sábado, 11 de agosto de 2012

O poder da água

Por mais de 2 mil anos, a gestão em larga escala de recursos hídricos foi fundamental para desenvolver e sustentar a civilização chinesa.
Na beira da antiga cidade de Xi’an, capital de três dinastias imperiais, uma imponente estátua do Imperador Qin Shi Huang (259-210 a.C.) emerge da névoa de poeira e fuligem que envolve muitas cidades chinesas. O torso de granito maciço do Primeiro Imperador Augusto de Ch’in, governante de "tudo abaixo do céu", parece vivo em ação: sua mão esquerda repousando sobre uma grande espada, e sua mão direita aponta para um horizonte lotado por falanges de prédios altos, de apartamentos e escritórios, muitos deles inacabados e outros, vazios e sem vender na ressaca da mania imobiliária da China.
Nenhuma outra sociedade reformou sua paisagem hidráulica com tanta energia sustentada como a China
Conjuntos de edifícios novos surgem por toda a China, muitos com guindastes de construção ainda empoleirados em seus telhados. Em Xi’an, como em outras cidades chinesas, uma grande questão fica sem resposta: como haveria água para todas as pessoas que viveriam nesses milhões de apartamentos hoje vazios? Como observou o poeta W. H. Auden décadas atrás: "Milhares viveram sem amor, ninguém sem água".
O imperador Qin fez muitas coisas. O reino de Ch’in, embalado por montanhas sobre um fértil planalto de loess (um solo fino) cercado pela grande curva do Rio Amarelo, era um dos cerca de 170 pequenos Estados em conflito constante com outros, até que uma série de conquistas de Qin unificou a China. O pequeno estado-fronteira de Ch’in, defendendo-se contra incursões violentas de cavaleiros nômades da Mongólia, adotou táticas do inimigo treinando arqueiros montados em exércitos móveis que venceram reinos rivais.
A unificação política deu origem à escala e padronização de leis, escrita, pesos e medidas, cunhagem, prática burocrática e obras públicas construídas por meio de enormes contingentes de pessoas sob trabalho forçado, que evidenciavam o gênio chinês para a criação de infraestrutura que vemos hoje na multiplicação de autoestradas, superportos, barragens hidrelétricas, avenidas, aeroportos, trens de alta velocidade e terminais ferroviários monumentais.
Lembrado pela dureza e crueldade, o imperador Qin foi reverenciado por alguns líderes modernos chineses, notavelmente por Mao Tsé-tung, ávido leitor de crônicas dinásticas que se comparava ao primeiro imperador. Qin enterrou vivo 460 estudiosos de Confúcio por possuir livros proibidos. Nas estradas imperiais de Ch’in, mais extensas que o sistema construído pelos romanos três séculos mais tarde, o imperador atravessou a China em cinco grandes viagens de inspeção, morrendo na última delas, perto do mar, onde, dizem as crônicas, foi procurar o elixir da imortalidade.
A relíquia mais conhecida do reinado de Qin é o agora famoso exército de 7 mil guerreiros de terracota, sepultados com seus cavalos e carroças de barro por mais de 2 mil anos para proteger o túmulo do Imperador até sua descoberta em 1974, perto de Xi’an, por camponeses que cavavam à procura de água.
Poder da água
Dizem que Qin comemorou "o início do poder da água" quando foi coroado, em 221 a.C. Sua capital, Xi’an, era estrategicamente localizada na confluência dos grandes rios do norte da China, ligados pelo Canal Chang-an ao Rio Amarelo. Qin deixou como herança redes complexas de barragens e canais de irrigação e transporte em uso há mais de 2 mil anos, ligando as bacias hidrográficas dos Rios Yangtze e Amarelo e irrigando uma vasta área.
O poder de Ch’in foi sustentado pelo que ficou conhecido como o Canal do Transporte Mágico, sobre o qual balsas eram rebocadas através de 36 bloqueios nas montanhas da China central, conectando uma rede de lagos e rios para transporte de cereais (a principal forma de tributação), assim como tropas e suprimentos de guerra.
O grande sistema de canal Kuanhsien corta a rocha da montanha para formar um rio artificial, irrigando de milhares de quilômetros de canais e de controle de inundação de diques e vertedouros para centenas de milhares de hectares. De acordo com uma crônica, "rodas de água para descascar e triturar arroz e para a fiação e tecelagem, às dezenas de milhares, foram estabelecidas ao longo dos canais e operadas durante as quatro estações".
Por mais de 2 mil anos, a gestão em larga escala de recursos hídricos foi fundamental para desenvolver e sustentar a civilização chinesa. Desde os tempos antigos, a sazonalidade das chuvas, concentrada em poucos meses, trazia inundações súbitas, enquanto em outras estações os rios secavam após as águas jorrarem inutilmente para o mar, a menos que tivessem sido armazenadas em reservatórios.
O estudo clássico de Karl Wittfogel, Despotismo Oriental (1957), descreveu a matriz cultural em que a autoridade política do Partido Comunista da China evoluiu. Para Wittfogel, uma "civilização hidráulica" se desenvolveu com base na necessidade de um comando central forte para gerir a irrigação, controle de enchentes e transporte em rios e canais, produzindo grandes aumentos de riqueza agrícola.
O historiador Mark Elvin observou que a gestão chinesa pré-moderna da água foi "tanto bem-sucedida quanto sustentada", acrescentando que o preço foi alto: "Compromisso com um sistema que exigia manutenção constante e cara... Sistemas de controle de água feitos pelo homem são, em maior ou menor grau, inerentemente instáveis". São afetados por chuvas, inundações, secas, desmatamento, erosão, assoreamento, salinização, drenagem de pântanos e incursões pelo mar. "Nenhuma outra sociedade reformou sua paisagem hidráulica com tanta energia sustentada nem em tamanha escala como fez a chinesa, mas a dialética de longo prazo de interação com o ambiente transformou o que tinha antes sido uma força numa fonte de fraqueza."
Pressões
A China enfrenta os mesmos problemas hoje, sob maiores pressões da população e escassez. Naqueles primeiros dias, menos de 40 milhões de pessoas ocupavam o território da China contra os 1,34 bilhões atuais, metade vivendo nas cidades. A China deverá acrescentar mais 350 milhões de habitantes urbanos até 2025, segundo a McKinsey. É um aumento igual à população atual dos Estados Unidos ou o dobro da população do Brasil em 2000. Em 2025, a China terá 1 bilhão de pessoas vivendo em vilas e cidades, incluindo 221 cidades com pelo menos 1 milhão de pessoas cada uma.
É um salto enorme em um país onde 80% de seu povo, a maioria muito pobre, ainda viviam no campo quando começou a abertura de sua economia para o mundo exterior, por volta de 1980. Esse fluxo de pessoas está criando um frágil equilíbrio entre necessidades e recursos. (OESP)

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