Além da extinção de espécies e
do desequilíbrio de ecossistemas, os pesquisadores alertam que o aquecimento
tornará mais frequentes episódios como temporais, inundações, secas e ondas de
frio e calor.
A ação humana acumulada desde a
Revolução Industrial, nos séculos 18 e 19, já produziu mudanças significativas
no clima global, e adaptar moradias e cidades a essa realidade é uma
necessidade que precisa de respostas urgentes, avaliam ambientalistas e
pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil.
Eventos extremos, como as chuvas que deixaram mais de 50 vítimas no litoral norte de São Paulo durante o carnaval, tendem a ser mais frequentes, e o poder público precisa agir para reduzir a vulnerabilidade das populações a esses cenários, destacam.anos, recorrentes alertas dos pesquisadores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) indicaram que a influência humana levou o planeta à trajetória de aquecimento mais rápida em 2 mil anos e já produziu uma temperatura média que supera o período pré-industrial em mais de 1°C.
Especialistas estimam que a
temperatura global pode subir 1,8°C até 2100, mesmo se forem cumpridas todas as
metas estabelecidas em 2015 pelo Acordo de Paris, firmado para reduzir as
emissões de gases de efeito estufa. Sem o cumprimento de tais metas, cenários
devastadores para a biodiversidade podem se concretizar com o aquecimento de
até 3°C.
Mas, além da extinção de
espécies e do desequilíbrio de ecossistemas, os pesquisadores alertam que o
aquecimento tornará mais frequentes episódios como temporais, inundações, secas
e ondas de frio e calor. No Brasil, tais problemas atingirão em cheio cidades
desiguais e com problemas de infraestrutura, sistema de geração de eletricidade
dependente do regime de chuvas e economia que tem a agropecuária como setor de
peso.
Eventos extremos
São Sebastião (SP), 22/02/2023, Casas destruídas em deslizamentos na Barra do Sahy após tempestades no litoral norte de São Paulo.
Estudiosa do tema e presidente
do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell é categórica ao alertar que “não
existem catástrofes naturais nas cidades brasileiras”. A avaliação da
pesquisadora pode causar estranhamento diante de recorrentes eventos com
dezenas e até centenas de vítimas, mas ela esclarece que nada disso é natural.
“É absolutamente catastrófico
quando se sabe dos riscos climáticos e não se prepara para reagir, ou se
prepara mal. Não há nenhuma naturalidade em desastres quando estamos falando de
um ambiente urbano”, diz. “As mudanças climáticas têm, sim, um papel ao
exacerbar esses riscos e exigem uma preparação maior. Ainda assim, pode haver
danos residuais. Mas o que determina se vai ter tragédia, ou não, é como nós,
humanos, nos preparamos para isso.”
A tempestade que atingiu as
cidades paulistas na última semana foi a mais intensa já registrada por
serviços meteorológicos no Brasil, com acumulado de 682 milímetros (mm) em 24
horas, segundo o Centro Nacional de Previsão de Monitoramento de Desastres
(Cemaden). Isso equivale a dizer que, em cada metro quadrado da área mais
atingida pelo temporal, caíram, em média, 682 litros de água da chuva — mais
que a metade do volume de uma caixa d’água de mil litros em cada metro quadrado
da cidade de Bertioga, onde a marca foi registrada. Em São Sebastião, município
vizinho, o índice pluviométrico chegou a 626 mm em 24 horas.
O recorde anterior de temporal mais intenso tinha sido registrado há apenas um ano, quando a cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, foi inundada por 531 milímetros de chuva em 24 horas. A enxurrada deixou mais de 200 vítimas e devastou localidades como o Morro da Oficina, onde 90 pessoas morreram.
Casa alagada após temporais.
Eventos extremos serão mais
frequentes e região Sul terá mais temporais, avaliam pesquisadores.
Ação humana leva à mais rápida
trajetória de aquecimento em 2 mil anos; temperatura global pode subir 1,8°C
até 2100.
Natalie Unterstell lembra que
os temporais já são o principal motivo de decretos de calamidade ou estado de
emergência em municípios brasileiros e tendem a se tornar mais frequentes
principalmente no Sudeste e no Sul do país. “Todos os cenários de mudança do
clima apontam o aumento das chuvas, principalmente nos verões, para além do que
se tinha faturado para construir nossas cidades e nossas casas. Essas
tempestades vão ter papel preponderante nessas regiões nas próximas décadas”,
afirma.
A pesquisadora destaca que não
existe mais a possibilidade de um cenário climático que não vá exigir adaptação
nos próximos anos. O que está em jogo é quão drástica precisará ser a
adaptação. “Será a 1,5°C, a 2°C, ou a 3°C? Quanto mais emissões, mais riscos e
mais necessidades de adaptação”.
“Temos ameaças muito diferentes
projetadas para cada região do país. O que os modelos de mudança do clima nos
informam é que, em geral, as regiões Norte e Nordeste vão ter um ressecamento
maior, com menos chuvas e dias mais secos. São regiões em que as vazões de rios
ficam comprometidas por isso. No Sul e Sudeste, é o contrário. Os modelos
projetam para as próximas décadas aumento no volume das chuvas”, explica. “O
Centro-Oeste se destaca como a região que deve ter o maior aumento de
temperatura. A depender do grau de aquecimento global, chegando a 3°C na média
da temperatura global, a região não vai elevar só 3°C, mas muito mais do que
isso, e é uma região já muito quente”.
O secretário executivo do
Observatório do Clima, Marcio Astrini, ressalta que houve uma sucessão de
eventos extremos nos últimos anos, incluindo temporais no Recife, na Bahia e no
norte de Minas Gerais. Segundo Astrini, a comprovação de que um evento
específico está relacionado às mudanças climáticas é uma conclusão que nem
sempre fica clara, mas o acúmulo de eventos como esses já é considerado
consequência das alterações no clima por especialistas.
“Estamos vendo isso de forma
contínua no Brasil e ao redor do mundo também. No ano passado, o Paquistão
ficou com um terço do país totalmente submerso por enchentes recordes. No mesmo
período, entre a Etiópia e o Quênia, houve seca recorde. Então, já estamos
vendo um comportamento de clima extremo que, no Brasil, está trazendo alguns
momentos de seca, mas muita chuva”, diz. “Os temporais causam essa tragédia
imediata, com deslizamentos que têm um custo em vidas que é muito mais
mensurável, mas a questão da seca no Brasil tem impacto também preocupante. O
Brasil é um país muito dependente das chuvas, principalmente por conta da
geração de energia elétrica. Podemos ter crises hídricas, energéticas e na agricultura”.
Racismo ambiental
São Sebastião (SP), 22/02/2023, Casas destruídas em deslizamentos na Barra do Sahy após tempestades no litoral norte de São Paulo.
A previsão dos pesquisadores é
que esse problema de escala global terá como principais vítimas aqueles que já
acumulam outras vulnerabilidades sociais, como menor acesso à saúde, a moradias
seguras, a empregos formais e a infraestrutura urbana. Por outro lado, são elas
as pessoas que menos contribuíram para o aquecimento global, afirmam
especialistas.
“As populações mais expostas
são as mais pobres. É a população preta, é a população periférica, é a
população que sofre mais com desigualdade social e com racismo. E são as
mulheres, principalmente. As mudanças climáticas são uma fábrica de gerar
pobreza e desigualdade social”, destaca Astrini.
“E o mais cruel de tudo isso é
que essas pessoas são as que menos contribuem para o problema. Quem mais
contribui com o problema é quem pode sair de helicóptero da Barra do Sahy [SP].
Quem polui o planeta são as pessoas mais ricas, e essas pessoas vão se adaptar
mais facilmente. Elas perdem a casa, recebem o seguro e compram uma casa de
praia em outro local. E as pessoas que consomem menos e têm uma pegada menor de
carbono ficam com a maior parte da conta”.
Natalie Unterstell acrescenta
que crianças e idosos também estão entre os grupos vulneráveis e concorda que
as classes sociais de menor renda serão mais afetadas por terem menos recursos
para se proteger e reagir a eventos climáticos extremos. Nesse contexto, a
desigualdade racial também é um fator a ser considerado, diz a pesquisadora.
“É importante lembrar de algo
que é chamado na literatura de racismo ambiental, que é muito presente na nossa
realidade. As pessoas pobres, em geral, são pretas, pardas e indígenas nos
centros urbanos, e essas populações são atingidas em cheio por estarem
habitando áreas de risco. E isso se torna ainda mais complicado para crianças e
idosos, porque eles têm mais dificuldade para fugir, nadar”, lembra a
pesquisadora.
“Ao pensar na gestão desse
risco, é preciso pensar nesses grupos sociais”.
Adaptação Climática
Morro da Oficina, em Petrópolis local mais atingido pela enchente há um mês.
O professor do Instituto
Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia – da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marcos Freitas lembra que, em
1994, a defesa de sua tese de doutorado, na França, foi marcada por uma
discussão acalorada de mais de três horas com um pesquisador que não acreditava
nas mudanças climáticas.
“Deu um trabalho danado, mas,
por fim, eu fui aprovado. Passados 30 anos da minha tese de doutorado, eu não
tenho a menor dúvida de que o que está acontecendo agora é efeito desse 1,1°C a
mais que a gente já está em relação à média de 1850 a 1900. Para cada 1°C a
mais, a gente tem 7% a mais de evaporação no ciclo hidrológico, e isso causa
chuvas mais intensas e eventos extremos”, diz o geógrafo, que coordena o
Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais da Coppe/UFRJ.
Professor de duas disciplinas
que discutem mudanças climáticas e vulnerabilidade climática na pós-graduação
da UFRJ, Freitas diz que a engenharia precisa se debruçar com mais afinco sobre
o tema para elaborar soluções inventivas e que o poder público aja sem demora para
reduzir os riscos e proteger a população de um cenário que tende a se agravar.
“É importante que as políticas
públicas que têm que atender a várias coisas, como problemas graves de
distribuição de renda, de geração de emprego, de oferta de residências e saúde,
comecem a ter um viés de adaptação à mudança do clima”, defende.
Entre as prioridades, Freitas sublinha o número de cerca de 10 milhões de pessoas que vivem em áreas de risco, segundo estimativa do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) com base em dados do Censo 2010. Freitas calcula que o investimento para garantir moradias seguras para essa população pode estar na casa de dezenas de bilhões de reais.
“Se considerarmos cinco pessoas por residência, são 2 milhões de residências. Se o custo de cada residência for de R$ 200 mil, estamos falando de R$ 50 bilhões. Pode parecer muito, mas, se dividirmos em 5 anos, são R$ 10 bilhões por ano. E, se for em 10 anos, são R$ 5 bilhões por ano. Isso é muito pouco perto do resultado que daria de geração de emprego e renda no Brasil e de melhoria da qualidade de vida das cidades e das pessoas”, afirma. “Esse programa poderia ser vinculado a uma agência multilateral importante, como o Banco Mundial, para não ter problemas de governança e poder passar de um governo para o outro independentemente de eleições”.
Para o geógrafo, que é
especialista em economia do meio ambiente, o governo federal precisará
disponibilizar recursos e ter um papel de liderança e interação internacional
para facilitar o processo. Cada um à sua maneira, os entes da federação vão
precisar contribuir para a adaptação climática.
“Os estados têm muita
responsabilidade e podem ajudar. Estados como Rio de Janeiro, São Paulo e
Espírito Santo têm muitos recursos de royalties de petróleo e precisam se
preocupar com a transição energética para fontes renováveis. Nada mais justo
que esses lugares com acesso a tais recursos usem parte deles na adaptação às
vulnerabilidades”, diz o professor.
“São os municípios que definem
as políticas de ocupação e uso do solo, principalmente urbano. É importante
também que tenham mapas bem feitos de áreas de risco e sistemas de alerta
organizados”.
Márcio Astrini defende a realização de um estudo aprofundado em cada área de risco para avaliar onde soluções de engenharia podem evitar novos desastres e de onde a população precisará ser removida para locais seguros, com emprego e vínculos sociais garantidos.
“Dentro dessas soluções de engenharia, há medidas imediatas, como o treinamento dos municípios, a capacitação das defesas civis, a contratação de equipamento, a implantação de sirenes. Tem muita coisa que pode ser feita até chegar a obras mais pesadas ou remoções.” Astrini diz que, no plano federal, o governo precisará criar linhas orçamentárias para essa adaptação. “Os desastres em massa são uma nova realidade, em que os governos precisam inventar novas formas de lidar, principalmente novas formas orçamentárias”. (ecodebate)
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