Pesquisadores mostram relação de água contaminada
com a epidemia do vírus zika na Região Nordeste.
A presença de toxinas na água consumida pela
população nordestina contribuiu para aumentar o número de casos de microcefalia
associados à epidemia do vírus zika na Região Nordeste, principalmente nos anos
de 2015 e 2016. Essa é a conclusão da pesquisa desenvolvida em conjunto pelo
Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal Rural
de Pernambuco (UFRPE).
Os resultados do estudo mostram, de acordo com o
professor titular da UFRJ e cientista do IDOR, Stevens Rehen, que é autor
correspondente do trabalho, que o Brasil precisa rediscutir os níveis de
toxinas e outras substâncias presentes na água considerados seguros para o
consumo humano.
“A gente propõe nesse artigo que a água contaminada
com saxitoxina deixou mais vulnerável uma determinada população do Nordeste e
isso acabou levando ao nascimento de crianças com malformações graves no
sistema nervoso. Talvez isso acabe se refletindo também em outras doenças.
Então, o que a gente propõe é uma rediscussão em relação ao que é considerado
seguro nas águas que são disponibilizadas para a população”, diz em entrevista
à Agência Brasil.
A equipe foi uma das primeiras no mundo a provar a
relação do vírus zika com os casos de bebês recém-nascidos com microcefalia –
malformação congênita em que o cérebro não se desenvolve de maneira adequada.
Após a comprovação, os pesquisadores começaram a investigar por que os casos
eram mais frequentes no Nordeste do que em outras regiões do país.
De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2015 e
2019, foram registrados 2.192 casos de microcefalia e outras malformações
congênitas pelo vírus zika na Região Nordeste, o que corresponde a 62,5% dos
casos do país nesse período. O Sudeste aparece em segundo lugar, com menos da
metade dos casos do Nordeste, 709, ou 20,2% do total no Brasil.
“Surgiu a hipótese de que havia um cofator regional
que fosse capaz de agravar as consequências da infecção. A nossa hipótese é que
haveria um cofator ambiental evitável, capaz de exacerbar a toxidade do vírus
zika sobre o sistema nervoso em desenvolvimento”, diz Rehen. Eles provaram que
esse fator, que pode ser evitado, existe e está presente na água.
Presença de toxinas na água consumida pela população
nordestina contribuiu para aumentar o número de casos de microcefalia
associados à epidemia do vírus zika na Região Nordeste
Presença de toxinas na água consumida pela população
nordestina contribuiu para aumentar o número de casos de microcefalia
associados à epidemia do vírus zika na Região Nordeste – Arquivo IDOR
Leia os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: Por que vocês decidiram fazer este
estudo?
Stevens Rehen: Desde o começo da epidemia de zika no
Brasil, a nossa equipe, como várias outras, se interessou pelo assunto e pela
própria gravidade do que era observado na relação da epidemia com o aumento de
casos de microcefalia. O nosso grupo foi o primeiro no mundo a usar metodologia
de biologia celular para explicar essa relação entre o vírus zika e as malformações
do sistema nervoso em desenvolvimento. Mais recentemente, analisando a
quantidade de casos e a gravidade de casos no Nordeste, comparando com outras
regiões no país e no mundo, surgiu a hipótese de que havia um cofator regional
que fosse capaz de agravar as consequências da infecção. A nossa hipótese é que
haveria um cofator ambiental evitável, capaz de exacerbar a toxidade do vírus
zika sobre o sistema nervoso em desenvolvimento.
Nós mapeamos a qualidade da água em diversos açudes
no Nordeste e percebemos que, quando comparada a outras regiões do país, tinha
uma incidência grande de alguns microrganismos chamados cianobactérias e também
de uma toxina que é produzida por um desses microrganismos, a saxitoxina. A
presença de saxitoxina nos alertou de que ela poderia estar envolvida com o
agravamento do efeito do vírus zika no sistema nervoso.
Agência Brasil: Como conseguiram provar a relação da
saxitoxina com o agravamento da microcefalia causada pelo vírus zika?
Stevens Rehen: Levamos essa toxina para o laboratório
e fizemos um experimento simples, utilizando um modelo que a gente chama de
organoides cerebrais. Nesse modelo, colhemos a urina ou um pedacinho de pele de
qualquer indivíduo, de qualquer voluntário, que foi transformado em células do
cérebro. A gente cria um modelo biológico vivo, quase como se fosse um avatar,
que é nosso modelo para estudar. Foi em cima desse organoide, que a gente
mostrou, em 2016, essa relação entre microcefalia e a infecção pelo vírus zika.
Agora, recentemente, o que fizemos, utilizando esse mesmo modelo, foi combinar
a exposição desse tecido nervoso humano à saxitoxina e ao vírus zika.
Observamos então que, quando fazíamos essa combinação, o efeito do vírus zika
era ainda pior nesse tecido.
Para confirmar essa hipótese, a gente fez, em
parceria com a UFRJ, o mesmo experimento utilizando camundongos. As fêmeas
beberam água com a mesma quantidade de toxina observada na água do Nordeste por
um determinado período e, depois, essas fêmeas ficaram grávidas. Então, nós
observamos como se dava a malformação nas fêmeas que beberam água contaminada e
que, também, estavam infectadas com zika. Comparamos com outro grupo que só foi
infectado com zika e que bebeu água limpa. Na comparação, observamos que havia
um aumento e um agravamento da microcefalia nos filhotes que nasceram dessas
fêmeas.
Agência Brasil: Por que vocês decidiram observar a
água?
Stevens Rehen: O que nos chamou atenção foi perceber
que o Nordeste enfrentou, justamente no período de epidemia de zika, a maior seca
da história. Então, pela carência de água, a gente começou a imaginar que
quando há menos água, aumenta a proliferação de microrganismos por causa da
própria falta de saneamento básico. Em virtude da seca, havia uma redução da
qualidade da água onde ainda existia água e isso nos levou a tentar examinar
essa água.
Agência Brasil: Diante desses resultados, o que pode
ser feito?
Stevens Rehen: O que a gente observou nesse artigo é
que a água contaminada com saxitoxina deixou mais vulnerável uma determinada população
do Nordeste e isso acabou levando ao nascimento de crianças com malformações
graves no sistema nervoso. Talvez isso acabe se refletindo também em outras
doenças. O que a gente propõe é uma rediscussão em relação ao que é considerado
seguro nas águas que são disponibilizadas para a população.
Em situações normais, o que hoje em dia é
preconizado como seguro, talvez seja seguro, mas como a gente está vivendo uma
série de epidemias e agora, a pandemia
do coronavírus [novo coronavírus (covid-19)], todos esses vírus acabam levando
um agente que acaba alterando mais ainda esse equilíbrio. Assim, essa ingestão
crônica de água com saxitoxina talvez possa deixar a população mais vulnerável
a várias doenças.
Agência Brasil: Essa discussão dos parâmetros de qualidade
da água está sendo feita?
Stevens Rehen: Tão logo a gente gerou esse
resultado, ele foi levado ao Ministério da Saúde e fomos muito bem recebidos,
em 2018. Hoje há um grupo de trabalho coordenado pela Fiocruz, formado em 2019,
do qual também participamos, que está justamente revendo o que é considerado
seguro, principalmente, em situações de risco, como foi a época da epidemia
pelo vírus zika.
Agência Brasil: Já existe alguma prévia desses novos
parâmetros?
Stevens Rehen: Essa análise está em andamento.
Agência Brasil: O que se pode fazer para melhorar a
qualidade da água consumida pela população?
Stevens Rehen: Saneamento básico! É um problema
crônico, histórico no Brasil, mas é importante poder fornecer à população uma
água de melhor qualidade.
Agência Brasil: A má qualidade da água pode também
fragilizar as pessoas em relação ao novo coronavírus (covid-19)?
Stevens Rehen: A gente não tem nenhum estudo
consistente no caso do coronavírus. Falei isso mais do ponto de vista genérico,
pensando em um organismo que está vulnerável devido à ingestão crônica de uma
toxina. Nós estamos mostrando que isso afetou a gravidade e a toxicidade do
zika vírus. (ecodebate)
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