Ásia corre o risco de
ver deflagrada uma guerra da água; Planos da China de usar rios que nascem no
Tibete alarmam os países vizinhos.
Atravessando o
planalto do Tibete, cinco grandes rios – Indus, Brahmaputra, Irrawaddy, Salween
e Mekong – carregam a água das geleiras dos Himalaias e das monções que
abastece 1,3 bilhão de pessoas em vários países do Sudeste da Ásia. Agora, no
entanto, este fornecimento está ameaçado pelos planos da China e de outros
países da região de construir usinas, barragens e desvios em seu curso, o que
pode gerar o primeiro grande conflito mundial em torno deste recurso cada vez
mais escasso.
A luta pelo controle
desta verdadeira “caixa d’água” continental teve seu primeiro contragolpe
desferido pela Índia, onde a Suprema Corte do país ordenou em abril/12 o início
dos trabalhos para a construção de canais que vão interligar os principais rios
indianos. No centro do projeto está uma estrutura de 400 quilômetros de
extensão que vai desviar a água do Brahmaputra para o Ganges, visando a irrigar
terras cultiváveis sedentas a cerca de mil quilômetros ao Sul.
A decisão indiana é
uma reação aos planos chineses de construir barragens e desviar o Brahmaputra,
um dos últimos grandes rios do mundo ainda sem modificações no seu trajeto pelo
homem, mais acima no seu curso, no Tibete. No Cânion de Tsangpo, o governo da
China pretende levantar duas gigantescas hidrelétricas, cada uma gerando mais
do dobro da energia da usina de Três Gargantas, no Yangtsé, atualmente a maior
do mundo. Além disso, ainda mais alto no curso do Brahmaputra, os chineses
querem criar um desvio que levaria até 40% de seu fluxo para as planícies do
Norte do país.
O choque entre os
projetos de China e Índia – duas potências nucleares -, no entanto, deve fazer
uma vítima ainda mais vulnerável: Bangladesh. O país depende do Brahmaputra
para conseguir dois terços de toda água que consome, grande parte usada para a
irrigação dos campos de arroz durante a longa estação seca da região. Com o
fluxo do rio desviado e reduzido, cerca de 20 milhões de agricultores de
Bangladesh podem ver suas plantações, e eles próprios, morrerem de sede.
“No caso do
Ganges-Brahmaputra, já existem barragens como a de Farakka, construída pela
Índia, que trouxe impactos reduzindo áreas úmidas [pântanos] em Bangladesh”,
lembra Benedito Braga, professor de Engenharia Civil e Ambiental da USP e
vice-presidente do Conselho Mundial de Água. “Mas não acredito que veremos um
choque armado entre países por causa disso. Iniciativas como a comissão
multilateral para gestão da bacia do Rio Mekong e a South Asian Association of
Regional Cooperation (Saarc), fundada em 1985 com representantes do Butão,
Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka, mas infelizmente sem a
presença da China, mostram que há maior potencial para colaboração do que para
conflito no caso da gestão das águas.”
Controle chinês – Até
recentemente, a China havia focado a construção de suas usinas em rios que
correm dentro do país. Mas, diante da explosão na demanda por eletricidade
devido ao forte crescimento econômico, os chineses começaram a se voltar para
os rios transnacionais. Nos últimos anos, o país já construiu uma série de
barragens em afluentes do Brahmaputra e a primeira no curso principal do rio, a
Usina de Zangmu, orçada em US$ 1 bilhão, deverá estar pronta em 2014. Depois,
será a vez das obras no Cânion de Tsangpo, onde seriam instaladas as usinas
gigantes de Motuo (38 gigawatts) e Daduqia (42 gigawatts). Para ser ter uma
ideia do tamanho destas barragens, a usina das Três Gargantas, atualmente a
maior do mundo, tem capacidade instalada de 22,5 gigawatts, enquanto Itaipu
pode gerar até 14 gigawatts.
Mas a China não está
de olho só na água dos rios tibetanos que fluem para Índia e Bangladesh. Suas
ambições também preocupam outros países vizinhos. Outro atrito recente envolve
a barragem de Myitsone, que os chineses estão construindo no Rio Irrawaddy, no
Norte de Mianmar. Há três anos, a junta militar que governava o país aprovou a
construção, embora 90% da energia que vai ser gerada na usina de 6 gigawatts
será exportada para a China. No fim do ano passado, porém, o governo militar de
Mianmar suspendeu as obras depois que dezenas de pessoas morreram em choques
entre a polícia e moradores locais, cujas vilas serão inundadas pelo
reservatório.
A confusa situação
política em Mianmar deixa em dúvidas o destino das usinas de Myitsone e 12
outras planejadas pelos chineses na região – seis no Rio Irrawaddy e seis no Rio
Salween. Muitas das barragens estão em áreas remotas designadas Patrimônio
Mundial pela Organização das Nações Unidas por seus ecossistemas únicos de
florestas e água doce. Depois que a construção da usina Myitsone foi
paralisada, veio a público um relatório ambiental de 900 páginas encomendado
pela própria China desaconselhando as obras da barragem pelo perigo de
inundação dos ecossistemas listados pela ONU.
Já o impacto do
projeto indiano de desviar o Brahmaputra para alimentar o Ganges foi avaliado
por Edward Barbier, da Universidade do Wyoming, nos EUA, e Anik Bhaduri, do
Instituto Internacional de Gerenciamento de Água em Nova Déli. Eles alertam que
uma redução de 10% a 20% no fluxo do rio poderia deixar secas grandes áreas em
Bangladesh. Além disso, com um fluxo menor de água doce, a água salgada da Baía
de Bengala invadiria boa parte do delta do rio, causando uma verdadeira
catástrofe ambiental.
A melhor prova de que
as usinas podem provocar danos ecológicos graves está ali perto, no Rio Mekong,
onde a construção de barragens pela China está mais adiantada. Até agora, o
país já levantou quatro das oito hidrelétricas que pretende instalar no rio.
Estas barragens capturam o fluxo de água das monções e o liberam durante a
estação seca. O governo chinês argumenta que, ao regular o fluxo do rio, elas
são benéficas, mas há três anos o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (Pnuma) alertou que o fim do pulso natural de inundação e seca é uma
“ameaça considerável” aos ecossistemas na parte baixa do rio. No estudo para o
Pnuma, Ky Quang Vinh, do Centro Vietnamita de Observação dos recursos Naturais
e Meio Ambiente, mostrou que um pulso mais fraco faria a água salgada do Mar do
Sul da China invadir mais de 70 quilômetros adentro do delta do Mekong, destruindo
grandes extensões de plantações de arroz na principal região de produção do
segundo maior exportador mundial do cereal.
A luta pela água dos
Himalaias está acirrada, mas muitos especialistas argumentam que o
aproveitamento do potencial hidrelétrico da região é fundamental se o mundo
quiser que países como a China e a Índia alimentem suas crescentes economias
com fontes de energia de baixa emissão de carbono. Numa região onde o
abastecimento de água já está no limite, no entanto, a disputa pelo recurso
pode acirrar os ânimos. A China foi um dos países que votou contra proposta de
tratado da ONU para regulamentar o aproveitamento de rios transnacionais,
deixando seus vizinhos praticamente como reféns de seus projetos.
“Na verdade, esta
resolução sobre usos não navegáveis de rios transfronteiriços está para ser
ratificada desde 1997”, lembra Benedito Braga. “Há 15 anos, portanto, o sistema
das Nações Unidas não consegue colocar em prática esta proposta de regular o
aproveitamento pelos países dos rios que correm além das suas fronteiras
políticas”.
Braga destaca ainda
que o próprio Brasil, Turquia, EUA, Israel e Áustria, entre outros países, são
contra os termos da proposta da ONU por entenderem que ela interfere com o
princípio da soberania dos Estados.
“A perspectiva para
solução desta questão seria o conceito moderno de compartilhar os benefícios
advindos da gestão racional e integrada dos recursos hídricos das bacias
transfronteiriças e não simplesmente compartilhar a água”, defende. “Um exemplo
típico disso é o aproveitamento hidrelétrico de Itaipu, onde Brasil e Paraguai
dividem a energia gerada na bacia do Rio Paraná”. (EcoDebate)
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