Os
alimentos não consumidos tinham uma destinação infeliz: o lixo. Ainda mais
quando se sabe que há cerca de 43 milhões de brasileiros em situação de
insegurança alimentar moderada e aguda. É muita fome.
Dados
de 2017, segundo a FAO, cerca de 821 milhões de pessoas passam fome. A má
nutrição causa quase metade (45%) das mortes de crianças abaixo dos cinco anos
de idade – 3,1 milhões de crianças anualmente.
As
razões para tal insanidade eram em boa parte jurídicas. Se a empresa ou
qualquer estabelecimento que resolvesse oferecer esses alimentos a terceiros,
como a seus empregados ou a uma entidade beneficente, e algum problema de saúde
acometesse tais pessoas, a empresa poderia ser responsabilizada, através do
enquadramento do artigo 7º da Lei 8137/90 de crimes contra a ordem tributária,
econômica, nos artigos do Código de Defesa do Consumidor, em razão da
responsabilidade objetiva, e em outros conforme o caso.
Para
que leitor possa se familiarizar com os conceitos jurídicos, na esfera civil,
nas relações de consumo, a responsabilidade objetiva daquele que fornece o
produto, o serviço, decorre dos deveres inerentes ao risco da atividade. Ele
produz, deve fazê-lo com qualidade e segurança e, em proteção ao consumidor,
deverá ressarcir o dano a ele ocasionado pela falha, defeito do seu produto. A
responsabilidade, segundo a Lei, se estende a todos pelos quais o produto ou
serviço passou antes de chegar ao consumidor. Então, mesmo que o fabricante não
tenha dado causa ao dano, ele também será chamado a ressarcir o consumidor
final. É a chamada solidariedade dos participantes. Parte-se da premissa de que
o consumidor é a parte mais fraca nessa relação de consumo. A responsabilidade,
entretanto, não é ilimitada. O próprio CDC, artigo 12, § 1º menciona: ”/…/ não oferece a segurança que dele legitimamente se
espera /…/”. É a qualidade e segurança que o cidadão comum espera daquele
produto ou serviço.
A
Lei 14.016, sancionada em 23/06/2020, abre um novo horizonte para a destinação
desses alimentos. Os estabelecimentos como empresas, hospitais, supermercados,
cooperativas, restaurantes, lanchonetes e todos os demais estabelecimentos
dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in
natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, nessas
condições, poderão destinar os alimentos excedentes, desde que estejam dentro
do prazo de validade, e mantidas as propriedades nutricionais e segurança
sanitária.
A
doação, que deverá ser gratuita, poderá ser feita diretamente ou através de
parcerias (intermediários) com entidades beneficentes de assistência social
certificadas na forma da lei, ou entidades religiosas, ou com o poder público,
ou por meio de bancos de alimentos.
Os
beneficiários serão pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade
ou de risco alimentar ou nutricional.
É
importante destacar que se a doação for realizada nos parâmetros desta Lei, não
haverá relação de consumo e o doador não será enquadrado nos parâmetros do
Código de Defesa do Consumidor, conforme acima exposto. Um exemplo prático: o
refeitório de uma empresa destina o excedente das refeições diárias a um asilo.
Supondo que os alimentos tenham chegado ao seu destino com as mesmas condições
sanitárias de onde estava, mas que por algum motivo, um dos assistidos do asilo
tenha passado mal após ingerir o alimento. Seguindo o Código de defesa do Consumidor,
a empresa fornecedora do alimento, mesmo que o tenha entregue sem qualquer
custo, unicamente com finalidade humanitária, poderia ser responsabilizada,
independentemente de se demonstrar culpa (CDC, art. 12). Aplicando-se o teor da
Lei 14016, referida empresa somente seria responsabilizada se ficasse
comprovada intenção e ação deliberadas de causar danos à saúde de outrem.
A
Lei ainda fala de eventual responsabilização somente na primeira entrega: o
doador que entrega o alimento diretamente ao beneficiário, ou ao intermediário,
que é aquele que recebe o alimento do doador e o repassa ao beneficiário final.
Na aplicação do CDC existe a solidariedade na responsabilização, ou seja, mesmo
que o fornecedor tenha agido com lisura, mas o produto, após ter passado por
intermediários, tenha chegado ao consumidor e lhe tenha causado dano, o
fornecedor também poderá ser responsabilizado.
As
relações humanas envolvem diversos elementos como o jurídico, moral, ético,
social, econômico, religioso. O primeiro aqui mencionado diz respeito à função
das leis perante a sociedade. A vida em grupo exige de todas as pessoas
comportamentos que permitam uma convivência pacífica e harmônica. É essa pelo
menos a teoria. Na prática tem sido um grande desafio pois nem sempre a
legislação está ajustada às necessidades daquele povo. Um exemplo atual e
triste é a nossa legislação penal que urge por reformas e por devolver à
sociedade a dignidade perdida. O regramento jurídico não pode se afastar da
realidade e de prover a sociedade da proteção para o qual ele foi criado. No
caso dos alimentos, não faz sentido uma legislação ser restritiva a ponto de
ser mais conveniente alguém jogar fora um alimento em condições de consumo a
oferecê-lo a terceiro e ser responsabilizado juridicamente por isso.
É
óbvio que não se busca com essa flexibilidade que a doação seja feita de forma
indiscriminada e irresponsável. Mas que também não seja o doador punido pelo
ato de doar com finalidade humanitária.
A
punição de acordo com a Lei 14.016 virá no caso de o doador agir com dolo
específico de causar dano. Significa uma restrição à punibilidade,
especificamente quando houver a consciência, a intenção deliberada de causar o
dano, o que não parece compatível com o cidadão que almeja aplacar a fome dos menos
favorecidos.
A
doação atenderá à função social pelos motivos já expostos, às questões
ambientais, pois evitará o desperdício (se se considerar desde a produção do
alimento, a embalagem, a distribuição), a geração de resíduos orgânicos.
Certamente
haverá opiniões divergentes, como uma democracia saudável deve ter. Elas devem
ser um meio para se aprimorarem leis e as relações humanas, utilizando-se de
argumentos racionais e construtivos. Mas, é preciso pesar custo e benefício.
Quantas pessoas poderão ser realmente beneficiadas com essa nova Lei? A fome é
uma desgraça na sociedade. É de se imaginar quantos talentos estão perdidos
mundo afora e que não puderam se desenvolver porque não têm as necessidades
mínimas de nutrição diárias…
Em termos práticos, as empresas que possuem refeitórios em suas dependências, bem como os restaurantes podem e devem fechar parcerias com instituições beneficentes legalmente estabelecidas para receber o excedente diário das refeições. Uma igreja, por exemplo, poderia preparar em seu refeitório os alimentos doados por supermercados, mercearias. Há sempre voluntários dispostos a colaborar com essas instituições. O setor privado poderia patrocinar cursos de culinária e ser uma excelente oportunidade para pessoas aprenderem o ofício e obterem independência financeira.
Mas e se na sua cidade não há um Banco de Alimentos?
Simples,
exija dos Poderes Executivo e Legislativo que criem ferramentas de politicas
públicas para a criação em curto espaço de tempo de um Banco de Alimentos.
E,
exija também, através de requerimento formal ao Chefe do Poder Executivo
Municipal que:
1. Que seja identificado o
problema da fome na respectiva cidade através dos trabalhos de Assistentes
Sociais e profissionais da saúde, e inobstante a existência de programas de
segurança alimentar, a criação de um BANCO DE ALIMENTOS mostra-se como uma
solução de extrema simplicidade para ser implementada pela sociedade local;
2.
Que exista um esforço (vontade política) que deverá apoiar e fortalecer as
instituições de terceiro setor já existentes na cidade, que por sua vez, terão
por responsabilidade identificar e cadastrar todas as famílias carentes de sua
comunidade;
3.
Que os responsáveis pelo Banco de Alimentos deverão cadastrar e realizar
visitas “in loco” a cada uma dessas famílias, buscando estabelecer as
prioridades de atendimento, iniciando, como é óbvio, por aquelas que
apresentarem maior índice de pobreza e necessidade;
4. Que o Banco de Alimentos deverá concentrar todos os apoios que dispuser, quer identificando os problemas de desnutrição infantil, obesidade, anemias ferropriva, falciforme, Intolerância à lactose e alergia à proteína do leite de vaca, verminoses, doença Celíaca entre outras, por intermédio de seu corpo de nutricionistas, quer por cursos e treinamentos sobre higiene, manuseio de alimentos, bons hábitos alimentares, etc.
Combater o desperdício de alimentos.
5.
Que o Grupo de criação do Banco de Alimentos deverá abranger todas as
lideranças comunitárias, que são indispensáveis para que a iniciativa tenha
sucesso. E deverão ainda abranger:
5.1.
A liderança do grupo deverá ser exercida Associações de Classe, Faculdades e
Cursos Técnicos, Clubes de Serviço (ROTARY, LIONS, Etc.), Funcionários de
Prefeituras, Sindicatos, Fundações, Associações Assistenciais, etc., essa
liderança deverá coordenar os trabalhos e disseminar a ideia.
5.2.
Quanto a Segurança Alimentar deverão participar Nutricioniaistas, Professores e
Alunos de Faculdade de Nutrição, Gastronomia ou Engenharia Alimentar, Profissionais
da Vigilância Sanitária, etc., assumindo com isso a responsabilidade técnica do
respectivo banco de alimentos.
5.3.
Quanto a Logística dos alimentos, deverão participar voluntários que trabalham
com transportes de cargas e pessoas, ou alguma empresa contratada que possa
assumir a responsabilidade de recolher os alimentos destinados ao Banco de
Alimentos, e ao depois, distribuí-los para as instituições e famílias
assistidas.
5.4
Quanto aos voluntários e parceiros, onde encontrá-los? Por certo se encontrará
voluntários e parceiros na Associação Comercial, Industrial e Rural da
Localidade; nas igrejas e templos (independentemente da religião que
professam), nas Lojas Maçonicas, nos Rotary Club – Rotaract – Interact – Casas
da Amizade, nos Lions Clubs – Leos Club, nos Sindicatos Rurais, no CIEE, na
Associações de Classe (OAB, CREA, CRM, CRO, entre muitas outras), nas
Faculdades e Escolas Técnicas, nas Associações existentes no município
(Escoteiros, Radioamadores, Caminhoneiros, etc.), nos Sindicatos, nos Bancos
Comerciais, entre muitos outros.
6.
Com a equipe de Voluntários / Parceiros criada necessário:
6.1.
O MAPEAMENTO DAS INSTITUIÇÕES EXISTENTES NO MUNICIPIO: identificação de
creches, asilos, lares de excepcionais, associações comunitárias, etc. (informações
que por certo já existem nos Serviços de Assistência Social do Município).
6.2.
O CADASTRAMENTO DAS INSTITUIÇÕES VOLUNTÁRIAS e seus membros que ficarão
responsáveis pelas visitas a cada uma das entidades e realizarão entrevista com
o principal responsável, preenchendo todas as informações solicitadas no
cadastro.
6.3.
Um BANCO DE DADOS deverá ser criado com as informações coletadas pelos
entrevistadores sendo armazenadas no Banco de Dados (software disponibilizado
pelo Banco de Alimentos) para posterior avaliação, análise e atendimento. O
ideal, será tirar fotos das instituições, principalmente da fachada, cozinha,
refeitório, etc.
7.
Em seguida deverá ocorrer a ESTRUTURAÇÃO DO BANCO DE ALIMENTOS, devendo ser
emitidas atas das reuniões para identificar como INSTITUIDORES ou FUNDADORES do
Banco de Alimentos os integrantes do grupo. A data de fundação será definida
pela vontade de todos. E deverá ainda ser registrada a sua NATUREZA JURÍDICA,
onde o Grupo decidirá que tipo de organização será formada, podendo ser uma
Fundação, uma ONG ou Instituto, uma OSCIP, etc. Sendo certo que uma OSCIP –
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público melhor se enquadra no
objetivo, e para tanto o Grupo já deverá ter definido os membros do Conselho
Deliberativo, Conselho Fiscal, Diretoria Executiva, assim como seu Estatuto e
Regulamento Interno.
8.
O próximo passo é a efetiva INSTALAÇÕES DO BANCO DE ALIMENTOS que poderá o
local ser cedido pela Prefeitura Municipal, ou por uma empresa particular, ou
por uma instituição de ensino, ou ainda por uma pessoa natural, ou caso seja
mais conveniente poderá ser locado um imóvel para a sua instalação. O ideal é
que seja um local bem arejado e iluminado, e que ofereça condições sanitárias
adequadas, bom acesso a veículos, etc. e não necessitará acumular grande
quantidade de alimentos. Deverá ser dotado, tão logo quanto possível, de câmara
fria ou de freezers. Haverá a necessidade do uso de caixas, pallets, armários,
prateleiras, etc. E, chapéus, bonés, luvas, uniformes, aventais, sacolas e
sacaria deveram ser padronizadas. E por fim, precisará ter um constante
trabalho de prevenção de roedores, insetos, pássaros e etc.
9.
O QUADRO DE PESSOAL do BANCO DE ALIMENTOS deverá ser composto por uma Diretoria
Executiva (voluntária) do Banco, que irá contratar um executivo e um ou dois
auxiliares de serviços para a operacionalização do Banco. Estas pessoas poderão
ser cedidas por empresas ou pelo Poder Público. Da mesma forma, deverá ser
indicada uma nutricionista responsável técnica do Banco, que poderá ser
voluntária ou, igualmente, cedida por empresa ou Poder Público. A Diretoria
Executiva terá a responsabilidade de manter o BANCO DE ALIMENTOS funcionando e
buscar recursos financeiros para pagamento de funcionários, encargos, impostos,
contribuições sociais, e tributos em geral, buscando e alocando donativos
financeiros para que o BANCO DE ALIMENTOS possa funcionar dia após dia,
lembrando que as doações de Recursos Financeiros poderão gerar benefícios
fiscais ao doador, e cita-se como exemplo que as empresas optantes pelo lucro
real poderão deduzir até 2% (dois por cento) no Imposto de Renda.
10. Por fim, deverá haver um trabalho de comunicação e publicidade social permanente para educação e conscientização da população e empresários, com identificação de veículos utilizados pelo Banco de Alimentos.
Com essas iniciativas pessoais colocadas em prática então poderemos ter certeza que há uma lei a favor da vida, pois a Lei sozinha nada fará para o combate diário da fome e da desnutrição. (ecodebate)
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