É difícil acreditar que isso
aconteça aqui, onde dois terços da superfície estão cobertos por imensos mares,
rios, lagos e geleiras, sem considerar o estoque gigantesco de água
subterrânea. No entanto, está acontecendo...
É verdade que apenas uma
pequena parte do total é de água doce. Também é verdade que sua distribuição
pela Terra é desigual. Mas estamos falando de um recurso em constante renovação,
que já foi suficiente para atender às necessidades de todos os seres vivos do
Planeta. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial da Água, divulgado em 2003
pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),
órgão responsável pelo Programa Avaliação da Água no Mundo (WWAP) afirma que,
em 50 anos, entre 2 e 7 bilhões de pessoas não terão acesso à água de boa
qualidade e em quantidade suficiente.
Mesmo tão grave, a ameaça
pode ser resumida numa fórmula simples: gastamos mais do que temos disponível;
poluímos dez vezes mais do que consumimos, e desperdiçamos uma quantidade
incalculável da água que tratamos.
Existem, porém, outros
elementos a serem acrescentados a esse quadro, uma vez que a água não é
consumida apenas pelos seres humanos: é compartilhada com todos os outros seres
vivos. Como a população humana, bilhões de exemplares das mais de 10 milhões de
espécies existentes no Planeta também sofrerão os impactos da nossa poluição,
do nosso excesso de consumo e do nosso desperdício. Mais: como outros bens
naturais essenciais aos seres humanos, a oferta da água depende diretamente do
estado de conservação dos ambientes naturais. Portanto, se os bilhões de seres
vivos que compõem a diversidade dos ecossistemas naturais estão sujeitos à
escassez, isso significa que suas funções ecológicas essenciais serão afetadas
e há risco de colapso dos ecossistemas de água doce, comprometendo qualquer
perspectiva de solução.
Identificar as causas da escassez de água no
mundo é o primeiro passo para evitar tal desastre. Nas últimas décadas, duas
grandes tendências dividem as discussões internacionais sobre o tema. A
primeira, dominante nas esferas oficiais, atribui o problema ao mau uso dos
recursos hídricos e à falta de modelos modernos de gerenciamento econômico para
sua regulação. A outra, amparada da por grupos não-governamentais e acadêmicos,
aponta a destruição da biodiversidade em escala global como a gênese da crise.
As causas, na verdade, são complementares, e é da fusão dessas duas correntes —
e das soluções para as quais elas apontam — que será construída uma saída para
o futuro.
O fato é que o crescimento da demanda por água no
planeta é quase exponencial: enquanto a população do Planeta dobrou, entre 1900
e 1997, o consumo de água cresceu mais de 10 vezes. Dados de 1940 apontam o
consumo médio de água por pessoa de 400 m3/ano enquanto, em 1990, esse número
já havia chegado a 800 m3/ano. Esse consumo médio inclui toda a água
utilizada por atividades produtivas, além de saciar a sede da população humana.
Não bastasse o comprometimento dos ecossistemas de
água doce pela forte pressão da demanda por água para abastecimento e produção,
os rios também foram e continuam sendo usados para diluir resíduos provenientes
de esgotos, lixo doméstico, efluentes industriais e insumos químicos da
agricultura. Estima-se que cerca de 2 milhões de toneladas de lixo são jogadas
diariamente em rios e lagos da Terra, e que 12 mil km3 de água
estejam poluídos em todo o mundo. Se as taxas de poluição mantiverem o atual
ritmo de crescimento, esse número saltará para 18 mil km3 de águas
poluídas até 2050!
Medidas isoladas de saneamento, como expansão da
oferta de água para abastecimento público, também aumentam a poluição dos rios.
Luiz Lobo, no livro Em busca da universalização afirma que, para cada m3
de água tratada consumida produz-se outro metro cúbico de água servida. Como a
implantação dos serviços de coleta e tratamento dos esgotos não ocorre junto
com a implantação da rede de água, a água servida antes contida localmente — em
fossas sanitárias e afins — passa a ter como destino os cursos d'água mais
próximos.
Para agravar ainda mais o quadro, do ponto de vista
do mau uso e da falta de gerenciamento, um volume incalculável de água se perde
nas tubulações, principalmente por causa de infiltrações e vazamentos. A Europa
tem índices de perda em torno de 10%. Algumas localidades da Ásia, como
Cingapura, perdem 6%. No Brasil, de acordo com um grupo de pesquisadores da
Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (COPPE-UFRJ), o índice de desperdício chega a 47%, ou seja,
cerca de 6 bilhões de m3 de água tratada se perdem por
ano!
Embora os números relacionados a consumo,
desperdício e poluição sejam contundentes, é marcante, nessas abordagens, a
ausência de referências claras à função dos diferentes elementos que integram o
ciclo da água. A destruição dos ambientes naturais, por exemplo, raramente é
associada à questão, embora as derrubadas dos últimos 20 anos somem milhões de
hectares de florestas, em todo o Planeta (pelo menos 16 milhões de hectares de
florestas perdidas por ano, segundo a Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação - FAO).
A destruição de florestas afeta o suprimento de água
dos lençóis freáticos e reduz a oferta de água nas regiões desmatadas, com
impactos diretos sobre os ecossistemas de água doce, como enchentes
avassaladoras causadas pela degradação do solo; extinção de espécies (de peixes
e outros seres aquáticos); aterramento de nascentes e de áreas alagadiças. Isso
cria um círculo vicioso, afetando ainda mais o suprimento do lençol freático e
reduzindo a vazão dos rios por assoreamento. As consequências da ruptura dos
sistemas naturais de produção e de purificação da água ultrapassam os limites
dos problemas de gerenciamento econômico. E por uma razão bem simples:
ecossistemas degradados e espécies extintas não são reconstituídos pelo engenho
humano responsável pela sua destruição.
O aumento da demanda por água é uma das
consequências do crescimento populacional.
Na esteira de problemas decorrentes da destruição
dos ambientes naturais estão ainda os efeitos do aquecimento global. As
mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases na atmosfera já provocam
alterações no ciclo anual de chuvas; aumentam os períodos e a intensidade do
calor; prolongam secas e estão na origem de grandes tempestades e inundações.
As consequências de todas essas mudanças sobre os ecossistemas de água doce aumentam
— e muito — o risco de escassez.
Também a expansão predatória do uso dos bens da
natureza encontra limites físicos concretos e gera novas categorias de
escassez. E o aumento do valor desses recursos escassos pressiona a composição
dos custos dos produtos que dele necessitam, a ponto de ameaçar a própria
capacidade de reprodução do capital investido. Diante disso, surgem mecanismos
para regulamentar o uso dos elementos escassos como forma de evitar uma crise
maior.
Com a água aconteceu assim. O bem natural passou à
categoria de ‘ouro azul’ no Século 21 porque, no atual modelo de consumo, o
estoque já não é suficiente. Portanto, passamos a tratar a água como
mercadoria, regulando seu uso. Em todo o mundo surgem mecanismos para
estabelecer limites e valores para o acesso à água, como mostram os resultados
das últimas reuniões mundiais sobre o tema: o documento final do 3º Fórum
Mundial da Água, realizado no Japão, em 2003, contém uma extensa lista de
recomendações quanto ao gerenciamento dos recursos, com um solitário e lacônico
artigo de 4 linhas sobre a conservação da biodiversidade.
A declaração do 4º Fórum,
realizado no México, em 2006, é ainda mais discreta. Limita-se a afirmar:
“notamos com interesse a importância de acrescentar a sustentabilidade dos
ecossistemas”.
De qualquer modo, a
universalização das discussões, mesmo focadas nos aspectos econômicos, tem o
mérito de ampliar a busca por soluções. Muitos países hoje dispõem de leis
específicas para os recursos hídricos. No Brasil não é diferente: ocupando o
23º lugar entre os países com maior volume de água disponível por pessoa, o
País ainda tem quase 40% de domicílios sem acesso à rede de abastecimento de
água e mais de 65% de domicílios sem rede de coleta de esgoto. Os rios são
utilizados como lixeiras domésticas e industriais, além de receber enorme
volume de solo, via de regra, contaminado com venenos agrícolas. Nas cidades,
onde vive grande parte da população brasileira, os ambientes naturais foram
degradados ao extremo; as nascentes, soterradas; as várzeas e as margens dos
rios, ocupadas por favelas, e os rios se confundem com esgotos a céu aberto.
Para enfrentar o problema, foi aprovada, em
1997, a Lei nº 9433, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.
Nela, a água é definida como “um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico”, o que estabelece a base, entre outras ferramentas, da cobrança pelo
uso da água bruta. A implementação da Lei ocorre lentamente, mas as iniciativas
baseadas no novo conceito de recurso natural dotado de valor econômico produzem
frutos interessantes. É o caso da chamada ‘água virtual’, ou seja, a quantidade
de água usada na produção de alimentos e, portanto, ‘exportada’ com os
produtos. Em 1995, 66% da água doce retirada dos mananciais da Terra
destinaram-se à agricultura, segundo a FAO. No Brasil, no mesmo ano, o
percentual foi de 61%.
Cálculos de especialistas do
Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas
(NEPO-Unicamp) estimam que, em média, cada quilo de soja exige 2 mil litros de
água para ser produzido, enquanto a carne bovina consome 43 mil l/kg. A ‘água
virtual’ está ainda presente numa infinidade de produtos industriais, como
celulose e papel, colocando o País na condição de grande exportador virtual de
água. A pergunta que se coloca no centro dessa discussão é: qual a relação
custo/benefício dessa exportação virtual para o país exportador?
Dentro de casa, as indústrias
mostram empenho em se ajustar a novos tempos. A Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo (Fiesp) e a Agência Nacional de Águas (ANA) publicaram um Manual
de Orientações ao Setor Industrial sobre Conservação e Reuso de Água,
incentivando a implantação de programas que se revertem em “benefícios
econômicos que permitem aumentar a eficiência produtiva, tendo como
consequência direta a redução do consumo de água, a redução do volume de
efluentes gerados e, como consequências indiretas, a redução do consumo de
energia e de produtos químicos, a otimização de processos e a redução de
despesas com manutenção”. Ações como essa — explica o manual — “têm reflexos
diretos e potenciais na imagem das empresas, demonstrando a crescente
conscientização do setor com relação à preservação ambiental e responsabilidade
social”.
A sofisticação do mercado de
água mineral é outro fenômeno resultante desse novo olhar. As águas minerais
são provenientes de fontes naturais ou artificialmente construídas e possuem
composição química ou propriedades físico-químicas distintas das águas comuns.
Porém, o consumo crescente de águas minerais não está apenas associado ao
diferencial de qualidade e, sim, a dois outros fatores: certa desconfiança
sobre a ‘água de torneira’ e a praticidade das embalagens portáteis, que podem,
inclusive, correr mundo.
O Brasil é o sexto país
produtor de água mineral, com uma produção de cerca de 6 bilhões de litros por
ano. O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) estima em 600 as fontes
autorizadas — 300 das quais em funcionamento — e mais de 3.500 pedidos de novas
lavras. Dentro dos limites legais estabelecidos para extração da água mineral,
a atividade pode ser um elemento favorável à conservação do ambiente, desde que
a fiscalização seja eficiente e suficiente. Do ponto de vista do mercado, é uma
vertente que atrai grandes empresas internacionais e tem como líderes empresas
como Nestlé e Coca- Cola, com faturamento anual acima de US$ 4 bilhões,
cada.
Sob diversas formas, a água
já é uma mercadoria e o temor de que esse mercado em expansão signifique o
controle de uma substância essencial à vida levou a Conselho Nacional de
Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), a Confederação Suíça de Igrejas Evangélicas (SEK) e a Comissão Nacional
Justiça e Paz da Suíça a divulgar, em 2005, a Declaração Ecumênica sobre a Água
como Direito Humano e Bem Público enfatizando a água como “bem fundamental para
a vida, que não pode nem deve ser privatizado”.
Ênfase no acesso e não no controle da poluição
nem na conservação dos ambientes naturais. Disciplina de mercado em lugar de
garantia de controle público. Água como mercadoria. Caminhos perigosos que
podem levar a um colapso. A canadense Maude Barlow, autora de um dos maiores
sucessos sobre o tema — Blue Gold (Ouro Azul) — não acredita que essa regulação
econômica conduza a uma solução. “É um problema de conceito. Parece-me que se
dá ênfase ao acesso, mas não à escassez ou à contaminação da água. Sem uma
legislação bem severa, por exemplo, jamais se poderá parar a contaminação da
água”, diz. Para ela, a questão principal é que “a água pertence à Terra, a
todas as espécies. É um direito humano fundamental, não uma mercadoria de
troca. Deve ser preservada para as futuras gerações. Se é privatizada, quem
velará pela natureza? A quem vai interessar que os animais tenham acesso à
água? Ou que os ecossistemas se nutram adequadamente?”
Em outras palavras, os
indígenas canadenses colocam a mesma questão, em sua Declaração sobre a água,
de 2001: “Quando a Água é ameaçada, todas as coisas viventes também são
ameaçadas. Nossos corações pranteiam quando testemunhamos as maneiras em que
pessoas, por intermédio de governos e empresas multinacionais, destroem a Água
devido à sua avidez. Da mesma forma que a Água nos dá vida, temos que lutar
pela vida da Água”.
Na verdade, tratar
separadamente aspectos econômicos e conservação da natureza conduz a equívocos
que levam, inevitavelmente, a uma crise maior. Não se pode considerar como
mercadoria um elemento presente em pelo menos ⅔ da composição de quase todos os
seres vivos. Estima-se que pelo menos 1% da água doce do planeta está em
constante troca nos organismos vivos. A lágrima da criança, o suor do
agricultor, a transpiração dos vegetais, a urina dos animais se confundem, e se
transformam em nuvem, chuva, rio e fonte.
A água é uma das condições
essenciais à vida, e é resultado de um longo processo de evolução. A vida
surgiu na Terra há cerca de 3,8 bilhões de anos e os seres vivos que hoje
compõem a biodiversidade do nosso planeta compartilham atributos adquiridos
durante essa longa história evolutiva, intimamente associada à água. Esse
processo gerou um ambiente propício para o surgimento de espécies cada vez mais
complexas, que só puderam sobreviver e se reproduzir porque a Terra já
apresentava condições necessárias e suficientes.
Não somente o surgimento da
espécie humana dependeu da evolução de formas anteriores de vida, como a sua
sobrevivência dependeu e continua dependendo de condições ambientais adequadas:
ar, água, terra firme, temperaturas adequadas, alimento e abrigo. Para o físico
Carl Sagan, esse fato não pode ser jamais esquecido: “Somos raros e preciosos
porque estamos vivos, porque podemos pensar dentro de nossas possibilidades.
Temos o privilégio de influenciar, e talvez controlar o nosso futuro. Acredito
que temos a obrigação de lutar pela vida na Terra — não apenas por nós mesmos, mas
por todos aqueles, humanos e de outras espécies, que vieram antes de nós e a
quem devemos favores, e por aqueles que, se formos inteligentes, virão depois
de nós. Não há nenhuma causa mais urgente, nenhuma tarefa mais apropriada, do
que proteger o futuro de nossa espécie”. (acquasul)
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