O Brasil, que ainda não
erradicou o analfabetismo nem é capaz de garantir o acesso universal de sua
população à saúde pública de qualidade, agora convive dramaticamente com a
fome. Os números são estarrecedores.
Cerca de 33,1 milhões de
brasileiros passam fome, segundo dados do 2º Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizada
pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional (Rede PENSSAN).
Em comparação com 2020,
praticamente dobrou o número de pessoas no País que não têm o que comer
diariamente: são 14 milhões de cidadãos a mais nessa situação, em números
absolutos.
O levantamento ainda mostrou
que 125,2 milhões de brasileiros – o correspondente a mais da metade (58,7%) da
população nacional – vivem com algum grau de insegurança alimentar. Problema
gravíssimo que, em outras palavras, afeta seis em cada 10 habitantes de nosso
país. Aumento de 60% em relação a 2018 e de 7,2% se comparado com 2020. O
quadro é dramático.
A pesquisa desnudou a face
mais cruel do empobrecimento dos brasileiros ao longo das últimas décadas. O
que se vê, atualmente, é uma significativa parcela da população passando da
pobreza para a miséria, sem renda suficiente para garantir pelo menos o
alimento do dia a dia, absolutamente distanciada do mínimo de dignidade.
Por opções erradas de seus
governantes, o País transformou-se numa imensa fábrica de pobreza. Uma das
principais causas dessa situação é o verdadeiro manicômio tributário instalado
no Brasil, com elevadíssima carga de tributos incidindo sobre produtos de
consumo, em especial gêneros alimentícios, vestuário, limpeza e higiene
pessoal.
Enquanto as nações
desenvolvidas optam por tributar a renda, o Brasil faz incidir mais tributos
sobre o consumo. Basta dizer que do total da arrecadação tributária nacional,
entre 41 e 44% advêm dessa política. Nos países de Primeiro Mundo, essa
proporção fica entre 17 e 21%. Isto é: o Brasil está penalizando fortemente a
população mais pobre.
O excesso de encargos sociais e previdenciários também tem papel relevante nesse cenário. Ajuda a compor o mapa da penúria. Para entender tal situação, mais um exemplo: em 2020, o total de impostos pagos pelo trabalhador brasileiro – aquele que tem a sorte de ainda estar empregado – correspondia à sua remuneração por 151 dias de trabalho.
Não se pode creditar à pandemia tal situação embora, de fato, a Covid-19 tenha contribuído para o atual estágio brasileiro. Esse imenso buraco no qual se meteu involuntariamente a população vem sendo cavado há muito tempo. É uma obra em permanente construção, fruto da irresponsabilidade dos governos que, em vez de atacar as causas da pobreza, vêm investindo em medidas meramente paliativas, socorros temporários quando o povo merece dignidade vitalícia.
Políticas públicas efetivas
voltadas à erradicação da miséria deram lugar ao assistencialismo por meio de
programas como Auxílio Brasil, Vale-Gás, Vale-Caminhoneiro e outros, geralmente
implantados em anos eleitorais, com potencial para render votos, mas muito
longe da solução definitiva de um dos mais sérios problemas nacionais. Exemplo
é a distribuição gratuita – porém temporária – de absorventes, produto que
poderia ser mais acessível à população de baixa renda se sobre ele não
incidissem 34,48% de tributos.
Quem tem fome tem pressa,
alertava o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho. Entretanto, exatos 25
anos após a sua morte, esse grito de alerta ainda não foi ouvido pelas
autoridades. Nossos governantes são incapazes de enxergar os caminhos para
mudar o rumo do País. Insistem em continuar gerando déficit público primário
apesar de a arrecadação tributária corresponder a 33% do Produto Interno Bruto
(PIB). Resistem à inadiável redução drástica da carga tributária sobre consumo
dos gêneros essenciais. E insistem na manutenção dos elevados gastos
tributários, muitos concedidos sem nenhum critério, que somam 4,2% do PIB.
Da mesma forma, os governos
se sucedem sem qualquer disposição de diminuir os privilégios – o foro por
prerrogativa de função é o maior exemplo, com cerca de 55.000 beneficiados -,
e, menos ainda, de promover o efetivo combate à corrupção, sorvedouro de
recursos públicos, alimentando a sensação de impunidade que permeia a sociedade
e serve de estímulo à improbidade administrativa.
A falta de comida à mesa mata
hoje e compromete o amanhã, porque cria uma geração de subnutridos, com
reflexos na saúde e na educação. Seus efeitos são devastadores e se prolongam
no tempo.
A democracia brasileira está
muito próxima de ser uma concha vazia, à qual se referia Mandela. Democracia de
verdade pressupõe garantia de dignidade à população. E não existe liberdade
política sem liberdade econômica. Vivemos, então, uma fase de ilusionismo.
Se os governantes não se sensibilizam com a fome de seu povo, nada mais será capaz de fazê-lo.
Invisíveis e ignorados: mais de 5 milhões de pessoas em extrema pobreza passam realmente fome no Brasil.
Samuel Hanan é engenheiro com
especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e
finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos
livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.
(ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário