Por mais de 2 mil anos, a gestão em larga escala de recursos hídricos
foi fundamental para desenvolver e sustentar a civilização chinesa.
Na beira da antiga
cidade de Xi’an, capital de três dinastias imperiais, uma imponente estátua do
Imperador Qin Shi Huang (259-210 a.C.) emerge da névoa de poeira e fuligem que
envolve muitas cidades chinesas. O torso de granito maciço do Primeiro
Imperador Augusto de Ch’in, governante de "tudo abaixo do céu",
parece vivo em ação: sua mão esquerda repousando sobre uma grande espada, e sua
mão direita aponta para um horizonte lotado por falanges de prédios altos, de
apartamentos e escritórios, muitos deles inacabados e outros, vazios e sem
vender na ressaca da mania imobiliária da China.
Nenhuma outra sociedade reformou sua paisagem hidráulica com tanta
energia sustentada como a China
Conjuntos de
edifícios novos surgem por toda a China, muitos com guindastes de construção
ainda empoleirados em seus telhados. Em Xi’an, como em outras cidades chinesas,
uma grande questão fica sem resposta: como haveria água para todas as pessoas
que viveriam nesses milhões de apartamentos hoje vazios? Como observou o poeta
W. H. Auden décadas atrás: "Milhares viveram sem amor, ninguém sem
água".
O imperador Qin fez
muitas coisas. O reino de Ch’in, embalado por montanhas sobre um fértil
planalto de loess (um solo fino) cercado pela grande curva do Rio Amarelo, era
um dos cerca de 170 pequenos Estados em conflito constante com outros, até que
uma série de conquistas de Qin unificou a China. O pequeno estado-fronteira de
Ch’in, defendendo-se contra incursões violentas de cavaleiros nômades da Mongólia,
adotou táticas do inimigo treinando arqueiros montados em exércitos móveis que
venceram reinos rivais.
A unificação
política deu origem à escala e padronização de leis, escrita, pesos e medidas,
cunhagem, prática burocrática e obras públicas construídas por meio de enormes
contingentes de pessoas sob trabalho forçado, que evidenciavam o gênio chinês
para a criação de infraestrutura que vemos hoje na multiplicação de
autoestradas, superportos, barragens hidrelétricas, avenidas, aeroportos, trens
de alta velocidade e terminais ferroviários monumentais.
Lembrado pela
dureza e crueldade, o imperador Qin foi reverenciado por alguns líderes
modernos chineses, notavelmente por Mao Tsé-tung, ávido leitor de crônicas
dinásticas que se comparava ao primeiro imperador. Qin enterrou vivo 460
estudiosos de Confúcio por possuir livros proibidos. Nas estradas imperiais de
Ch’in, mais extensas que o sistema construído pelos romanos três séculos mais
tarde, o imperador atravessou a China em cinco grandes viagens de inspeção,
morrendo na última delas, perto do mar, onde, dizem as crônicas, foi procurar o
elixir da imortalidade.
A relíquia mais
conhecida do reinado de Qin é o agora famoso exército de 7 mil guerreiros de
terracota, sepultados com seus cavalos e carroças de barro por mais de 2 mil
anos para proteger o túmulo do Imperador até sua descoberta em 1974, perto de
Xi’an, por camponeses que cavavam à procura de água.
Poder da água
Dizem que Qin
comemorou "o início do poder da água" quando foi coroado, em 221 a.C.
Sua capital, Xi’an, era estrategicamente localizada na confluência dos grandes
rios do norte da China, ligados pelo Canal Chang-an ao Rio Amarelo. Qin deixou
como herança redes complexas de barragens e canais de irrigação e transporte em
uso há mais de 2 mil anos, ligando as bacias hidrográficas dos Rios Yangtze e
Amarelo e irrigando uma vasta área.
O poder de Ch’in
foi sustentado pelo que ficou conhecido como o Canal do Transporte Mágico,
sobre o qual balsas eram rebocadas através de 36 bloqueios nas montanhas da
China central, conectando uma rede de lagos e rios para transporte de cereais
(a principal forma de tributação), assim como tropas e suprimentos de guerra.
O grande sistema de
canal Kuanhsien corta a rocha da montanha para formar um rio artificial,
irrigando de milhares de quilômetros de canais e de controle de inundação de
diques e vertedouros para centenas de milhares de hectares. De acordo com uma
crônica, "rodas de água para descascar e triturar arroz e para a fiação e
tecelagem, às dezenas de milhares, foram estabelecidas ao longo dos canais e
operadas durante as quatro estações".
Por mais de 2 mil
anos, a gestão em larga escala de recursos hídricos foi fundamental para
desenvolver e sustentar a civilização chinesa. Desde os tempos antigos, a sazonalidade
das chuvas, concentrada em poucos meses, trazia inundações súbitas, enquanto em
outras estações os rios secavam após as águas jorrarem inutilmente para o mar,
a menos que tivessem sido armazenadas em reservatórios.
O estudo clássico
de Karl Wittfogel, Despotismo Oriental (1957), descreveu a matriz cultural em
que a autoridade política do Partido Comunista da China evoluiu. Para
Wittfogel, uma "civilização hidráulica" se desenvolveu com base na
necessidade de um comando central forte para gerir a irrigação, controle de
enchentes e transporte em rios e canais, produzindo grandes aumentos de riqueza
agrícola.
O historiador Mark
Elvin observou que a gestão chinesa pré-moderna da água foi "tanto
bem-sucedida quanto sustentada", acrescentando que o preço foi alto:
"Compromisso com um sistema que exigia manutenção constante e cara...
Sistemas de controle de água feitos pelo homem são, em maior ou menor grau,
inerentemente instáveis". São afetados por chuvas, inundações, secas,
desmatamento, erosão, assoreamento, salinização, drenagem de pântanos e
incursões pelo mar. "Nenhuma outra sociedade reformou sua paisagem
hidráulica com tanta energia sustentada nem em tamanha escala como fez a
chinesa, mas a dialética de longo prazo de interação com o ambiente transformou
o que tinha antes sido uma força numa fonte de fraqueza."
Pressões
A China enfrenta os
mesmos problemas hoje, sob maiores pressões da população e escassez. Naqueles
primeiros dias, menos de 40 milhões de pessoas ocupavam o território da China
contra os 1,34 bilhões atuais, metade vivendo nas cidades. A China deverá
acrescentar mais 350 milhões de habitantes urbanos até 2025, segundo a
McKinsey. É um aumento igual à população atual dos Estados Unidos ou o dobro da
população do Brasil em 2000. Em 2025, a China terá 1 bilhão de pessoas vivendo
em vilas e cidades, incluindo 221 cidades com pelo menos 1 milhão de pessoas
cada uma.
É um salto enorme
em um país onde 80% de seu povo, a maioria muito pobre, ainda viviam no campo
quando começou a abertura de sua economia para o mundo exterior, por volta de
1980. Esse fluxo de pessoas está criando um frágil equilíbrio entre
necessidades e recursos. (OESP)
Nenhum comentário:
Postar um comentário