Dados alarmantes sobre a fome
no Brasil, foram divulgados, recentemente, pela rede brasileira de pesquisa em
soberania e segurança alimentar e nutricional (PENSSAN). A pesquisa, cuja
coleta de dados ocorreu no mês de dezembro de 2020, registrou que 19 milhões de
pessoas se encontram na forma grave de insegurança alimentar, caracterizada
pela fome, ausência de alimentos, condições econômicas e sociais, bem como
consumo inadequado de nutrientes. Além do alto número de pessoas na linha fome,
o relatório também constatou que 116,8 milhões de pessoas se encontram em
situação de insegurança alimentar.
Os dados foram coletados
enquanto o governo federal repassava os valores referentes ao auxílio
emergencial, já reduzidos de R$ 600,00 para R$ 300,00. O presidente da rede
Penssan, Renato Maluf, apontou, com preocupação, para o fato de que se a
pesquisa fosse atualizada, voltada para o cenário pandêmico de 2021, os
resultados seriam ainda mais alarmantes, especialmente, em razão do
cancelamento do auxílio, que já era baixo. Os critérios para o recebimento do
auxílio emergencial em 2021 estão ainda mais rigorosos, além dos valores serem
ínfimos (R$, 150,00, R$ 250,00 e R$ 375,00), não atendendo as reais
necessidades das famílias brasileiras, além de não acompanhar o aumento dos
preços nos alimentos básicos.
Com isso, o ano de 2020,
ficou marcado pelo grave aumento nos preços dos produtos alimentares, em razão
dos impactos da realidade pandêmica e das contradições do Estado no seu
enfrentamento. Para a Associação de Consumidores Proteste, em maio de 2020, os
preços dos alimentos básicos subiram em até 106% nos supermercados de São
Paulo, comparado com o ano anterior. Produtos essenciais como feijão, óleo de
soja e açúcar, tiveram aumentos correspondentes a 66%, 20% e 13%. Resultado que
contribui com a exacerbação das desigualdades sociais e econômicas, deixando
mais pessoas na linha da fome e desnutrição.
Além da identificação da
classe, preponderante na pesquisa elaborada pela PENSSAN, outros critérios
foram encontrados como a raça e gênero. Nos domicílios onde as referências
familiares eram compostas por mulheres, a insegurança alimentar grave (situação
da fome), foi superior à média nacional. Com relação aos domicílios em que as
mulheres negras e de baixa escolaridade eram referência, o número se expandiu.
A insegurança alimentar leve, que indica o comprometimento e a limitação na alimentação das famílias, aumentou severamente no ano de 2020, sendo a causa apontada para este crescimento o trabalho informal, precarizado e mal remunerado. A realidade de trabalho precarizado, já era vivenciada pela maior parte da população brasileira antes da pandemia, mas que foi agravada, sobretudo, pela ausência de políticas de governo capazes de atender as necessidades básicas do seu povo.
Conforme pesquisa realizada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe/CEPAL e pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura/FAO, os níveis de desemprego, e a redução/extinção da renda das famílias, geraram mudanças drásticas nas dietas alimentares. Isto levou a muitas pessoas adotarem formas de alimentação não saudáveis, optando por produtos mais baratos, como os ultraprocessados, com menor qualidade nutricional, e maiores níveis de gordura saturada, açúcar, sódio e calorias. A realidade atual contrasta com as políticas de governo adotadas durante os anos 2001 e 2017, que fizeram com que o país, apesar das desigualdades sociais e econômicas, deixasse o mapa da fome, reduzindo a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%.
As populações mais afetadas
pela insegurança alimentar no Brasil são negras, nordestinas, de baixa
escolaridade e localizadas no meio rural. Isto se deve pelo fato de que estes
grupos possuem outras prioridades que transcendem a mera qualidade da comida,
mas que são voltadas, essencialmente, para a sua sobrevivência e a dos seus.
Esta realidade é contextualizada no que Llaila O. Afrika chama de “nutricídio”.
O conceito revela o genocídio alimentar provocado contra as populações negras,
dentro e fora da África, decorrente da desnutrição ocasionada pelo modo de
alimentação compulsória oriunda do processo de colonização europeia.
Trazendo a categoria do
nutricídio para o contexto pandêmico, é possível perceber a relação entre a
ausência de alimentos, por parte de alguns grupos e pessoas, e a morte
decorrente da má alimentação. As estatísticas demonstram que doenças como
hipertensão, diabetes, e outras que integram o grupo de risco da covid-19, são
mais propensas em pessoas negras. Conforme pesquisas realizadas pelo Ministério
da Saúde, no ano de 2017, constatou-se que mulheres negras são 50% mais
acometidas pela diabete mellitus tipo II, do que as mulheres brancas. Pelo
estudo do ELSA-Brasil, doenças como a hipertensão, atingem 30,3% dos homens
brancos, em relação a 49,3% dos homens negros.
As principais causas do
nutricídio estão no uso de agrotóxicos, transgênicos e ultraprocessados. O
Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, sobretudo aqueles
proibidos no exterior.
1°ano pandêmico sob governo Bolsonaro, foi marcado pela maior liberação de pesticidas da história do país, totalizando 493 substâncias tóxicas autorizadas a compor a mesa da população brasileira. 90% das aprovações ocorreram no início da pandemia.
Com as mudanças na classificação toxicológica dos agrotóxicos no ano de 2019, houve um processo de dificultação na divulgação da danosidade dessas substâncias, uma vez que foram classificadas pela ANVISA como “improvável de causar dano agudo”. Todos os pesticidas que integram esta classificação deixaram de conter a identificação de “perigo” no rótulo, inviabilizando a transparência e o acesso à informação dos consumidores e consumidoras sobre os produtos que podem causar riscos graves à saúde como intoxicação, cegueira e corrosão da pele.
Podemos afirmar que os dados
anteriores, ao informar sobre a relação entre a produção da fome e a
desnutrição da população brasileira, sobretudo, pobre e negra, estão imbricados
nas consequências nefastas da indústria agropecuária. Isto significa desnudar
as consequências danosas do modo de produção econômico e a aliança com os
grandes empreendimentos do agronegócio. No Brasil, a maior parte dos deputados
que ocupam o Congresso Nacional integram a Frente Parlamentar da
Agropecuária/FPA, mais conhecida como Bancada Ruralista, composta,
majoritariamente, por homens brancos, cis-héteros, e com patrimônios. O
resultado desse cenário é o Poder legislativo atuando a favor dos interesses
dos setores do agronegócio, e contra as pautas que buscam proteger o meio
ambiente, as comunidades tradicionais brasileiras e seus territórios.
A maior parte dos grãos
cultivados no mundo, 465 milhões de toneladas, são utilizados para alimentar os
animais da agropecuária. Muito embora o gado sirva de alimento para alguns
grupos e pessoas, a distribuição ocorre de forma seletiva. Além disso, há
algumas contradições relacionadas a distribuição de grãos, uma vez que para
produzir 1kg de carne bovina é necessário, em média, a utilização de 6kg a 20kg
de cereais. Resumidamente, os grãos viram ração, e não alimento humano. Assim,
o problema já se inicia com a utilização da terra, onde 60% dela é designada,
exclusivamente, para a pecuária. A agricultura intensiva afeta diretamente a
segurança alimentar, uma vez que gera mais desmatamento, morte de espécie de
animais, aquecimento global, e com isso mais inundações, secas e tempestades
que resultam em maior impacto na produção de alimentos e, consequentemente,
insegurança alimentar.
Com o processo da globalização do mercado, a concentração da produção agrícola se intensificou. As multinacionais como Monsanto/Bayer, Dow/DuPont, ChemChina/Syngenta e BASF, controlam toda a produção de agrotóxicos e sementes do mundo. A produção de grãos é monopolizada, o que acaba por direcionar os recursos globais naturais para a produção de carne, laticínios e pesca. 82% das crianças famintas vivem em países onde os alimentos produzidos são administrados e direcionados, exclusivamente, aos animais não humanos. O agronegócio expulsa famílias e pessoas de seus territórios, para no lugar, transformar tudo em pasto que sirva de alimento para os animais, bem como para criá-los.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção de cereais, leguminosas e oleaginosas estimada para o ano de 2021 é a maior da história, perfazendo 264,9 milhões de toneladas, sendo a soja e o milho responsáveis por 88% dessa produção. Em média, 79% da soja produzida no mundo é direcionada para alimentação animal, a qual é esmagada e utilizada para gerar ração. Assim, ainda no ano das graves perdas e impactos causados pela pandemia no setor rural, a safra brasileira registrou 254,1 milhões de toneladas. Em contrapartida, no mesmo período, a fome no país atingiu 19 milhões de pessoas.
Propaganda capitalista
continua a legitimar a ideia de que o segredo para o bom desenvolvimento
econômico e o progresso do país está no agronegócio. Noções da “economia verde”
e do “desenvolvimento sustentável”, propagadas pela agropecuária, em conluio
com o Estado e seus representantes políticos, integram o projeto e a execução
da política da morte através da fome e da insegurança alimentar. Grandes
agentes poderosos, utilizam estratégias sofisticadas, através de discursos e
propagandas positivas aos objetivos da empresa, como forma de cooptar discursos
e ganhar legitimidade da população. Exemplo foi o discurso de Gilberto
Tomazoni, CEO global da JBS, que afirmou conhecer a realidade das “690 milhões
de pessoas” que “ainda passam fome”, mas não reconhece a nocividade das atividades
da indústria no qual faz parte, e a relação com a produção do nutricídio de
milhões de brasileiros.
Dados disponibilizados pela
FAO denotam que 821 milhões de pessoas passam fome no mundo, em contrapartida,
um terço dos alimentos produzidos são desperdiçados diariamente, o que gera uma
perda de US$ 750 bilhões/ano. No mundo, em um ano, foram desperdiçados 931
milhões de toneladas de alimentos, 17% do total disponível para a população no
ano de 2019. O Brasil país está entre os 10 países que mais desperdiçam no
mundo, sendo a agropecuária uma das atividades que fazem parte dessa
estatística. Estudos já evidenciam que a fome no mundo é provocada pela pobreza
e desigualdade, e não pela escassez de alimentos. Isto porque, o mundo já
cultiva alimentos suficientes para alimentar 10 bilhões de pessoas, ou seja, o
número estimado de pessoas para 2050.
Ao passo que se evidencia a
relação do genocídio alimentar produzido contra as populações subalternizadas,
bem como a sua relação com a agropecuária, há se salientar sobre as
resistências e lutas organizadas contra o modelo econômico pautado na
destruição e aniquilação do meio ambiente e das vidas humanas e não humanas. Em
que pese se constate um aumento nos números de assassinatos cometidos contra
ativistas ambientais e defensores e defensoras de terras no Brasil, importa
destacar que muita resistência e luta são organizadas pelos povos tradicionais,
quilombolas, movimentos sem-terra e contra o racismo ambiental.
Segundo dados da Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura/FAO, 70% dos alimentos que
chegam ao prato dos brasileiros advém da agricultura familiar. Agricultura
familiar é a verdadeira revolução para construirmos uma sociedade pautada no
modelo coletivo, da solidariedade política, emancipação humana e
ecossocialista. Somente por meio da agroecologia é que será possível evitar o
colapso mundial e as violências estruturais implementadas pelo Estado, em
conjunto das grandes corporações, incluindo, o agronegócio.
Portanto, alguns questionamentos
surgem em meio aos dados informados, como por que milhões de pessoas ainda se
encontram na linha da grave insegurança alimentar, considerando todos os
avanços no campo do conhecimento sobre agricultura, tecnologia e nutrição? Por
quais razões os movimentos indígenas e campesinos são criminalizados e
perseguidos pelo Estado e elites agrárias? Quais são os interesses por trás dos
discursos dos grandes representantes da agropecuária? A quem serve os
representantes políticos da Frente Parlamentar da Agropecuária no Congresso
Nacional?
O foco no tema da segurança
alimentar aqui proposta não se circunscreve na necessidade de produzir mais
alimentos para alimentar as pessoas famintas, mas sim, em identificar a
posição, o lugar e quem são as pessoas alcançadas por esses alimentos.
A reflexão sobre os dados até agora levantados, chamam atenção para a necessidade de buscarmos uma transformação social, de maneira que o modelo de organização econômico adotado hoje, não seja mais pautado na exploração desenfreada dos recursos naturais, tampouco das populações pobres, negras, mulheres, indígenas e campesinos. É preciso adotar uma abordagem agroecológica, capaz de romper com o funcionamento do agronegócio hegemônico, e seus tentáculos legitimadores.
Há anos os povos originários, negros, campesinos, e campesinas têm se dedicado na luta contra o agronegócio hegemônico, o capitalismo da barbárie e os efeitos do neoliberalismo mundial. A partir disso, é necessário visibilizar os dados sobre os danos sociais causados pela agropecuária, quais são as informações invisibilizadas, os diferentes negacionismos propagados, bem como dispensar maior atenção sobre as demandas e articulações de resistência e força política contra essa ordem hegemônica exploratória e destruidora, existentes no Brasil. (ecodebate)
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