Além da escassez, há um ‘nó’ na governança hídrica que
poderá acirrar os conflitos no planeta
Embora desde os
séculos 17 e 18 existam experiências de utilização conjunta de bacias
hidrográficas por diferentes países e regiões, foi a partir dos anos 1930 que
algumas comunidades da França e da Espanha iniciaram pioneiramente a gestão de
seus recursos hídricos segundo o modelo de bacias hidrográficas. Em 1964, o
governo francês efetivamente dividiu as águas do país em seis grandes bacias.
Mesmo no Brasil, há
estudos integrados de bacias desde 1978. E foi em 1997, a partir da Política
Nacional de Recursos Hídricos, que o Brasil dividiu a gestão de suas águas em
bacias hidrográficas, inspirado, sobretudo, no modelo francês. A gestão das
águas baseada no recorte territorial de bacia hidrográfica ganhou força no
início dos anos 1990, quando os Princípios de Dublin foram acordados na
conferência preparatória à Rio-92. Outros países da Europa e de outros continentes
estão em diferentes fases de implantação desse sistema, assim como México,
Estados Unidos e muitos países da América do Sul, como Peru, Chile, Venezuela e
Argentina, só para citar alguns.
O modelo é o mais
moderno no que se refere à governança dos recursos hídricos. Propõe um
planejamento estratégico da bacia hidrográfica, de forma que a gestão das águas
seja democrática, descentralizada e autônoma. O modelo ainda aborda formas de
geração de recursos financeiros para a efetivação de sua gestão, como é o caso,
por exemplo, da cobrança pelo uso do recurso, como já vem sendo praticado em
diversas bacias brasileiras. Porém, o que se vê mundialmente e no Brasil
inclusive, é uma contradição entre a modernidade desse sistema em relação às
práticas políticas da governança dos recursos hídricos. O resultado desse
descompasso é o acirramento cada vez mais grave de conflitos pelo acesso à
água.
Foi o que mostrou a
maior parte das palestras apresentadas durante o 4º Encontro Internacional da
Governança da Água, promovido pelo Programa de Ciência Ambiental (Procam) da
USP em parceria com o Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP.
Cantareira,
em São Paulo
Protesto em
Cajamarca, no Peru: modelo de bacias hidrográficas é o meio mais eficiente de
manejo dos recursos hídricos.
Realizado de 24 a 26/09/13 com a temática “Inovação na Governança da Água e Variações
Climáticas no Contexto Ibero-Americano”, o encontro trouxe mais de 40 trabalhos
orais apresentados nas salas de seminários do IEE, além de mesas temáticas com
renomados especialistas brasileiros e estrangeiros tratando de aspectos
institucionais, teóricos e conceituais da governança da água. Contou com a
coordenação dos professores Pedro Jacobi, da Faculdade de Educação (FE) da USP,
Ana Paula Fracalanzza, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da
USP, e Vanessa Lucena Empinotti, pós-doutoranda pelo Procam.
Um dos mais recentes
grandes conflitos por água ganhou relevância internacional ao reunir centenas
de camponeses e povos indígenas do Peru, que protestaram em 2012 contra o
projeto Conga. Trata-se de um plano de exploração de minas de ouro por uma
multinacional na região de Cajamarca e que, se levado a cabo, fará desaparecer
27 lagoas da área.
“Nunca tivemos
conflitos por água no Peru, mas agora a situação está grave. Há uma
multiplicidade de atores sociais e uma baixa representatividade da população
nos conselhos de bacia, o que torna a governança democrática impraticável”,
disse ao Jornal da USP a professora Maria Teresa Ore, da Pontificia Universidad
Católica del Perú. Maria Teresa participou do segundo dia de debates com a
palestra “Las vicisitudes para implementar el consejo de cuencas”.
Apesar do avançado
aparato legal voltado à sustentabilidade em seu país, a argentina Monica Gabay,
da Secretaria de Ambiente y Desarrollo Sostenible da Argentina, mostrou que, em
muitos casos, as audiências públicas dos conselhos de bacias funcionam apenas
como um jogo de cena, servindo mais como mecanismos de controle e
“pacificação”. Apontou que o monitoramento da sociedade civil e a construção
partilhada de espaços de diálogo são alguns caminhos possíveis para desatar os
nós da governança da água.
Na região
metropolitana da capital mexicana, uma das maiores e mais populosas do mundo,
existem “zonas em crise permanente de abastecimento de água”, disse o professor
Arsenio González Reynoso, da Universidad Nacional Autónoma de México.
Além da escassez, a
região metropolitana da Cidade do México sofre pela péssima qualidade da água.
“Há cem parâmetros de potabilidade que deveriam ser atendidos segundo a
legislação, mas de fato apenas dois deles são respeitados”, afirmou Reynoso.
Segundo o
especialista, o maior problema é que muita gente sequer sabe ou acredita que de
fato existe escassez de água na capital mexicana. “Conscientizar as pessoas
para uma participação cidadã na gestão hídrica e mudar a cultura do desperdício
seriam a grande inovação na governança da água no México”, disse em sua
entrevista.
Para Jeroen Warner,
da Universidade de Wageningen, na Holanda, a apropriação de grandes extensões
de terra e, consequentemente, de muita água, por multinacionais, pode estar
configurando uma “nova forma de imperialismo do século 21”. No livro Handbook
of Land and Water Grabs in Africa, Warner e outros autores buscam desvendar o
que pode estar levando tantas empresas a “redescobrir a África como celeiro do
mundo”.
Para o especialista,
as empresas internacionais podem estar no caminho para controlar a geopolítica
da água real e da água virtual, ou seja, aquela contida em bebidas ou no
processo de produção dos produtos. “Tal situação pode acirrar mais os conflitos
e os riscos de escassez de água”, disse.
Europa – A professora
Luisa Schmidt, da Universidade de Lisboa, em Portugal, abriu o 4º Encontro
Internacional da Governança da Água com a conferência “Desafios de Governança
da Água na Comunidade Europeia”. Nela, Luisa abordou a Diretiva Quadro das
Águas (DQA), que, a partir de 2000, tornou-se o principal instrumento da
política de gestão das águas na União Europeia. Estabelece as diretrizes de
ação de toda a massa de água dos 28 Estados da UE. Encontra-se em diferentes
estágios de implantação, sendo que os primeiros a aderir foram França, Alemanha
e Espanha.
“A grande inovação da
Diretiva foi obrigar toda a comunidade a implementar o sistema de gestão dos
recursos hídricos por bacias hidrográficas. Outra inovação foi introduzir os
princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador, cujos recursos deverão
ser utilizados na requalificação da própria bacia. Além disso, há metas que
deverão ser confrontadas em 2015”, disse.
Segundo Luisa, quando
Portugal entrou na Comunidade Europeia, houve uma entrada de capital no país
que impulsionou o consumo, estimulou a produção de lixo e a poluição e redundou
na degradação dos corpos hídricos. Além disso, a corrupção e o mau uso do
dinheiro – como a inauguração de estações de tratamento de água e esgoto sem
que nunca chegassem a entrar em operação – contribuiu para a degradação das
bacias. “O que irá ocorrer é que Portugal e muitos outros países serão multados
porque não alcançarão as metas da DQA até 2015”, disse. (EcoDebate)
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