Especialista afirma que estrutura do
Cantareira é profundamente injusta e não leva em conta a realidade de Campinas.
A partilha da água que é retirada dos rios da região de Campinas pelo
Sistema Cantareira para abastecer 47% da Grande São Paulo é ilegal e fere a
Política Nacional de Recursos Hídricos. "É um sistema injusto e a água tem
sido usada de maneira desigual", afirma o professor Paulo Affonso Leme
Machado, um dos maiores especialistas em Direito Ambiental e de recursos
hídricos do País.
Em entrevista ao Estado, o professor afirma que a guerra pela água entre
a Grande São Paulo e municípios da região de Campinas era previsível e que o
sistema precisa ser revisto para se adequar à lei.
Segundo ele, pelo menos três artigos da Lei 9.433/97 estipulam que as
cidades onde estão localizados os rios que fornecem a água têm prioridade de
uso sobre ela. "Determinação que não tem sido seguida."
Machado afirma que, pela lei, o racionamento deve ocorrer primeiro nas
cidades que retiram água da outra bacia. Também aponta a falta de atuação e a
ingerência governamental nos comitês gestores das bacias e acusa o Estado de
politizar o debate e omitir sua inação.
O conflito pela água entre municípios da Grande São Paulo e da região de
Campinas por causa do Cantareira era previsto?
Era algo previsto. O direito internacional criou o uso equitativo e
razoável da água. A equidade hídrica é distribuir a água de forma igual, não na
mesma quantidade, mas de forma proporcional. O conflito é uma questão
internacional – a Etiópia e o Egito discutem sobre a água do Rio Nilo. Ninguém
é obrigado a passar sede se administra bem a água que está diante de sua casa.
A Região Metropolitana de São Paulo não tem o direito de tirar água dessas três
bacias, como foi feito no silêncio, sem debate, na década de 1970.
Legalmente, a transposição de água pelo Cantareira e sua gestão estão
sendo feitas em conformidade com a Política Nacional de Recursos Hídricos?
O Sistema Cantareira é uma imoralidade ambiental, porque contraria a
ética ambiental, não prevê um debate e um acerto entre São Paulo e os outros
municípios. Essa divisão não tem sido debatida.
Mas há ilegalidade?
Eu acho que há. Os artigos 1.º e 11 da Lei 9433/97 dizem que o habitante
de uma bacia tem direito a acessar as águas de sua bacia prioritariamente.
Tanto que o artigo 22 da lei afirma que os valores arrecadados com a política
de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em
que foram gerados e que serão utilizados. Então a noção de prioridade está
também no artigo 22, e depois repetida na lei 9.984 de 2000. O Cantareira foi
engendrado nas décadas de 1960 e 1970, quando não havia as leis de recursos
hídricos, e deveria se adaptar a essa lei.
Como deve ser feito o racionamento?
O racionamento não deve afetar primeiro as cidades da bacia onde está a
água. É algo que nunca discutimos. Uma cidade que está com problemas hídricos
sérios tem de discutir seu crescimento.
O senhor vê justiça na divisão de água do Cantareira?
A maneira como está estruturado o sistema é profundamente injusto. Ele
não leva em conta, para transpor as águas, a realidade da região de Campinas.
Os comitês das bacias têm cumprido seu papel?
O modelo de lei brasileiro feito em 1997 era para ser nos moldes do
francês, mas em 2000 houve uma mudança e os comitês perderam autonomia. Falta
também participação da comunidade. O sistema fala em paridade na gestão e
limita a representação do poder público a metade. Os governos não podem ter
comando, eles não têm maioria nos comitês. Mas quem é o presidente do comitê da
bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí? É o prefeito de Piracicaba, Gabriel
Ferrato, do PSDB. Isso, a meu ver, não é ético. Como a torneira ainda tem água,
o povo ainda não saiu às ruas. Mas ela será convocada em um momento difícil e,
até por isso, pode ser dura quando surgir.
Que tipo abuso?
O fato de não se dar satisfação de como a água está sendo gerida, outorgada
ou racionada é um insulto à dignidade de cada ser. E não é só o Estado. O
Departamento de Água e Energia Elétrica (Daee) e a Agência Nacional de Águas
(ANA) têm de dar satisfação. E isso não é favor.
A discussão atual está contaminada pela política?
Claro, estamos em ano eleitoral. O governo estadual não quer assumir a
responsabilidade de uma inércia que está evidente. Não é jogar pedra sobre um
ou outro governante. Mas são dez anos, desde a primeira renovação de outorga do
Cantareira, e não foram feitas as obras de armazenamento, de prevenção contra
seca e de captação de outras fontes. (OESP)
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