Pesquisadores apontam que
agricultura e rios represados afetam a oferta e a qualidade da água em todo o
país.
Pesquisadores apontam, em
relatório, soluções para o uso racional e maior eficiência na gestão e na
conservação da água no Brasil.
Insumo vital, direito humano
e elemento crucial para todos os setores estratégicos do país – do agronegócio
à indústria, passando por transporte, energia e saúde – a água é o tema central
do documento que a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços
Ecossistêmicos (BPBES) lança ontem durante o 15º Congresso Brasileiro de
Limnologia, em Florianópolis (SC). De autoria de 17 pesquisadores, o sumário
para tomadores de decisão do relatório temático “Água: biodiversidade, serviços
ecossistêmicos e bem-estar humano no Brasil” é dirigido a gestores e lideranças nas esferas pública e privada,
buscando sensibilizá-los para a complexidade, a importância e a urgência de uma
gestão eficaz da água no país.
“Água é um serviço
ecossistêmico, ou seja, um benefício da natureza, essencial para a qualidade de
vida das pessoas. O documento traz uma abordagem integrada de recursos hídricos
e biodiversidade”, explica Carlos Joly, professor do Instituto de Biologia (IB)
da Unicamp e coordenador da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços
Ecossistêmicos. A água doce no país tem sua distribuição desigual. No Estado de
São Paulo, por exemplo, as crises hídricas recentes, que foram fortemente
agravadas pela remoção da cobertura vegetal nativa do Estado, mostram que a
água passa a ser um fator limitante, explica o coordenador.
O documento contextualiza as
ameaças aos recursos hídricos e aos ambientes aquáticos, as oportunidades e o
diferencial competitivo que o seu uso eficiente possibilitam ao desenvolvimento
e à economia do país e propõe práticas e instrumentos para um melhor uso e
manejo das águas brasileiras. O país possui a maior reserva mundial de água –
concentrando 12% da disponibilidade hídrica superficial do planeta –, vastos
reservatórios de água subterrânea e uma circulação atmosférica que distribui
umidade entre diversas regiões, sendo capaz de regular o clima de todo o
continente sul-americano. Abriga, ainda, algumas das mais importantes áreas
úmidas terrestres, o maior arquipélago fluvial (Mariuá, no Parque Nacional de
Anavilhanas, Rio Negro), a maior ilha genuinamente fluvial (Ilha do Bananal, no
rio Araguaia) e a maior ilha fluviomarítima do mundo (Ilha do Marajó, na foz do
rio Amazonas). “Apesar da abundância, o Brasil trata mal o recurso, e algumas
regiões já apresentam problemas relacionados à segurança hídrica. No relatório,
mostramos as principais ameaças e apontamos direções para um melhor manejo e
conservação dos recursos hídricos por meio de mudanças na gestão, integração
entre agências e setores envolvidos e desenvolvimento de estratégias de
conservação focadas nos múltiplos usos da água”, explica Vinícius Farjalla,
professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador
do estudo.
O diferencial desse trabalho
está na abordagem da questão da água não apenas sob a dimensão de sua
importância como recurso hídrico. “A água é muito mais do que isso, é um
componente-chave da biodiversidade, é patrimônio cultural e está atrelada ao
bem-estar da população brasileira de inúmeras maneiras”, aponta Aliny Pires,
professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenadora
do documento. Os autores coincidem na avaliação de que a água é um ativo
nacional que, se usado com sabedoria e eficiência, enseja uma grande
oportunidade para garantir ao país um desenvolvimento econômico e social
bastante competitivo.
Vale lembrar, no entanto,
que, em que pese a riqueza do Brasil no que se refere à agua doce, ela está
naturalmente distribuída de forma muito desigual pelo país, onde também se
observa grandes contrastes na relação demanda-oferta, na aplicação dos
instrumentos legais e nos usos dos ambientes aquáticos. Ou seja, os desafios de
gestão não são uniformes por todo o território nacional. O texto salienta
que os instrumentos de gestão vigentes não contemplam os vários aspectos
relacionados a esses múltiplos usos. Consequentemente, a abundância da água não
assegura a segurança hídrica do país, comprometendo a biodiversidade aquática,
diversas atividades econômicas e o bem-estar da população.
“É premente a necessidade de se entender o
caráter multissetorial da governança da água, os vários agentes interessados e
as diferentes realidades regionais. Só assim poderemos aplicar as ferramentas
apropriadas e implementar uma gestão de longo prazo efetiva para garantir a
segurança hídrica desta e das futuras gerações”, afirma Pires. Assim como
convergem na visão sobre a oportunidade suscitada pelo potencial hídrico do
Brasil, os coordenadores sinalizam que o principal alerta do estudo é o de que
o aproveitamento do diferencial competitivo nacional só se dará se o país
souber assimilar e integrar a sua heterogeneidade em relação à quantidade, à
qualidade, aos diferentes usos e à legislação dos recursos hídricos.
Dependência das águas
Praticamente todas as
atividades econômicas no Brasil dependem de suas águas, sendo que
a agricultura irrigada e a pecuária são os principais usuários consumindo,
respectivamente, 750 mil e 125 mil litros de água por segundo. A matriz
energética elétrica brasileira depende de cerca de 65% da produção hidrelétrica
e a indústria utiliza mais de 180 mil litros de água por segundo. Em diversas
regiões do país, o transporte de carga e de pessoas também precisa da
manutenção da vazão presente nos ambientes aquáticos. O Relatório lista
diversos outros exemplos de serviços e atividades demandantes de grandes
quantidades de água, o que demonstra a sua centralidade na economia e nos modos
de vida da população.
A gestão territorial da água
envolve, ainda, aspectos transfronteiriços, uma vez que as reservas nacionais
possuem dependência intrínseca de nações vizinhas. Segundo o documento, “o
Brasil recebe cerca de 2,6 trilhões de m3 de água por ano de outros países e
escoa aproximadamente 800 bilhões de m3 de água por ano”. A
construção de barragens no sopé dos Andes peruanos, por exemplo, poderá
comprometer as condições ambientais da várzea no rio Amazonas em território
brasileiro, devido à retenção parcial de sedimentos nas represas, bem como aos
seus efeitos sobre o regime hidrológico.
Ameaças
De acordo com o Relatório, as
principais ameaças às águas brasileiras são as mudanças climáticas, as mudanças
no uso do solo, a fragmentação de ecossistemas e a poluição. Já são notáveis os efeitos de eventos extremos de
precipitação e seca, que vão aumentar ao longo do século, alterando a dinâmica
e a configuração dos habitat aquáticos. Anos de seca prolongada nas regiões
Sudeste e Centro-Oeste do Brasil resultaram em uma perda estimada de R$ 20
bilhões na receita agrícola em 2015, um recuo de quase 7% em relação ao ano
anterior. “Mudanças no uso do solo em função da expansão agrícola e do
represamento de rios podem comprometer a disponibilidade e a qualidade da água em
todo o país, afetando os usos pela biodiversidade aquática e pela população
humana. Tais mudanças, bem como a transposição de rios, promovem modificações
na dinâmica e na estrutura dos ambientes aquáticos causando perda na
conectividade e alteração no regime hidrológico, o que favorece o
estabelecimento de espécies exóticas”, diz o texto.
Os autores mencionam o
aumento no aporte de poluentes aos rios, que acarreta prejuízos à
biodiversidade e aos serviços providos por ecossistemas aquáticos, e destacam
que cerca de 40% do território nacional apresenta níveis de ameaça aos
corpos hídricos de moderado a elevado. Ressaltam, ainda, o papel dos poluentes
emergentes, tais como hormônios e antibióticos, que não são removidos pelas
vias de tratamento convencionais e cujos efeitos para a biota aquática e a
saúde humana não foram plenamente explorados. No estado do Rio de Janeiro, por
exemplo, 48% dos rios monitorados são impróprios para tratamentos convencionais
e 50% da água captada e distribuída no sistema de abastecimento do Guandu é
utilizada para tratar esgotos.
Avanços e receio
Um dos avanços mais recentes
da agenda da água no Brasil foi o Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH),
mecanismo criado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional e pela Agência
Nacional de Águas que propõe a implementação de projetos de infraestrutura para
assegurar água aos brasileiros até 2035. Segundo o estudo, a cada R$ 1
investido em infraestrutura hídrica, mais de R$ 15 são obtidos em benefícios
associados à manutenção de distintas atividades produtivas no país. Entre 2004
e 2016, estima-se que o Brasil
ganhou mais de R$ 15 bilhões por ano com investimentos realizados em
saneamento, incluindo a promoção do turismo e a redução com gastos em saúde.
O foco do PNSH é a redução dos elevados
valores de insegurança hídrica previstos para 2035 caso nenhuma ação seja
realizada no país e ele se soma a outros instrumentos da Política Nacional dos
Recursos Hídricos, formando a atual base legal para a gestão dos recursos
hídricos nacionais. No texto, os autores chamam a atenção para a relevância do
fortalecimento desse Plano de forma a assegurar a disponibilidade hídrica no
Brasil. “Vejo com certo receio como a pauta ambiental vem sendo tratada pelo
atual governo, declarações do presidente Bolsonaro e de outros gestores do
governo federal, como o próprio Ministro do Meio Ambiente, indicam, no melhor
cenário, pouca atenção às questões ambientais, como a conservação de áreas
naturais, que são importantes recargas de água tanto para o abastecimento
urbano, como para diversas atividades produtivas, e o combate às mudança
climáticas, que terão grande impacto na oferta e na qualidade dos recursos
hídricos brasileiros”, conta Farjalla.
Saneamento e infraestrutura
O Brasil dispõe de base legal para o
enfrentamento dos problemas relacionados aos recursos hídricos e ao saneamento
básico. Os benefícios dos investimentos em infraestrutura (previstos no PNSH) e
da universalização do saneamento (inclusa no Plano Nacional do Saneamento
Básico) são também amplamente conhecidos, sobretudo quanto à saúde das pessoas
e à conservação dos ambientes aquáticos. Os autores do estudo alertam, no
entanto, que os mecanismos necessários para sua implementação efetiva não são
plenamente viabilizados para uma aplicação em escala e sinalizam que, apesar de
alguns incentivos, o país ainda precisa percorrer um longo caminho nessa área.
O relatório aponta que a universalização do saneamento básico trará ao
país ganhos de R$ 1,5 trilhão – valor quatro vezes maior que o gasto estimado
para sua implementação – e diminuirá de forma expressiva despesas com saúde
humana, com destaque para as regiões urbanas que abrigam 75% da população
brasileira. A integração entre iniciativas que visem o estabelecimento de redes
de saneamento e esgoto e esforços de recomposição da vegetação nativa e de
adoção de diferentes tecnologias será capaz de recompor serviços ecossistêmicos
perdidos. “O uso integrado de soluções baseadas na natureza, como a restauração
florestal e a conservação de áreas úmidas – com infraestrutura convencional – é
o caminho mais seguro, menos custoso e com maior benefício para assegurar a
utilização dos recursos hídricos e a conservação da biodiversidade aquática”,
diz o texto. (ecobebate)
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