Sistema Cantareira: Representação Gráfica dos Reservatórios
No momento em que a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) amarga as
consequências de um período prolongado de estiagem, que levou o Sistema
Cantareira a níveis recordes de baixa das reservas, o IEA voltou-se para a
conjuntura dessa falta d’água no debate Verão
2013/2014 e Cenários de Estresse Hídrico. Realizado em 19/03/14 o evento
integrou as comemorações da Semana da Água 2014, que antecedem o Dia Mundial da
Água, celebrado em 22 de março.
Organizado a partir de parceria entre o Grupo de Pesquisa Meio Ambiente
e Sociedade e o Grupo de Pesquisa Filosofia, História e Sociologia da Ciência e
da Tecnologia, ambos do IEA, com o apoio do Centro de Estudos de Governança
Socioambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, o debate foi
dividido em duas mesas-redondas, ambas mediadas por Pedro Jacobi, coordenador
do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade.
Os expositores foram Wagner Costa Ribeiro, professor da Faculdade de
Filosofia, Letras, e Ciências Humanas (FFLCH) da USP; Maurício de Carvalho
Ramos, também professor da FFLCH; Daniela Libório Di Sarno, professora da
Faculdade de Direito da PUC-SP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de
Direito Urbanístico (IBDU); Marcio Automare, analista de desenvolvimento
organizacional da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP);
e Susana Prizendt, coordenadora do Comitê Paulista da Campanha Permanente
Contra os Agrotóxicos e pela Vida.
O encontro discutiu o problema da água a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, abordando aspectos ambientais, jurídicos, sociopolíticos,
filosóficos e da segurança alimentar. Segundo Jacobi, a ideia foi refletir
sobre o problema da água na RMSP, mas abrangendo questões mais amplas, que
envolvem, entre outras, as desigualdades no acesso à água, alterações nos
regimes de chuvas ocasionadas pelo fenômeno das mudanças climáticas, entraves
institucionais e a postura do poder público em relação à prevenção e remediação
do problema.
Ação do Estado
O debate foi aquecido pelas recentes medidas que vem sendo estudadas e
tomadas pelo governo do estado de São Paulo para tentar contornar a situação
crítica do Sistema Cantareira, que atualmente opera com aproximadamente 15% de
sua capacidade. Entre tais medidas está a proposta, anunciada no início
da semana, de usar água do Rio Paraíba do Sul para abastecer os reservatórios
da RMSP. Indagado sobre o assunto, Ribeiro destacou que não considera a
proposta oportuna, uma vez que o rio também está numa situação de estresse
hídrico.
Ribeiro criticou as obras emergenciais do governo do estado, iniciadas
no dia 14 de março, para bombear o volume de “água morta” do fundos de represas
que formam o Sistema Cantareira. De acordo com ele, isso significa “retirar até
a última gota de água da Cantareira, de uma água que está há 40 anos estocada,
parada, sem dinâmica, cuja qualidade é duvidosa, pois não se sabe que elementos
estão associados a ela”.
Além disso, afirmou tratar-se de uma medida arriscada, que pode levar à
exaustão do recurso na região. “Isso porque, para saturar o solo novamente a
ponto de a represa voltar a encher, será preciso muito mais que o volume médio
de chuvas na região, cujos índices não foram atingidos neste verão.”
Chamando atenção para a dimensão política da escassez de água em São
Paulo, Ribeiro advertiu que é preciso questionar porque a cidade chegou ao
limite dos recursos hídricos. Para ele, o problema não estaria tão grave caso o
racionamento tivesse sido adotado em dezembro, quando já havia fortes indícios
do que viria pela frente. Automare, da mesma forma, questionou: “Já se sabia da
situação da Cantareira, então por que o racionamento não foi colocado em
prática?”.
Segundo Ribeiro, a crise requer a adoção imediata da medida, penalizando
mais os grandes consumidores, de modo a minimizar os prejuízos aos usuários que
impactam menos no sistema.
Gestão Fragmentada
Sarno apontou a incongruência do sistema jurídico brasileiro em relação
à gestão dos recursos hídricos como causa primeira da situação de escassez de
água no país. De acordo com ela, embora a Constituição Federal determine que a
gestão deve ser compartilhada entre União, estados e municípios, há pouco
diálogo entre as partes e a administração dos recursos hídricos acaba ficando
fragmentada.
“Para enfrentar o desafio da gestão compartilhada, as três esferas
[federal, estadual e municipal] precisam sentar e discutir. Mas ainda não demos
esse passo. Não há conversa nem verticalmente, entre as esferas, nem
horizontalmente, entre as instituições”, observou.
Essa fragmentação é agravada pela incompatibilidade entre divisão do
sistema federativo, que obedece a critério políticos, e a divisão das bacias
hidrográficas, que obedece a critérios geográficos. As bacias são tão
importantes porque colocam em cena mais um ator: os Comitês de Bacia
Hidrográfica, os quais integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos. Compostos por representantes dos diversos setores usuários de água,
das organizações da sociedade civil e dos poderes públicos, os comitês aprovam
o Plano de Recursos Hídricos de cada bacia, arbitram conflitos pelo uso da
água, sugerem valores para cobrança do consumo, entre outros.
Segundo Sarno, o problema é que nenhum dos modelos de gestão adotados no
país — gestão municipal e gestão estadual, por meio de autarquias ou de
empresas contratadas — é condizente com as divisões das bacias hidrográficas.
“Os Comitês até fazem parte da gestão, mas quem coloca em prática a
distribuição da água não são eles, mas instituições gestoras”.
Público X Privado
Já para Ribeiro, o maior entrave para equacionar a questão
da água no Brasil é a gestão privada dos recursos hídricos. Na RMSP, por
exemplo, a gestão é feita pela Sabesp, empresa de economia mista, capital
aberto, com ações negociadas na bolsa de valores, que funciona segundo a lógica
de uma instituição privada.
“É função do estado remunerar-se, obter lucro e especular
com base na comercialização do recurso água? Não, não é função do estado ganhar
dinheiro com a água, como faz a Sapesp”, advertiu Ribeiro, destacando que falta
transparência na gestão da empresa. “Além dos fluxos hídricos, deve haver
transparência em relação aos fluxos financeiros”, apontou.
Assim como Ribeiro, Automare ponderou que uma empresa ligada
ao poder público, caso da Sabesp, não deveria se comportar como uma empresa
privada, tratando a água como um produto. Citou, ainda, como exemplo da
exploração comercial dos recursos hídricos, a indústria de água vendida em
galões, cujo crescimento estaria afetando os lençóis freáticos.
Sarno também abordou o embate entre interesse público e
privado. De acordo com ela, Comitês de Bacia Hidrográfica tratam a água como um
bem, cuja distribuição deve ser igualitária e cuja cobrança deve acontecer
apenas para regular o consumo. Já as empresas que colocam a gestão em prática,
como a Sabesp, tratam a água como um produto à venda.
Segundo a jurista, os gestores das regiões metropolitanas e
dos municípios não levam em consideração a disposição das bacias hidrográficas
ao autorizar, por exemplo, a expansão de um distrito industrial que pode
colocar em risco o abastecimento de água no local. “É preciso medidas para
compatibilizar a expansão urbana e a infraestrutura de distribuição de água em
termos de qualidade e quantidade”, advertiu.
Dimensão Ética
Fazendo uma abordagem filosófica, Carvalho ressaltou que a
água pode ser pensada a partir de dois conjuntos de propriedades: as
propriedades materiais, ligadas aos princípios bioquímicos; e as propriedades
simbólicas, relacionadas ao seu valor incomensurável para a vida, o que faz
dela um símbolo de poder.
De acordo com ele, quando se consideram as propriedades
simbólicas, a água pode ser concebida tanto como um recurso — um produto a ser
explorado economicamente; quanto como um bem — algo gratuito e não comerciável
de nenhuma forma. E é essa concepção de bem que deve ser adotada para se
encarar o problema do estresse hídrico a partir de uma perspectiva ética.
“Enfrentar a questão de forma racional e responsável envolve
não colocar em prática possibilidades tecnocientíficas ligadas ao uso da água
que coloquem em risco a disponibilidade ou as propriedades materiais dos
recursos hídricos”, disse. “Se a postura ética prevalecesse, não haveria
necessidade de racionamento; bastaria um apelo à consciência das pessoas”,
completou.
Participação
Os debatedores chamaram atenção para o baixo envolvimento da
sociedade nas discussões sobre a gestão dos recursos hídricos. Segundo
Automare, a água figura no último lugar na lista de prioridade dos cidadãos do
Estado de São Paulo: “fomos induzidos a creditar a discussão sobre o assunto
aos representantes e deixamos de nos envolver”. Além disso, destacou, “o
público não tem foro para debater, de modo que a situação fica nas mãos de
tecnocratas”.
Ribeiro também alertou sobre o paradoxo que envolve a falta
de participação popular, de um lado, e o excesso de instituições para gerir a
água, de outro. Para ele, “temos mais instituições que lidam com a água do que
água em si. É muita instituição para pouca água. E a sociedade civil é
sub-representada dentro delas”.
Segurança Alimentar
O problema da água também foi abordado do ponto de vista da
qualidade. Tratando da contaminação dos recursos hídricos por agrotóxicos,
Prizendt afirmou que a questão deve ser debatida tendo em vista a substituição
do agronegócio, modelo de produção convencional, baseado no uso intensivo de
agrotóxicos, pelo agroecologia, modelo alternativo, cujas práticas visam a
manter o equilíbrio dos ecossistemas e preservar as nascentes dos rios e do
sistema hídrico como um todo.
De acordo com ela, os agrotóxicos são a segunda maior causa
de contaminação de rios, dado que se torna particularmente preocupante
considerando-se que o Brasil é campeão mundial no uso destas substâncias, sendo
responsável por 1/5 do que é consumido no mundo. Além disso, disse a
ambientalista, o setor agrícola corresponde a cerca de 70% do consumo de água
doce no Brasil. (ecodebate)
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