Decrescimento: Precisamos ultrapassar a economia e sair
“A palavra
decrescimento está sendo tomada literalmente. Não se trata de um conceito, mas
um slogan”. A advertência é do filósofo e economista Serge Latouche na mesa
redonda promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU por ocasião de sua vinda
à Unisinos, na semana passada.
Segundo ele, um dos
slogans mais nocivos e perversos do sistema capitalista é o desenvolvimento
sustentável. “Para nos opormos a ele, cunhamos o termo decrescimento
sustentável”, encarado quase como uma blasfêmia, provoca. A ideia é criar uma
sociedade de prosperidade sem crescimento, de abundância frugal. O pensador
francês pondera que nossa sociedade individualista está fundada sobre o
mercado.
Serge Latouche também
esteve em Cuiabá, Foz do Iguaçu e Curitiba. A vinda dele ao Brasil é uma
promoção conjunta do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com o
Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba, e Centro
Burnier de Fé e Justiça, de Cuiabá.
Serge Latouche, além
de economista, é sociólogo, antropólogo, professor emérito de Ciências
Econômicas na Universidade de Paris-Sul (1984). É presidente da Associação dos
Amigos da Entropia e presidente de honra da Associação Linha do Horizonte. É
doutor em Filosofia, pela Universidade de Lille III (1975), e em Ciências
Econômicas, pela Universidade de Paris (1966), diplomado em Estudos Superiores
em Ciências Políticas pela Universidade de Paris (1963). Latouche é um dos
históricos contribuidores da Revista du MAUSS (Movimiento AntiUtilitarista em
Ciências Sociais), além de ser professor emérito também da Faculdade de
Direito, Economia e Gestão Jean Monnet (Paris-Sul), no Instituto de Estudos do
Desenvolvimento Econômico e Social (IEDs) de Paris.
IHU On-Line – Em que
sentido o decrescimento é viável em sociedades em desenvolvimento como o Brasil
e a China, por exemplo? O conceito de decrescimento pode ser aplicado a países
emergentes?
Serge Latouche – O
fato de formular essa pergunta demonstra que o termo decrescimento não foi
compreendido. A palavra decrescimento está sendo tomada literalmente. Não se
trata de um conceito, mas um slogan. Esse slogan foi necessário porque estamos
numa sociedade da comunicação, onde tudo passa por slogans e manipulação
midiática. Um dos slogans mais nocivos e perversos do sistema é o
desenvolvimento sustentável. Para nos opormos a ele, cunhamos o termo
decrescimento sustentável. Esse slogan nasceu na França, numa sociedade muito
desenvolvida, com sentido provocador, porque vivemos na religião do
crescimento. Sua ideia é romper com a ideologia do crescimento. Assim, quando
utilizamos a palavra decrescimento soa como uma blasfêmia. Isso leva as pessoas
a se perguntarem como é possível dizer algo desse tipo.
Por trás do
decrescimento há um projeto de um outro paradigma, de uma verdadeira sociedade
alternativa à sociedade de crescimento. Trata-se de um projeto para romper com
uma sociedade e construir outra que não esteja voltada para a religião do
crescimento. Se quisermos ser rigorosos, teríamos que falar em acrescimento,
assim como falamos em ateísmo. Evidentemente, é preciso falar no projeto de uma
outra sociedade que deve crescer com a felicidade, qualidade do ar, da água, da
alimentação. Queremos construir uma sociedade que chamo, agora, da abundância
frugal, uma sociedade de prosperidade sem crescimento. Retomo, por isso, a
ideia de Ivan Illich de sobriedade feliz. O projeto é construir uma sociedade
ecossocialista, algo já formulado por André Gorz. Ele próprio aderiu à palavra
decrescimento.
Projetos iguais
Se as sociedades
hiperdesenvolvidas precisam sair da sociedade do desenvolvimento para
reencontrarem o limite, as sociedades não desenvolvidas, que não é o caso do
Brasil, têm interesse em não entrar nessa piada.
Isso não quer dizer
que não deva crescer uma certa produção para satisfazer as necessidades, mas
não devem entrar nessa ideia da produção infinita. O problema do Brasil está
exatamente na lógica do crescimento infinito e na fase onde essa fé tem efeitos
positivos, e não somente negativos. Na França já não há mais efeitos positivos,
mas no Brasil, ainda sim.
Em muitos países a
palavra decrescimento não é a mais apropriada. No contexto da África, por
exemplo, eu não falaria de decrescimento, mas quando nós encontramos
representantes da CONAE do Equador e Bolívia, em Bilbao, na Espanha, num
congresso chamado de Decrescimento e bem-viver, imediatamente eles nos falaram
que o projeto deve ser o mesmo do que o nosso.
IHU On-Line – É
possível haver decrescimento numa época de tamanho crescimento e consumo
tecnológico?
Serge Latouche – Esse
é o grande desafio. Estamos em uma situação de esquizofrenia total, como dizem
os psicólogos. Trata-se de uma dissonância cognitiva. Bastaria ver que ao mesmo
tempo os responsáveis do planeta vão a Copenhagen e Cancun dizendo que temos
que parar o crescimento. Reúnem-se em Toronto afirmando que a economia deve ser
relançada.
IHU On-Line – Como o
conceito do decrescimento é recebido pela Europa em crise econômica e sedenta
por recuperar-se e continuar consumindo?
Serge Latouche –
Mesmo sendo uma ideia importante e fortalecida pelo movimento do decrescimento,
frente ao todo essa é uma parte infinetesimal. Mesmo os ecologistas e verdes,
que normalmente deveriam aderir, estão muito divididos nesse ponto. Trata-se de
uma minoria dentro dos verdes que apoiam com esse projeto do decrescimento. Há
iniciativas locais na Itália, sobretudo, que tem obtido êxito e sucesso. Na
França isso também pode ser observado, mas somente em nível de algumas cidades
e projetos. Há um grande movimento na Europa contra a privatização da água. Não
se chama movimento do decrescimento, mas movimento contra o capitalismo e a
privatização.
IHU On-Line – Quais
os caminhos para “deseconomizar o imaginário” das pessoas no século XXI?
Serge Latouche – As
vias do Senhor são impenetráveis. Penso que o trabalho intelectual e de difusão
dessas ideias tem um papel. Mas o mais importante para a transformação do
imaginário são as vivências. O bom seria ver os exemplos pequenos que temos e
que são interessantes, e que quase sempre obedecem à pedagogia das catástrofes.
Percebemos que na Europa a vaca louca levou as pessoas a modificar seus hábitos
alimentares. Quando eu estava no Japão, ficou claro que o fenômeno do tsunami,
que ocasionou a ruptura dos reatores em Fukushima, provocou uma verdadeira
efervescência para que as pessoas se interrogassem sobre a energia nuclear. Foi
interessante porque a sociedade japonesa é tradicionalmente muito passiva. Como
as catástrofes acontecem cada vez mais, infelizmente, vemos estiagem, enchentes,
pandemias e doenças novas aparecerem. Tudo isso leva as pessoas a mudarem sua
maneira de pensar.
IHU On-Line – A
construção de uma sociedade do decrescimento aconteceria, então, através de
atitudes individuais e um movimento através de rede? Isso aconteceria
institucionalizado ou trata-se de um movimento aberto que depende da atitude
individual?
Serge Latouche – Há
de tudo. Sou um intelectual e não estou comprometido ou engajado em qualquer
partido político. Não tenho nem intenção em criar partido político. Há gente
que tentou me “empurrar” para isso, mas não aceitei. É verdade que nos próximos
anos pode haver um incremento desse tipo de movimento. Precisamos dizer que os
principais movimentos de decrescimento são compostos de jovens. Eles não gostam
de que alguém diga-lhes o que deve ser feito. Organizam-se espontaneamente,
como os indignados, por exemplo. A primeira ação que fazem é, quase sempre,
marchas grandes atravessando países, a fim de sensibilizar as pessoas. Realizam
acampamentos durante os encontros (meetings). Na França há dois partidos cujo
decrescimento é sua bandeira fundamental, mas sua representatividade é ínfima.
Não podemos impedir isso, e irmos contra a criação de tais iniciativas. Haverá,
sempre, alguém que se motive a fazer tais ações. Tentamos aprofundar a reflexão
sobre o decrescimento através da revista Entropia.
IHU On-Line –
Apostando que o decrescimento depende de uma construção de sujeitos diversos, e
que o neoliberalismo, o desenvolvimento infinito lembra uma antropologia
egoísta, qual seriam as antropologias que dariam base a uma sociedade do
decrescimento?
Serge Latouche – O
importante da lógica da sociedade do decrescimento é que, efetivamente, saímos
da antropologia do homo economicus e vamos cair naturalmente na antropologia com
a tradição de Marcel Mauss, na lógica do vínculo social fundado sobre a tripla
obrigação de dar, receber e devolver. Nesse ponto de vista, o movimento de
decrescimento se encontra em continuidade com o pensamento de Mauss, um
movimento antiutilitarista nas ciências sociais, que está bem representado no
Brasil no Recife por Paulo Henrique Martins.
IHU On-Line – O que é
uma sociedade convivial? A partir de Ivan Illich, qual é a relação entre
convivialidade e felicidade?
Serge Latouche –
Illich não intitulou seu livro sociedade convivial, mas convivialidade. Começou
definindo o que ele chamava de instrumento convivial, oposto à técnica
heteronômica que nos expropria de nossa capacidade de gerir nossa vida e que
não podemos administrar, como é o caso das usinas atômicas ou da junção de
autoestradas, que não são nunca coisas conviviais. Pelo contrário, uma
bicicleta é algo convivial porque podemos consertá-la, ela não precisa de
combustível, mas só do movimento gerado pelas pessoas. A bicicleta tem
autonomia. As técnicas conviviais são inventadas não pela vontade de poder, mas
por uma forma de amor para tornar mais fácil a vida dos outros, como a máquina
de costurar, por exemplo.
Ivan Illich escolheu
o termo de convivialidade porque Aristóteles disse que a sociedade descansa
sobre a philia, a amizade. Para os gregos esse é um sentimento muito forte e
nós não o conhecemos mais. Esse vínculo de amizade aludido por Aristóteles e
também Platão pressupunha que entre amigos tudo é em comum. Ocorre que hoje,
entre nossos amigos, as coisas não são mais comuns. Vivemos numa sociedade que,
a partir da modernidade, iniciou uma revolução individualista. Damos mais
importância à vida privada do que à vida comum. O outro não é tão importante.
Ao menos estamos bem conscientes de que o mercado não cria vínculos sociais.
Trata-se de uma sociedade individualista fundada sobre o mercado que é quase um
oxímoro, um paradoxo.
Ele tenta encontrar o
que poderia substituir a philia num contexto moderno. Então ele teve essa ideia
de convivialidade. Seria de alguma maneira uma philia de um grão inferior.
Poderíamos definir a convivialidade como simpatia no sentido forte do termo, ou
a empatia, ou para dizer de outro modo, podemos falar no termo de George
Arouel, sociedade decente. Uma sociedade decente é uma sociedade que não
humilha seus membros. Especialmente as pessoas do povo têm essa mentalidade,
que Arouel chama de decência comum. Espontaneamente há coisas que essas pessoas
não fazem. Basta lembrar do período de guerras, quando pessoas comuns tomaram
atitudes extraordinárias e que salvaram vidas. Isso é decência comum. Uma
sociedade onde isso não existe mais não é uma sociedade, e sim uma selva.
IHU On-Line –
Considerando o cenário de crise financeira e econômica, muitos estudiosos falam
na crise do capitalismo. O senhor concorda que o capitalismo está em crise e
corre o risco de acabar, dando lugar a um sistema alternativo?
Serge Latouche –
Sempre se diz que os jesuítas respondem uma pergunta com outra. Então,
pergunto: o que é mesmo o capitalismo? A questão fundamental é que o
capitalismo, como dizia Max Weber, é primeiro de tudo, um espírito. Sair do
capitalismo não se trata de fazer uma revolução e tomar os palácios, mas, antes
de tudo, sair do seu espírito. Isso é uma coisa que não se pode decidir assim,
tão facilmente. Estou convencido de que o capitalismo sempre esteve em crise. O
dia em que entramos no capitalismo, data que é impossível de precisar,
começamos também a sair dele. Um dia teremos saído dele e não teremos
percebido.
IHU On-Line – Quais
suas expectativas para a Rio + 20? Que temas não podem deixar de ser
discutidos? Quais as prioridades?
Serge Latouche – Os
temas importantes são sempre os mesmos: o desregulamento climático, o fim do
uso do petróleo, a destruição da biodiversidade, as enfermidades geradas pela
poluição. O decrescimento, contudo, nunca entra na pauta, mas é fundamental,
porque impacta em todos os setores da sociedade, como agricultura, indústria, a
tecnociência e a ciência.
IHU On-Line – O
senhor menciona convergências e divergência em relação ao resgate do conceito
de economia civil, principalmente na Itália. Essa economia civil fala,
inclusive, em civilizar o mercado, de bens relacionais. Poderia falar um pouco
mais sobre essa ideia?
Serge Latouche – Há
muitas convergências a partir da crítica à lógica da economia do mercado e da
economia tal como ela se configurou. A divergência é, sobretudo, pelo fato que
os adeptos dessa economia civil pensam que, de algum jeito, podemos voltar às
origens da economia política, e não particularmente a Adam Smith, mas a antes,
na Escola do Iluminismo Napolitano. Penso que na época da economia civil
napolitana isso era importante, mas evoluiu na economia liberal inglesa. Penso
que agora precisamos ultrapassar essa economia e pensar seriamente em sair
dela. Isso é a principal divergência na medida em que isso lhes leva a assumir
uma posição muito reformista. Eles querem desenvolver uma economia solidária,
ética, que são coisas muito boas mas incompatíveis com a lógica do mercado. Nós
favorecemos essa ética mas na ótica de não abolir somente, mas de reduzir o
espírito do mercado. O que tem que ser abolido é o mercado como um todo.
Voltando à escola italiana, menciono Stefano Bartolini, da Universidade de
Siena. Ele escreveu um livro muito interessante chamado Manifesto da felicidade
que segue totalmente a linha do decrescimento, diferente do que outros autores,
como ZamagnI, por exemplo.
IHU On-Line – No
Brasil existe o termo economia de baixo carbono. Nesse contexto surgem ideias de
Georgescu Roegen. Que convergências e divergências há entre tais ideias e o
decrescimento?
Serge Latouche – Não
conheço essa ideia. O que se fala é em economia pós-carbono. Então, penso que…
não penso. De fato a utilização desse termo provém de Georgescu. Por
coincidência, um discípulo seu, Jacques Grinevald, seu assistente, fez conhecer
na França seu trabalho e conseguiu publicar lá obras suas como O decrescimento.
Creio que a primeira edição é de 1995. Ele não utiliza o termo “decrescimento”,
mas “declining”. Contudo, ele disse que o decrescimento correspondia exatamente
ao seu pensamento. Porém, é verdade que Georgescu Roegen não considerava a
ideia de sair da economia, como eu.
IHU On-Line – Que
método de pesquisa utiliza como pesquisador? Que pesquisas têm conduzido agora?
Serge Latouche –
Antigamente consagrei-me à epistemologia através de meu primeiro livro,
Epistemologia e economia, de 1973, um grosso volume que não se encontra mais.
Parti do freudo-marxismo e cheguei a uma posição mais crítica, mais perto do
marxismo que do freudismo. Depois lancei O Processo da ciência social e me
ocupei bem mais de Habermas e dos conceitos da Escola de Frankfurt, a teoria
crítica, além de Umberto Eco com a crítica da linguagem e A estrutura ausente.
Minha caminhada foi uma crítica da economia política e de acesso ao real
através da crítica do discurso.
IHU On-Line – Tem
alguma sugestão de pesquisas que poderiam ser trabalhadas no Brasil?
Serge Latouche – A
ideia de construir um futuro sustentável para o Brasil é um tema muito
importante a ser trabalhado. Não podemos dissociar os problemas ecológicos dos
problemas sociais. (EcoDebate)
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