongaarts, publicado na
prestigiosa revista acadêmica Population and Development Review (PDR), em 2017.
Segundo o autor, a diferença da África Subsaariana em relação à outros países e
regiões é que a transição demográfica acontece de maneira tardia (later), em
ritmo mais lento (slower), teve início em um limiar de desenvolvimento mais
baixo (Earlier) e o nível da fecundidade é elevado (higher) do que em outras
regiões do mundo, assim como é menor o uso de métodos contraceptivos. Segue abaixo as conclusões do artigo de J. Bongaarts:
“The
slow pace of the African transitions and the occasional stalling of fertility
declines can therefore be attributed to several factors. First, the pace of
African development has been slow and, other things being equal, this alone
would lead to slower transitions. Second, the pronatalist nature of African
societies implies a resistance to fertility decline that is absent or weaker in
non-African countries. Finally, although I have not examined the role of family
planning programs in Africa, the fact that these programs remain weak in many
African countries undoubtedly contributes to slow transitions in much of the
continent. By contrast, in the few countries where governments have made family
planning programs a priority (e.g., Ethiopia, Malawi, and Rwanda), rapid uptake
of contraception and fertility decline have followed”.
Artigo de David Shapiro,
Andrew Hinde (N’IUSSP, 18/12/2017) discute as implicações da lenta transição da
fecundidade na África Subsaariana. Eles dizem:
“Why
might this be? One clue is the lower level of variability within sub-Saharan
Africa in the pace of fertility decline than was experienced in the other
regions. This suggests that there may be pan-African (or at least
pan-sub-Saharan African) cultural factors which act as a drag on fertility
decline. Two possibilities are the continuing importance of the extended family
and child fostering, both of which may be associated with a high demand for
children who ‘belong’ to the extended family, rather than their biological
parents. Besides, the solidarity associated with the extended family reduces
the costs of children to their biological parents”.
O fato é que a lenta
transição da fecundidade na África Subsaariana – ao manter alto crescimento
populacional e uma alta razão de dependência de jovens – retarda o
aproveitamento do bônus demográfico, agrava a situação da “armadilha da
pobreza” e compromete um futuro de bem-estar populacional.
Segundo Costa Azariadis, no artigo “The theory of poverty traps: What
have we learned?” (2004), um país encontra-se em círculo vicioso quando a situação de
pobreza convive com baixos níveis de investimento em educação e saúde pública,
quando existem altas taxas de mortalidade infantil, grande insegurança pública,
baixa esperança de vida, reduzido tempo de vida dedicado ao trabalho produtivo,
baixo investimento em infraestrutura e baixos investimentos em setores
produtivos, ciência e tecnologia, etc. A armadilha da pobreza seria uma
situação em que o alto crescimento do número de pessoas pobres dificultaria a
redução da percentagem da população pobre do país.
Azariadis considera que
para sair da armadilha da pobreza é preciso garantir uma boa governança, manter
a estabilidade institucional, combater os governos cleptomaníacos, aumentar os
investimentos em políticas públicas de educação, saúde e habitação, reduzir as
taxas de mortalidade infantil e de fecundidade, aumentar o percentual da
população em idade ativa, aumentar a esperança de vida, aumentar as taxas de
poupança e investimentos, aprofundar a base técnica para a produção de bens e
serviços e para a maior geração de empregos e proteção social, etc.
Artigo publicado na
prestigiosa revista Nature (OSGOOD-ZIMMERMAN, 2018) mostra que nenhum país
africano conseguirá alcançar o objetivo da ONU de acabar com a desnutrição
infantil até 2030. O estudo descobriu que os indicadores de desnutrição
permaneceram “persistentemente elevados” em 14 países, estendendo por todo o
Sahel africano, do Senegal na costa oeste à Eritréia na costa leste.
Para piorar a situação,
existe uma grande degradação dos solos e das águas, além do aumento da
desertificação. Estudo da Universidade de Maryland (2018) mostra que o Deserto
do Saara se expandiu em cerca de 10% desde 1920. A pesquisa é a primeira a
avaliar mudanças em escala de um século nas fronteiras do maior deserto do
mundo e sugere que outros desertos poderiam estar se expandindo também.
Desta
forma, somente com mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais se pode
passar do círculo vicioso da pobreza para o círculo virtuoso do desenvolvimento
humano e ambientalmente sustentável. Muita coisa precisa ser feita. Mas,
indubitavelmente, a aceleração da transição da fecundidade é uma das
pré-condições para a superação da pobreza e a defesa do meio ambiente na África
Subsaariana. (ecodebate)
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