Entre
todo o conteúdo divulgado pela mídia ao longo do último ano a respeito da
escalada da fome no Brasil em meio à pandemia de Covid-19, sem dúvida uma das
imagens mais marcantes foi a da chamada ‘fila dos ossos’, que mostrava dezenas
de pessoas passando a noite na fila para conseguir pedaços de ossos com
retalhos de carne distribuídos por um açougue em Cuiabá em 2021.
Era
um prenúncio do cenário de agravamento acelerado da insegurança alimentar no
país, que ganhou contornos mais concretos a partir de abril de 2022, quando
foram divulgados os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar
no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede de Pesquisa
em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Segundo o
levantamento, 33,1 milhões de brasileiros conviviam cotidianamente com a fome
no país, um aumento de mais de 73% em relação aos números do final de 2020,
quando o 1º Inquérito produzido pela Rede Penssan durante a pandemia apontou
que 19,1 milhões de pessoas não tinham o que comer. No total, o número de
pessoas convivendo com algum grau de insegurança alimentar no país saltou de
117 milhões para 125 milhões no período, o equivalente a mais da metade da
população brasileira.
Muito
já se falou sobre as razões por trás da explosão da fome no Brasil (que
inclusive foi tema da matéria de capa da edição de julho e agosto de 2021 da
Poli). Mas uma dimensão que tem sido pouco explorada – tanto no debate sobre as
causas do problema quanto no de que fazer para enfrentá-lo – é a do papel da
agroecologia nesse contexto.
Para representantes do movimento agroecológico – que vem fazendo a crítica ao modelo do agronegócio e apresentando alternativas para a produção sustentável de alimentos saudáveis, de forma socialmente referenciada – o momento é estratégico para avançar a pauta agroecológica, retomando e fortalecendo políticas públicas que dialogam com os princípios da agroecologia em suas várias dimensões, e que deram certo no enfrentamento a fome no passado, bem como caminhar na direção de mudanças mais estruturais no atual sistema agroalimentar.
O que o avanço do agronegócio tem a ver com a fome?
Há
uma ligação direta com o modelo hegemônico de produção, consumo e distribuição
de alimentos, com a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar.
É o que diz Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor da Ong Instituto Fome
Zero. “As políticas públicas que estavam funcionando até pouco tempo, que agora
sofrem um processo de desmonte, tentam equilibrar o jogo, consertar algumas
questões que muitas vezes são estruturais. Se a gente pudesse mexer
estruturalmente nesse modelo, nessa forma de produzir do sistema agroalimentar,
a gente poderia eliminar alguns aspectos inerentes a esse modelo e que
contribuem para o quadro de insegurança alimentar”.
Ele
dá o exemplo da monocultura, e cita o clássico ‘Geografia da Fome’, de Josué de
Castro, publicado há 76 anos. “Ele analisa a Zona da Mata do Nordeste, que na
época era uma grande produtora de açúcar para exportação. Ele nota que uma área
super fértil, que tem uma renovação hídrica, que tem todas as condições para
produzir alimentos, esteja sendo dedicada para produzir cana de açúcar, que é
uma planta que exige muito da natureza, que acaba desgastando o solo. Ele
aponta que não era por acaso que os índices de desnutrição ali eram mais
elevados que os observados no Sertão nordestino”, resgata.
Para os especialistas ouvidos pela Poli, não se trata de uma coincidência que o agravamento da fome atualmente ocorre em paralelo a uma política de estímulo ao modelo agroexportador pelo Estado. “Os últimos anos foram um período em que se acentuou o apoio a perspectiva de modelo agroexportador, pelas facilitações econômicas de estímulo aos monocultivos combinadas com uma flexibilização perversa da legislação ambiental, uma expansão assustadora da aprovação de agrotóxicos e também do desmatamento”, aponta Maria Emilia Pacheco, integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar. “Em paralelo houve uma desconstrução, um desmantelamento de políticas afirmativas que vinham se construindo. Isso gera fome”, complementa Pacheco. E exemplifica com o programa do governo federal para instalação de cisternas no semiárido nordestino, cujo orçamento, como apontou a reportagem da Poli Nº 78 ‘Tem gente com fome’, caiu de R$ 643 milhões em 2014 para R$ 74,7 milhões em 2020. “Em lugar da indústria da seca nós temos a perspectiva de convivência com o semiárido, baseada no princípio dos estoques, de água, de terra, o estoque de sementes, de alimentos para os animais. É essa visão que organiza uma proposta tão significativa como a convivência com o semiárido, e isso foi interrompido”, lamenta. E complementa: “Por outro lado, o cerco dos grandes projetos, da expansão da soja, do gado, da poluição das águas, vem se fechando. Muitas comunidades à beira de um grande rio que não tem peixe, em razão da desestruturação da paisagem, do desequilíbrio ecológico gravíssimo, com os animais disputando alimento com os humanos porque com a devastação eles chegam perto dos roçados”.
Raro de Oliveira/ANA
Mobilização
no contexto de eleições
A
superação da fome foi um dos itens da agenda do movimento agroecológico para os
próximos quatro anos apresentada na publicação ‘Brasil: do flagelo da fome ao
futuro agroecológico’. Lançado em setembro pela ANA, como parte da Campanha
‘Agroecologia nas Eleições’, o documento, que reafirma o papel central da
agroecologia no enfrentamento a insegurança alimentar, mescla propostas mais
imediatas – como a retomada e ampliação de políticas e programas que já existem
– com outras que reivindicam transformações mais estruturais, com medidas que
combatam a elevada concentração fundiária do país.
“É
importante a gente lembrar que a agricultura familiar é responsável pela maior
parte do alimento que a gente consome. O agronegócio produz commodities. Se
você não tem políticas para apoiar em um momento de crise como o que estamos
vivendo, você coloca em risco a necessidade de cuidar do fortalecimento, da
retomada e até da criação de políticas voltadas a apoiar esse setor que produz
alimentos para a população brasileira”, afirma Flavia Londres, integrante da
secretaria-executiva da ANA. Ela ressalta, no entanto, que agroecologia e
agricultura familiar não são sinônimos. “A agricultura familiar não é toda
agroecológica, é evidente. Mas é um sistema de produção perfeitamente
compatível com a proposta da agroecologia, então, começa por aí”, diz Londres.
Nesse sentido, ela vê como essenciais a retomada de políticas como o Programa
de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE), pelos quais o governo federal adquire alimentos produzidos por
agricultores familiares respectivamente para o abastecimento de programas de
assistência social e para a alimentação dos estudantes da educação básica nos
estados e municípios. “Eles tiveram uma importância enorme, porque quando você
garante a compra da agricultura familiar você consegue apoiar a estruturação da
produção numa comunidade. Os agricultores conseguem se planejar, investir na
produção”, diz Londres.
Segundo
reportagem do portal O Joio e o Trigo, no entanto, o orçamento do PAA teve uma
redução de 77,3% entre 2014 e 2019. Segundo a matéria, em 2020 houve um
incremento de R$ 500 milhões ao programa por meio da aprovação da Medida
Provisória 957, reivindicada pelo movimento agroecológico em meio à pandemia de
Covid-19. Só que apenas 43,7% dos recursos disponíveis foram executados pelo
Ministério da Cidadania. Já em 2022, o presidente Jair Bolsonaro vetou a emenda
parlamentar à Lei de Diretrizes Orçamentárias que previa um reajuste de 34% no
PNAE. “Tivemos governos que investiram pesadamente em políticas promovendo o
agronegócio. O que teve de dinheiro para crédito, ensino, pesquisa, isenção de
impostos, financiamentos, perdões de dívidas, estruturação de mercados, tudo
voltado para o agronegócio. Apesar disso a agricultura familiar sobrevive,
produzindo até hoje 70% dos alimentos que a gente consome. Imagina como seria
se a gente tivesse um conjunto de políticas destinadas para promover esse
modelo. Ensino, pesquisa, programas de organização e fortalecimento de mercado.
Isso é perfeitamente possível, basta ter vontade política”, cobra Londres.
Ela
afirma que a Campanha ‘Agroecologia nas Eleições’ da ANA realizou também um
levantamento das políticas públicas de apoio a agroecologia e segurança
alimentar nos estados e municípios, e contabilizou mais de 700 dessas políticas
nos municípios e mais de 400 nos estados. “São muitos temas: você tem políticas
de apoio a mercados, feiras, de regularização fundiária, de reconhecimento de
territórios de populações tradicionais, de apoio a juventudes, mulheres, um
leque muito grande. Mas é importante observar que em muitos casos identificamos
políticas que já são aprovadas, previstas em lei, mas não têm orçamento garantido.
Uma boa parcela não está perfeitamente consolidada, tem orçamento, ou sofre
descontinuidade. Mas é um referencial bastante importante no sentido de dar
exemplos e de inspirações sobre o que pode ser feito em termo de política
pública”, diz a integrante da secretaria-executiva da ANA.
Para Maria Emilia Pacheco, a pandemia de Covid-19 evidenciou a importância de se construir uma política de abastecimento alimentar popular. “Tão importante quanto a produção do alimento saudável é a sua distribuição. Nós precisamos de uma distribuição descentralizada, e a ação de solidariedade dos movimentos sociais, das Ongs, das articulações, mostrou que para avançar nessa interação campo-cidade é preciso que haja não só o crescimento de equipamentos públicos de segurança alimentar, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, etc., como também um apoio público a essa rede que tem garantido uma descentralização da distribuição de alimentos”, opina Pacheco.
Articulação de políticas
É
num conjunto amplo de políticas articuladas tendo como referencial a
agroecologia que o movimento aposta como resposta à fome. Para Flavia Londres,
outra frente fundamental é o da assistência técnica e extensão rural. “As
comunidades rurais em que produzem alimentos têm direito a uma assistência
técnica de qualidade, com enfoque agroecológico, e não uma assistência
tradicional, orientada pelo pacote da Revolução Verde. Comprar sementes
industrializadas, adubo, agrotóxico, não é um caminho viável para a agricultura
familiar”, diz a integrante da secretaria-executiva da ANA.
Maria
Emilia Pacheco acredita que esse é um ponto em que ainda se avançou pouco,
mesmo nas políticas voltadas especificamente para fomentar a agroecologia, como
a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), que completa
10 anos em 2022. “No movimento
agroecológico não falamos em extensão rural, porque para nós é um princípio a
troca de saberes. Não temos aquela visão difusionista que está na origem da extensão
rural. Há que dialogar sobre saberes, isso está na base da construção também da
agroecologia como ciência, um diálogo entre o saber técnico, construído através
da história da ciência, mas com esse saber tradicional que tem um sentido
fundamental e que se traduz em iniciativas tecnológicas concretas”, aponta a
integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, para em
seguida exemplificar: “os sistemas agroflorestais que combinam as plantações,
tipos de plantas diferentes, de diferentes andares, isso é originalmente uma prática
dos povos indígenas. Os saberes desses povos em lidar com os diferentes biomas
e ecossistemas é fundamental, o Brasil é muito diverso”.
Nesse sentido, o movimento agroecológico também reivindica medidas para incorporar a agroecologia ao ensino e à pesquisa científica no país. É o que diz Islândia Bezerra, presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), braço acadêmico do movimento. “O Congresso Brasileiro de Alimentação e Nutrição, que é o principal da América Latina, nos debates, nas mesas, painéis, grandes conferências, não teve nada específico da agroecologia para a promoção da saúde na perspectiva do alimento saudável, seguro. A gente precisa politizar ainda mais nas diferentes áreas do conhecimento, não só nas ciências agrárias, da saúde. Precisamos politizar o debate da agroecologia, trazer sua concretude para o nosso dia a dia, para a sala de aula, para a pesquisa, extensão, que é o que o agronegócio faz muito bem”, diz Bezerra.
E completa: “A agroecologia precisa ser política, se não for ela é jardinagem. Porque não é apenas produzir alimentos saudáveis, sem veneno, é algo a mais. É questionar uma estrutura latifundiária, uma cultura escravista, onde temos pessoas trabalhando de sol a sol para ganhar R$ 40 de diária, quando não é escravizado nas fazendas. A agroecologia precisa questionar isso. Nesse contexto político ela é fundamental para pautar a transformação das estruturas no nosso país”, defende. (ecodebate)
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