A humanidade já
está perdendo para as mudanças climáticas. Entrevistas com Paulo Artaxo, José
Marengo e Marcos Buckeridge.
Assim, para
manter o assunto na pauta do dia, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU procurou
cientistas para que discutissem aquilo que acham mais importante no relatório.
Mas não houve debate. Há apenas consenso. Como diz Marcos Buckeridge, em
entrevista concedida por e-mail ao IHU, “estamos perdendo para o avanço das
mudanças climáticas”. Isso porque está mais do que claro que o aquecimento da
temperatura do planeta tem acelerado por ação humana. “Nos outros relatórios se
discutia se era provável, pouco provável, muito provável, mas agora sim, é um
fato comprovado: o ser humano é responsável pelo aquecimento, particularmente
por aquele dos últimos 20 anos”, complementa José Marengo, em entrevista
concedida via Zoom.
O outro
consenso entre os especialistas é que a humanidade está atrasada na reação, já
não é mais uma questão de gerações. Nossos hábitos devem mudar agora porque nós
mesmos temos sofrido com o desequilíbrio que causamos no planeta. “Muitas das
mudanças climáticas são irreversíveis. Por exemplo, uma vez que se derretem
toneladas e toneladas de gelo da Groenlândia, tudo isso vai para os oceanos e,
obviamente, não há como fazer com que esse gelo derretido volte para o local de
origem”, observa Paulo Artaxo, em entrevista concedida via áudios de WhatsApp.
Com isso, perdemos biodiversidade e eventos climáticos extremos fazem de nossa
vida um tormento. Enquanto nas cidades sofremos com alagamentos ou
desabastecimento de água potável, no campo já não conseguimos mais produzir
tanto. “Basta termos uma ideia, este ano, do quanto o agronegócio brasileiro
está perdendo de recursos: são bilhões de dólares por causa da seca que está
atingindo uma parte significativa do Brasil”, exemplifica Artaxo.
Paulo Artaxo –
Muitas das mudanças climáticas são irreversíveis. Por exemplo, uma vez que se
derretem toneladas e toneladas de gelo da Groenlândia, tudo isso vai para os
oceanos e, obviamente, não há como fazer com que esse gelo derretido volte para
o local de origem. A mesma coisa na Antártida. No caso de uma floresta, uma vez
derrubada, pelo menos na escala de tempo de alguns séculos dificilmente é
possível recuperar a saúde e a biodiversidade originais dessa floresta.
A questão é que
não sabemos ainda onde estão os tipping points no sistema climático, tanto no
cenário brasileiro como no global. Há algumas indicações, mas o relatório do
IPCC não aponta quais são esses tipping points, por falta de embasamento
científico.
José Marengo –
Essa questão de tipping points foi uma hipótese, uma teoria que saiu faz algum
tempo. No caso do Brasil, da América do Sul, um tipping point seria a Amazônia,
mas existem outros em vários lugares do planeta. No caso da Amazônia,
chegando-se a um aquecimento de 4, 4,5°C ou a um desmatamento de uma área maior
do que 40%, ou ainda ao aumento da concentração de CO2 acima de 400,
o clima posterior nos levaria ao tipping point e, com isso, o clima passaria a
ser diferente.
Essa diferença
seria, segundo os modelos, o colapso da Amazônia e a substituição por outro
tipo de vegetação, que poderia ser uma savana ou uma floresta secundária. Isso
significaria outro ecossistema, outro bioma. Atualmente, a Amazônia funciona
como um sumidouro de carbono e, se ultrapassarmos esse tipping point, ela
passaria a ser uma fonte de carbono. Como uma fonte de carbono, amplificaria
muito mais o aquecimento global. Claro que teríamos impactos na biodiversidade
e também no papel que a Amazônia tem como fonte de umidade, como no caso de
chuvas em outros lugares como, por exemplo, na Bacia do Prata, no sudeste da
América do Sul.
Alguns pesquisadores dizem que nós já entramos no tipping point, mas é difícil saber, porque a Amazônia tem quase 6 milhões km2. Talvez a área que já poderia ter entrado em tipping point seria o sudeste amazônico, onde temos o arco de desmatamento e a área que é mais vulnerável a queimadas, como demonstra o estudo da Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE.
Artigo referente aos estudos, publicado na revista científica Nature, pode ser acessado aqui.
Segundo essas
observações, nessa região já haveria um comportamento correspondente a uma
fonte de carbono. Mas isso são observações iniciais, não há uma generalização
de que a Amazônia já passou todo o ponto de inflexão e que o clima já mudou. É
apenas uma amostra porque, segundo os modelos, esse tipping point aconteceria
em meados deste século, mais ou menos em 2050, 2060 e ainda é relativamente
muito cedo. No entanto, o fato é que já existem algumas amostras por aí e já
podemos ver que estão aparecendo.
Marcos
Buckeridge – Estamos perdendo para o avanço das mudanças climáticas. A
temperatura do planeta está aumentando muito rápido e vários efeitos já estão
se tornando irreversíveis a médio e longo prazo. O aumento no nível do mar, por
exemplo, que deriva do degelo principalmente nos polos do planeta, deverá
continuar pelo menos até o fim deste século. O aumento médio de temperatura na
atmosfera aquece lentamente o mar causando problemas nas regiões costeiras, que
sofrerão cada vez mais destruição. Há também um efeito em terra, que é o degelo
dos topos de cadeias de montanhas muito altas. Em muitos lugares no mundo – um
exemplo são os Andes – cidades próximas obtêm a sua água através de um lento
degelo da neve, que fornece a água na intensidade e velocidade certas. Com o
degelo rápido, mais água pode gerar alagamentos. Por outro lado, quanto mais o
degelo aumenta, menos água ficará disponível para as populações.
No Brasil, os
efeitos da gestão desastrosa da Amazônia se somam ao aumento de temperatura de
10 graus Celsius devido às mudanças climáticas. Com as políticas descabidas do
governo federal, diminuindo a vigilância, não aplicando multas e desprezando a
ciência sobre o assunto, ensejam e até estimulam mais queimadas. Estamos muito
próximos, se é que já não passamos, de um efeito irreversível sobre a Amazônia
oriental. Quando se perde uma floresta, mesmo que seja uma parte dela, a
recuperação, se houver, pode levar mais de uma centena de anos. Já sabemos que
a idade média das árvores no ambiente tropical no mundo é, em média, de 180
anos. Portanto, ao perder árvores, que são os seres que sequestram a maior
parte do carbono em seus corpos, teremos que esperar o mesmo tempo para chegar
ao mesmo acúmulo de carbono. Considero, portanto, a perda de floresta que
estamos vendo na Amazônia brasileira irreversível para este século. Mesmo que
iniciemos processos de replantio e recuperação, eles levarão muitas décadas
para atingir o patamar que hoje existe.
Quando se perde
uma floresta, mesmo que seja uma parte dela, a recuperação, se houver, pode
levar mais de uma centena de anos – Marcos Buckeridge
Descobrimos
recentemente que a mortalidade das árvores deve aumentar drasticamente se a
temperatura média em ambiente tropical passar de 25,4°C. A má notícia é que em
muitas partes dos trópicos já atingimos esta temperatura. A Amazônia já tem a
sua mortalidade de árvores aumentada, e com um aumento ainda maior na
temperatura do planeta os efeitos podem ser desastrosos nas próximas décadas.
No Nordeste
brasileiro e também no Cerrado, os efeitos podem não ser mais reversíveis para
o século XXI. Na Caatinga, de um ambiente semiárido podemos chegar a um
deserto. O nosso Cerrado já está se tornando mais seco e mais quente e com isto
caminha para se tornar cada vez mais um ambiente semiárido e em alguns casos
pode também se aproximar de características de deserto.
Na costa
brasileira, ao invés da predominância de bancos de corais, temos um sistema
chamado de rodólitos. Eles são como os corais, mas são pequenos pedaços de
carbonato de cálcio (como nos corais), mas espalhados pelo fundo do mar na
costa. Os rodólitos são sistemas extremamente delicados e sujeitos a desmonte
conforme as tempestades se tornam cada vez mais extremas na costa. Com
tempestades cada vez mais frequentes, pode ser que não consigam mais se
recuperar, gerando perda de biodiversidade.
Há muitos
resultados negativos devido a todos esses efeitos, mas dois deles podem ser
salientados. Um deles é a perda de biodiversidade e com ela a perda de
possibilidades de cura de doenças, descobertas de novos materiais, entre muitas
outras consequências. O outro efeito é sobre o próprio clima. Ao afetar os
biomas brasileiros, particularmente a Amazônia, a Caatinga e o Cerrado,
provocam-se efeitos sobre a estabilidade do clima em toda a região Sudeste,
causando secas prolongadas que atingirão em cheio o agronegócio brasileiro.
Assim, olhando somente alguns dos tipping points que afetam o Brasil, podemos concluir que as consequências dos efeitos das mudanças climáticas para os brasileiros têm um potencial terrível e potencialmente devastador. Temos que tomar providências com urgência, pois estamos rapidamente nos aproximando de pontos de não retorno.
Basta termos uma ideia, este ano, do quanto o agronegócio brasileiro está perdendo de recursos: são US$ bilhões por causa da seca que está atingindo uma parte significativa do Brasil – Paulo Artaxo
IHU – Quais os
impactos sociais e econômicos dessas mudanças climáticas no Brasil e que
caminhos se pode construir diante desses cenários?
Paulo Artaxo –
Os impactos sociais e econômicos das mudanças climáticas serão enormes. Basta
termos uma ideia, este ano, do quanto o agronegócio brasileiro está perdendo de
recursos: são bilhões de dólares por causa da seca que está atingindo uma parte
significativa do Brasil.
Esses impactos
sociais e econômicos só tendem a aumentar, por exemplo, com o processo de
desertificação acelerada do Nordeste brasileiro. Os impactos sociais serão
enormes porque o Brasil precisará ter uma estratégia de como realocar milhões
de brasileiros que vão viver em regiões onde será difícil haver atividades
econômicas no futuro.
José Marengo –
Temos todos os tipos de impactos esperados, dependendo da região. Se pensarmos
na Amazônia, veremos que em 20 anos tivemos três secas extremas e três
enchentes extremas. Essa alteração na frequência de extremos tem impactos na
população. Já devem ter visto fotos de Manaus inundada recentemente e isso
afeta a população e o comércio.
Uma seca,
noutro exemplo, pode aumentar a intensidade e o risco de incêndios e isso
indiretamente afeta a população, mesmo a fumaça produzida pela queimada pode
agredir a saúde das pessoas e afetar os serviços ecossistêmicos que a floresta
oferece. Uma seca pode deixar o rio muito baixo ou uma enchente eleva muito os
níveis dos rios e, como nessa região muitas pessoas dependem dos rios porque
não há estradas, essas alterações deixam populações isoladas. Em tempos de
pandemia é ainda pior, porque a vacina não pode parar de chegar até essas
comunidades.
No caso do
Nordeste, por exemplo, as secas de 2012 e 2018 mostraram que a pequena
agricultura, a agricultura familiar é a mais afetada. A grande agricultura,
como no caso de Petrolina, Pernambuco, que produz frutas para exportação, não
seria muito afetada, ao contrário da população mais vulnerável socialmente,
aquela que mora no interior do semiárido. Já no Centro-Oeste e Sudeste temos a
possibilidade de crises hídricas como essa pela qual estamos passando agora ou
como a de 2001 ou 2013. No caso do Pantanal, o risco de fogo é muito alto. O
Pantanal vem enfrentando secas desde 2009, afetando a população. Na região Sul
também há impactos no caso de secas, porque tudo isso afeta a segurança
energética, já que precisamos usar as termelétricas que, por sua vez, liberam
muitos gases de efeito estufa, além de serem caras.
As cidades
costeiras também estariam muito afetadas pela elevação do nível do mar. No caso
de cidades do sudeste e sul, além da elevação do nível do mar, há possibilidade
de inundações costeiras, consequência das tempestades, que estão ficando mais
intensas. Com o nível do mar mais alto essas tempestades estão levando mais
águas, as ressacas, para o interior das cidades. Isso já tem acontecido em
Santos, no Guarujá, em São Paulo, e em outros lugares.
De diferentes
formas, todo o país é afetado. Imagine o agronegócio, por exemplo, na região de
Matopiba, centro-oeste do Brasil. Podemos observar que são resilientes, pois
como há muito dinheiro investido existem sistemas de irrigação, mas se a
temperatura aumenta muito e a precipitação diminui muito, eles podem ser
afetados. No caso da soja, que é uma commodity, afetaria o preço do grão, a
economia, e se teria todo o tipo de impacto que se possa imaginar, atingindo
desde o pequeno agricultor até aquele de grande porte.
A frequência de
chuvas extremas na região Sudeste do Brasil e mesmo no Sul pode gerar uma maior
intensidade de desastres naturais, como enchentes e deslizamentos de terras. E
vemos que isso acontece a cada verão, ainda que previsões sejam feitas para
evacuar toda a população. O Brasil é um país continental e poderíamos esperar
todo tipo de impactos, dependendo da região.
Quando há um desastre natural, um deslizamento de terra, por exemplo, pode afetar tanto a população de alto nível social como os mais pobres. Os desastres naturais são muito democráticos – José Marengo
Impactos sobre todos, mas mais pobres são atingidos primeiro
Quando há um
desastre natural, um deslizamento de terra, por exemplo, pode afetar tanto a
população de alto nível social como os mais pobres. Os desastres naturais são
muito democráticos. Podemos ver o que aconteceu na Alemanha este ano, cidades
bonitas, que não têm nada de pobres foram inundadas, pessoas morreram afogadas.
Isso mostra como qualquer classe social pode ser afetada, mas obviamente os
mais pobres serão os primeiros.
Diante de tudo
isso, os impactos na área social aumentariam, como danos à saúde. E a melhor
forma de diminuir esses impactos seria reduzir a emissão de gases de efeito
estufa, reduzir o desmatamento, tudo aquilo que foi discutido no Acordo de
Paris e que, infelizmente, não foi muito respeitado. Assim o aquecimento do
planeta possivelmente vai passar dos 2°C. No Brasil, algumas cidades e estados
têm planos de adaptação às mudanças climáticas. A questão é atualizar esses
planos e colocá-los em ação, porque um papel, um documento não resolve se não é
aplicado e isso é o que tem de ser feito. Precisamos começar a pensar e fazer
adaptações agora e não quando for muito tarde, em 2030 ou 2040.
Marcos
Buckeridge – Há duas formas de enfrentar as mudanças climáticas: a mitigação,
que significa evitar a emissão de gases do efeito estufa e a adaptação, que são
as providências que temos que tomar depois que o estrago foi feito. Mitigar
custa e tem efeitos econômicos e sociais. Temos que desenvolver novas
tecnologias e implantá-las para evitar as emissões. Por exemplo, o Brasil
investiu por décadas no etanol de cana-de-açúcar como combustível. Esta é uma
medida exemplar de mitigação, que custou aos brasileiros, mas que agora dá
frutos, já que temos uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo.
Adaptar aos
desastres já ocorridos custa muito mais caro do que mitigar emissões. Por isso,
mitigar deve ser sempre a primeira opção. Em outras palavras, para um dado
impacto, o valor da adaptação é ordens de magnitude maior do que o da
mitigação. Além disso o dinheiro, na adaptação, geralmente tem que ser gasto de
uma única vez, pois é uma ação de urgência. Comparando o Brasil com a Europa no
caso dos combustíveis, vemos que a Europa agora vai gastar muito mais para
eletrificar os seus automóveis, enquanto o Brasil já fez a lição de casa desde
a década de 1980. A Europa irá gastar muito mais para se livrar do diesel do
que o Brasil gastou para desenvolver e implantar o bioetanol. Os EUA também
foram eficientes neste aspecto, pois já estão usando mais amplamente o etanol
de milho adicionado à gasolina há mais de uma década.
Comparando o Brasil com a Europa no caso dos combustíveis, vemos que a Europa agora vai gastar muito mais para eletrificar os seus automóveis, enquanto o Brasil já fez a lição de casa desde a década de 1980 – Marcos Buckeridge.
Impactos sociais
Do ponto de
vista social, os impactos das mudanças climáticas sempre afetam e afetarão as
camadas mais pobres da população. Isso porque elas são as mais vulneráveis.
Quando uma sequência de tempestades, ou mesmo furacões atingem o continente, as
populações mais pobres que tenham suas cidades parcialmente destruídas, ficarão
sem água, sem energia e serão as últimas a serem restituídas desses serviços,
enquanto as mais ricas se recuperarão mais rapidamente. O mesmo se dá com as
doenças infecciosas. Com as mudanças climáticas, doenças transmitidas por
vetores (Zika, Dengue, etc.) deverão se espalhar mais rápido, atingindo
principalmente as populações mais pobres que em muitos lugares vivem na
periferia de cidades e têm menos conhecimentos e recursos.
Aposta nas
novas tecnologias
Sobre as
possíveis soluções, elas passam por ações como a implantação de novas tecnologias
e as suas distribuições de forma igualitária, a inserção do conceito de
sustentabilidade em todas as ações humanas e a melhora da governança. Já temos
tecnologias que, com um pouco mais de desenvolvimento poderão ser implantadas.
Por exemplo, o uso do bioetanol como combustível, que já temos implantado em
todo o Brasil, pode ser acoplado a um sistema de células a hidrogênio e
eletrificação dos meios de transporte. Com isso, aumentaríamos ainda mais a
eficiência energética. Temos em desenvolvimento métodos de captura e
armazenamento de carbono, que se acoplados ao transporte eletrificado movido a
etanol, podem levar o Brasil a ser o primeiro país do mundo a atingir emissões
zero no setor energético. Isto tudo, claro, em conjunto com a energia eólica,
fotovoltaica e outras renováveis.
As tecnologias
agrícolas têm que se tornar cada vez mais “ecológicas”. O agronegócio precisa
trabalhar em parceria direta e constante com a preservação e conservação de
florestas. Precisamos encontrar cada vez mais soluções para evitar o
desperdício na cadeia de produção de alimentos. Hoje, 1/3 dos alimentos em todo
o planeta é perdido por desperdício na produção, transporte e consumo. Nisto há
uma forma de mitigação de emissões de enorme valor.
A governança é
um elemento essencial para encontrarmos meios de driblar os impactos das
mudanças climáticas. Precisamos melhorar os sistemas de gestão em todos os
níveis (do federal ao municipal). É imperativo que a gestão em todos os níveis
seja feita no âmbito dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Este
é um dos arcabouços mais sofisticados que temos e nossos políticos e gestores
precisam incorporar com urgência estes elementos de forma a tornar a nossa
governança mais eficiente. Sem ela, os efeitos de novas tecnologias e ações
pontuais terão apenas efeito parcial e os custos serão muito altos para a
população.
Os governos
estão muito atrasados em relação ao entendimento da população em geral por
causa dos interesses econômicos e políticos por trás dos achismos sobre a mudança
climática global – Paulo Artaxo
IHU – O
Relatório do IPCC é bem claro e duro quanto à catástrofe que já estamos
vivendo. Mas como observa a recepção das pessoas quanto a esses dados? Quais os
maiores desafios para tornar a pauta das mudanças climáticas em ações concretas
da sociedade de nosso tempo?
Paulo Artaxo –
A questão das mudanças climáticas globais hoje já é praticamente um senso comum
entre as pessoas. Evidentemente, os governos estão muito, muito atrasados em
relação ao entendimento da população em geral por causa dos interesses
econômicos e políticos por trás dos achismos sobre a mudança climática global.
O relatório do
IPCC é muito claro sobre os perigos que estamos enfrentando, mas a ciência não
faz políticas públicas. Quem faz políticas públicas são os tomadores de
decisão, que são pressionados pelas indústrias, pelo sistema econômico em geral
e pelo sistema financeiro para não agirem. Numa visão de curto prazo, eles
acham que é melhor não fazer nada porque qualquer iniciativa pode custar muito
caro e as próximas gerações é que pagarão a conta. Essa filosofia deve mudar
rapidamente com a pressão popular.
José Marengo –
Este ano foi muito didático. Digo didático porque tivemos extremos de ondas de
calor nos Estados Unidos. A Califórnia já experimentou ondas de calor e como
consequência vêm os incêndios, como acontece agora. Veja o Canadá, por exemplo.
Mas aquela região do Canadá não tem histórico de calor e isso chamou muito a
atenção. Essa onda de calor também foi sentida no meio oriente, Irã e Iraque,
com temperaturas recordes. Também se sentiu na Europa e inclusive no Japão, em
plenos Jogos Olímpicos. Ou seja, este ano de 2021 tem todos os extremos que se
possa imaginar.
É claro que os
eventos são mais extremos e afetam mais a população do hemisfério Norte porque
há mais continente. Mas temos aqui, por exemplo, a crise hídrica nas regiões
Centro-Oeste e Sudeste do Brasil, incêndios e secas no Pantanal, as três ondas
de frio que afetaram o Brasil e parte da América do Sul.
Neste mesmo
ano, tivemos a liberação dos resultados do grupo 1 do IPCC e a Conferência das
Partes, a COP 2026. Todo esse contexto traz referências que são brutais. Por
exemplo, a primeira-ministra Angela Merkel falou que a Alemanha tem de
enfrentar as mudanças climáticas como resposta a grandes enchentes. Se não
tivessem acontecido as enchentes, possivelmente Merkel não teria falado nada.
Então, já estamos vendo uma amostra do que poderá ser o clima futuro. Os dados
mostram isso. Essa realidade do aquecimento global é algo sobre a qual nós
cientistas já estamos falando há tempo, desde o terceiro, quarto, quinto e
agora o sexto relatório do IPCC.
Não vi nenhuma declaração de alguma pessoa importante do governo dizendo que as mudanças climáticas são graves, são um problema e temos que fazer algo – José Marengo.
O silêncio do governo brasileiro
O curioso é que
o relatório foi liberado em 09/08/2021, mas nós já tínhamos começado a dar
entrevistas. O relatório teve uma repercussão muito grande; depois nem tanto,
porque tiveram mais repercussão os tanques andando no Planalto. Eu fico com
muita pena pelo fato de o relatório não ter tido uma repercussão no governo.
Quando digo repercussão, refiro-me a alguma declaração de algum ministro,
dizendo que o país vai assumir os compromissos do Acordo de Paris por causa das
mudanças climáticas. Possivelmente, o Brasil esteja negociando internamente
para ver que posição vai adotar na COP, mas não vi nenhuma declaração de alguma
pessoa importante do governo dizendo que as mudanças climáticas são graves, são
um problema e temos que fazer algo. Nem que fosse para mentir, para dizer que
estão preocupados. Mas não vimos isso. O que vimos foram presidentes,
pesquisadores de ONGs e associações de produtores falando da preocupação com o
relatório.
O tema das
mudanças climáticas já está sendo discutido há algum tempo e o aquecimento
global está aí, mas só se fala nele quando há uma seca, uma queimada, uma onda
de frio, mas não como se fosse uma agenda. É um pouco triste ver essa situação.
A comunidade científica e a imprensa estão muito ativas, levando o tema para
todo mundo, mas falta resposta do governo. Eu trabalho para o governo, mas
gostaria de ter visto uma declaração, no Jornal Nacional ou em algum jornal de
importância, de algum ministro ou alguém do governo que tenha a ver com o meio
ambiente, dizendo que o Brasil está preocupado. Foi isso que faltou.
Claro que
sempre tem o ceticismo e o negacionismo, que não vão desaparecer, mas por
enquanto eles estão quietos. A realidade está aí e todos enxergam o que está
acontecendo com o clima em nível nacional e internacional. Já avisamos, já
advertimos, estão acontecendo coisas e as pessoas não escutam. Se estamos no
meio de uma crise hídrica, tem que poupar água, por exemplo. Aquela ideia de
reciclar o lixo e ir de bicicleta para o trabalho já não funciona mais,
infelizmente. Tem que ter pressão da população para que o governo assuma os
compromissos ambientais, como assumir o Acordo de Paris, reduzir o desmatamento
a zero.
Essas
atividades são necessárias porque se o aquecimento global é um processo
natural, com essas medidas de mitigação o aquecimento poderia ser menor e os
impactos poderiam ser menores, o custo de adaptação também seria menor e
perderíamos menos vidas. De outra forma, com um aquecimento acima de 4 graus,
poderemos ter o que alguns chamam de mudanças climáticas perigosas, com todos
os tipping points ultrapassados. E Deus nos acuda de qual será o clima futuro.
A íntegra do
relatório está disponível no site do IPCC
Marcos
Buckeridge – Esta dureza que se mostra neste relatório já se via em outros
relatórios anteriores do IPCC. Mas a dureza aumenta também porque, com
modelagens cada vez mais precisas, estamos confirmando o que já vem sendo dito
desde a década de 1990. Não há mais como negar que o ser humano está por trás
dos efeitos das mudanças climáticas. Não há mais como negar os impactos. A
mensagem agora é: está claro, não há mais dúvidas!
A percepção das
pessoas sobre a existência das mudanças climáticas e de sua relação com o ser
humano vem aumentando consideravelmente, particularmente na última década. Até
mesmo as crianças compreendem melhor o processo, pois aprendem sobre ele na
escola. Mas temos grandes desafios ainda. Um deles é a velocidade com que os
fenômenos ocorrem. O ser humano, sendo um animal, apresenta um comportamento de
fuga – ou seja, entra em ação – somente quando o perigo é iminente. Isto causa
dificuldades, pois quando dizemos que os efeitos serão neste século, só
sensibilizamos uma parte da população (pais que se importam com o futuro de
seus filhos). Indivíduos muitas vezes se veem como alguém que talvez nem esteja
mais neste planeta quando tudo acontecer.
Então, por que agir? É um comportamento natural, como mencionei, mas os seres humanos são mais do que isto. Podem sim aprender que existe a preservação de sua própria espécie e vêm aprendendo que a preservação das demais espécies afeta a preservação da sua própria.
Ética socioambiental
Quando
examinamos a ética socioambiental, há dois tipos de valores: os intrínsecos e
os instrumentais. Quando se usa a ética de valores intrínsecos, se olha o
indivíduo, aquela vida em específico. É uma visão que chamamos de
antropocêntrica. Já ao usar valores instrumentais, se considera o sistema e os
efeitos que as mudanças no sistema como um todo podem causar no indivíduo. A
visão dos seres humanos, em lugares desenvolvidos no planeta, vem avançando no
sentido de olhar o mundo pela lente da ética de valores instrumentais.
Sei que é uma
mudança cultural e que geralmente é lenta, mas temos que tentar acelerar uma
mudança em direção à ética instrumental e incluir mais pessoas neste tipo de
visão de mundo. Tem havido rupturas e até polarizações importantes neste
aspecto. Uma parte da população mundial vem se isolando ainda com uma visão da
ética de valores intrínsecos. É preciso convencer a todos de que o Homo sapiens
não é o centro, mas sim uma parte do sistema. E que, sem equilíbrio do sistema,
a civilização não se sustenta. Este talvez seja o maior dos desafios que temos
para enfrentar as mudanças climáticas. Temos que compartilhar com toda a
população os conhecimentos que ganhamos com o incrível avanço da ciência,
principalmente nos séculos XX e XXI. Só assim, o negacionismo que vemos hoje na
sociedade se tornará mínimo ou, melhor ainda, será erradicado.
IHU – Que outro
ponto do relatório lhe chama atenção? Por quê?
Paulo Artaxo –
A linguagem do novo relatório do IPCC é muito mais explícita, muito mais dura,
muito mais clara no sentido de que a emergência climática já chegou. Essa
emergência climática vai ter impacto socioeconômico enorme em todo o planeta.
Então, a mensagem da ciência é muito clara.
Agora, a
ciência já fez o seu papel. Daqui para a frente, é com o setor de comunicação,
que deve levar essa mensagem ao grande público, e com os tomadores de decisão,
que devem tomar as decisões políticas em relação ao enfrentamento das mudanças
climáticas globais.
José Marengo –
A mensagem principal do relatório é que o ser humano tem um papel ativo [no
aquecimento global]. Nos anos 1990, quando começou o primeiro relatório, havia
a questão sobre a possibilidade de o ser humano interferir no aquecimento
global. Nos outros relatórios se discutia se era provável, pouco provável,
muito provável, mas agora sim, é um fato comprovado: o ser humano é responsável
pelo aquecimento, particularmente por aquele dos últimos 20 anos.
O clima futuro
vai ser mais extremo: de temperaturas, de chuvas, secas e extremos na elevação
do nível do mar. Todo tipo de informação que o Grupo 1, que é da base
científica, oferece, está dado de bandeja para a avaliação do Grupo 2, que é o
que trata de impacto, vulnerabilidade e adaptação. Se você me perguntar se o
agronegócio do Centro-Oeste será afetado, este relatório não apresenta
avaliações desde impactos de agricultura ou água, segurança alimentar ou
segurança hídrica, é o Grupo 2 quem vai fazer isso. Porém este relatório mostra
que a temperatura aumentou, que as chuvas estão diminuindo, que os extremos
climáticos e as secas estão aumentando. Então, oferecemos as evidências
científicas para que o setor agrícola e outros setores comecem a se preparar e
os governos comecem a agir, porque o IPCC não é prescritivo em forma de
política. O IPCC não propõe políticas públicas; ele é uma síntese da ciência,
passada para os governos e a comunidade, para cada governo tomar as decisões
que acharem relevantes.
O IPCC não
propõe políticas públicas; ele é uma síntese da ciência, passada para os
governos e a comunidade, para cada governo tomar as decisões que acharem relevantes
– José Marengo
Em governos
anteriores, participávamos de audiências na Câmara e no Senado. Mostramos o
quinto relatório e os estudos que o painel brasileiro de mudanças climáticas
fazia para o Brasil, e nessas ocasiões sempre surgiam questões como “são
projeções?”, “vocês têm certeza?”. Bom, todo modelo tem incerteza, por isso se
chamam projeções. [Os parlamentares] sempre ficavam na dúvida e depois alguém
surgia com a proposta de que era preciso ouvir o outro lado, que são os
céticos, para ver o ponto de vista deles. Então, é uma situação de doença já
instalada. Colocando em termos médicos, o paciente está doente e já tem a
doença cientificada. Alguém que diz que quer ouvir uma segunda opinião está
perdendo tempo.
O que falta é
que todas essas informações científicas que fornecemos sejam seriamente
consideradas. Por isso que Artaxo, eu e outros viramos ativistas, saímos dos
escritórios e vamos para audiências públicas, escolas, conferências nacionais e
internacionais, conferências de produtores, para apresentar a situação
climática, pois ela vai afetar todo mundo. Antes, dizíamos que iria afetar
nossos netos, mas agora a situação é que vai afetar nossos filhos. Este é o
típico ano em que já começaram os furacões nos EUA e será um ano muito ativo
nesse sentido. No ano passado, ocorreram 30, muito além do normal. Esse é um
extremo e vemos que se o furacão afeta países pobres da América Latina ou da
América Central, como Nicarágua e El Salvador, as pessoas morrem. Nos EUA, em
que o sistema de previsão é um pouco mais avançado, as pessoas são evacuadas,
mas nem todos os países têm esse sistema. A América Central é uma das mais
vulneráveis, se não a mais vulnerável do planeta, em termos de mudanças
climáticas.
Marcos
Buckeridge – Temos que ficar atentos aos próximos relatórios que serão
divulgados em 2022. IPCC geralmente lança 3, o primeiro é mais sobre o clima e
as modelagens, o segundo sobre os impactos e o terceiro sobre as possíveis
soluções. Os próximos a serem lançados trarão mais informações relevantes sobre
como o clima está afetando os sistemas naturais e humanos e sobre como podemos
agir. IPCC lança este 6º relatório muito proximamente ao lançamento em 2018 do
Relatório Especial 1,5ºC, que traz os três aspectos em conjunto. Vale a pena
olhar para este relatório anterior também, que foi uma encomenda do encontro de
Paris em 2015.
É importante
chamar a atenção de que os relatórios do IPCC sempre trazem uma visão mundial e
de grandes regiões do planeta. Mas é crucial salientar que as ações locais são
também muito importantes. As ações de cada pessoa e de cada governo local são
de extrema relevância para o enfrentamento das mudanças climáticas. Não devemos
ficar esperando que nossos governos sozinhos resolvam os problemas. Temos que
participar, fazer a nossa parte. Mas lembrar que cada parte tem que estar
conectada ao todo como numa grande rede interconectada. É curioso como o
problema do enfrentamento das mudanças climáticas globais salienta fortemente a
importância da democracia no mundo. Com ela, se bem conduzida, enfrentaremos
melhor estes problemas do que com qualquer outro sistema de poder que o mundo
já viu.
É importante
chamar a atenção de que os relatórios do IPCC sempre trazem uma visão mundial e
de grandes regiões do planeta. Mas é crucial salientar que as ações locais são
também muito importantes – Marcos Buckeridge
IHU – Deseja
acrescentar algo?
José Marengo –
O IPCC tem três grupos: o Base Científica, que é o Grupo 1, cujo relatório foi
liberado; Impacto, vulnerabilidade e Adaptação, que é o Grupo 2, que trata dos
impactos e propostas de adaptação; e o Grupo 3, que é Mitigação. Dessa vez, o
IPCC teve muito cuidado para os três grupos trabalharem em conjunto e não
isoladamente. A informação que o Grupo 2 recebe para avaliar impactos
hidrológicos, de agricultura e de saúde, vem do Grupo 1. Desde o quinto
relatório, esse modo de trabalho é uma novidade.
O IPCC não é somente formado por meteorologistas e climatologistas; tem geógrafos, geólogos, médicos, advogados, historiadores, porque há capítulos de história da ciência. Então, tem todo tipo de informação sobre ciências naturais, ciências físicas, ciências sociais e médicas. Por isso, esse conceito de mudança climática passou a ser substituído pelo conceito de mudança global, que seria o impacto das mudanças climáticas em toda a vida humana. Isso foi muito reforçado no sexto relatório.
Tipping points: são “pontos de inflexão” no sistema terrestre, que podem levar a mudanças irreversíveis no estado do sistema. Os pontos de inflexão podem ser cruzados com um aumento moderado da temperatura global de 1,5–2°C em relação aos tempos pré-industriais, devido ao aquecimento global atual. Se o ponto de inflexão em um sistema for cruzado, isso pode levar a uma cascata de outros pontos de inflexão. Uma dessas cascatas poderia levar o mundo a um estado de aumento da temperatura de 4 ou 5°C acima dos níveis pré-industriais. (Nota do IHU). (ecodebate)
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