Tudo
começou no dia 17 de fevereiro de 1996. Dos 124 pacientes que faziam diálise em
uma clínica em Caruaru, 101 começaram a ficar com a vista embaçada, sentiram
náusea e começaram a vomitar. Ficaram confusos. Alguns começaram a sangrar
pelas gengivas e tiveram hemorragia interna e convulsões. Nas duas semanas
seguintes, 50 dos 101 pacientes morreram por falência aguda do fígado. A
clínica havia usado água sem tratamento no equipamento de diálise.
A
investigação estava começando. O governo solicitou a ajuda de cientistas do
Center of Disease Control (CDC) de Atlanta, nos EUA, especializados em
identificar novos tipos de doença. Em novembro de 1998, juntamente com
cientistas de Pernambuco, eles publicaram suas descobertas no prestigioso New
England Journal of Medicine (vol. 338; pág. 873).
A
conclusão é que a água da Represa de Tabocas, localizada a 40 quilômetros de
Caruaru, estava contaminada. Mas a contaminação era peculiar. Os suspeitos usuais,
como o vírus da hepatite, os pesticidas e outras doenças infecciosas, foram
excluídos como causa do problema. As pessoas não haviam sido mortas por um
produto químico industrial ou por um dos inúmeros seres vivos que destroem
nosso fígado.
Para
surpresa dos cientistas, a investigação revelou uma grande quantidade de
microcystinas em diversos órgãos das vítimas. Essas moléculas, altamente
tóxicas, ativam enzimas que destroem o DNA presente nas células de mamíferos.
Quando ratos ou pessoas ingerem essa toxina, morrem em poucas horas. O fígado é
totalmente destruído. Bastam 60 microgramas (milésimos de gramas) por quilo de
peso para matar uma pessoa. Você deve estar se perguntando como as
microcystinas foram parar na água da represa.
As
microcystinas são produzidas por cianobactérias que existem em toda represa.
Mas, normalmente, a quantidade de cianobactérias nas represas é extremamente
baixa. Não chega a ser um problema. Mas no reservatório de Tabocas, durante o
verão de 1996, ocorreu uma enorme proliferação dessas cianobactérias. O
interior de Pernambuco vivia uma seca prolongada e o reservatório estava
praticamente esgotado.
Alertado
por essa observação, um segundo grupo de cientistas pernambucanos se associou a
cientistas franceses para estudar o que ocorria com a ecologia dos açudes da
região durante longos períodos de estiagem.
O
estudo foi feito na Represa de Ingazeira, no interior de Pernambuco. Entre
janeiro de 1997 e dezembro de 1998, período em que o nível da represa caiu de
100% de sua capacidade para 20%, os cientistas coletaram mensalmente diversas
amostras de água e analisaram a flora, a fauna, e as diversas características
físico-químicas da água. Foram acompanhados, mês a mês, a presença e a
densidade de mais de 40 espécies de organismos.
Os
cientistas observaram que, à medida que o volume de água na represa diminuía, a
água ia se tornando turva por causa do levantamento dos sedimentos do fundo, e
os tipos de microrganismos que habitavam a represa se modificavam. As algas que
fazem fotossíntese diminuíram e finalmente desapareceram. A represa foi
dominada por cianobactérias. O impressionante é que, entre as cianobactérias, a
que mais proliferou foi a Cylindrospermopsis raciborskii, a grande produtora de
microcystinas, a toxina que matou os pacientes de Caruaru.
Hoje
sabemos que esse fenômeno se repete em centenas de açudes e represas em
diversos locais do mundo. Esse é um bom exemplo de como o ecossistema de um
represa se altera quando ela é esvaziada.
O fato
desse tipo de alteração ter ocorrido em represas no Nordeste do Brasil não
significa que o mesmo vai ocorrer com a retirada do chamado volume morto do
Sistema Cantareira. O sistema de tratamento e monitoramento utilizado pela
Sabesp elimina qualquer risco de contaminação de nossa água por toxinas dessa
natureza.
Mas
decidi contar essa história para ilustrar um fato bem conhecido pelos
ecologistas. Quando retiramos grande parte da água de uma represa, seu
equilíbrio ecológico se altera. E, portanto, é bastante provável que aspirar o
chamado volume morto do Sistema Cantareira vai alterar a flora e a fauna de
nossa principal fonte de água. Esse fato deveria ser levado em consideração
antes de decidirmos aspirar a rapa do tacho de nossa principal fonte de água.
(OESP)
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