sábado, 5 de abril de 2014

A ecologia de represas vazias

Tudo começou no dia 17 de fevereiro de 1996. Dos 124 pacientes que faziam diálise em uma clínica em Caruaru, 101 começaram a ficar com a vista embaçada, sentiram náusea e começaram a vomitar. Ficaram confusos. Alguns começaram a sangrar pelas gengivas e tiveram hemorragia interna e convulsões. Nas duas semanas seguintes, 50 dos 101 pacientes morreram por falência aguda do fígado. A clínica havia usado água sem tratamento no equipamento de diálise.
A investigação estava começando. O governo solicitou a ajuda de cientistas do Center of Disease Control (CDC) de Atlanta, nos EUA, especializados em identificar novos tipos de doença. Em novembro de 1998, juntamente com cientistas de Pernambuco, eles publicaram suas descobertas no prestigioso New England Journal of Medicine (vol. 338; pág. 873).
A conclusão é que a água da Represa de Tabocas, localizada a 40 quilômetros de Caruaru, estava contaminada. Mas a contaminação era peculiar. Os suspeitos usuais, como o vírus da hepatite, os pesticidas e outras doenças infecciosas, foram excluídos como causa do problema. As pessoas não haviam sido mortas por um produto químico industrial ou por um dos inúmeros seres vivos que destroem nosso fígado.
Para surpresa dos cientistas, a investigação revelou uma grande quantidade de microcystinas em diversos órgãos das vítimas. Essas moléculas, altamente tóxicas, ativam enzimas que destroem o DNA presente nas células de mamíferos. Quando ratos ou pessoas ingerem essa toxina, morrem em poucas horas. O fígado é totalmente destruído. Bastam 60 microgramas (milésimos de gramas) por quilo de peso para matar uma pessoa. Você deve estar se perguntando como as microcystinas foram parar na água da represa.
As microcystinas são produzidas por cianobactérias que existem em toda represa. Mas, normalmente, a quantidade de cianobactérias nas represas é extremamente baixa. Não chega a ser um problema. Mas no reservatório de Tabocas, durante o verão de 1996, ocorreu uma enorme proliferação dessas cianobactérias. O interior de Pernambuco vivia uma seca prolongada e o reservatório estava praticamente esgotado.
Alertado por essa observação, um segundo grupo de cientistas pernambucanos se associou a cientistas franceses para estudar o que ocorria com a ecologia dos açudes da região durante longos períodos de estiagem.
O estudo foi feito na Represa de Ingazeira, no interior de Pernambuco. Entre janeiro de 1997 e dezembro de 1998, período em que o nível da represa caiu de 100% de sua capacidade para 20%, os cientistas coletaram mensalmente diversas amostras de água e analisaram a flora, a fauna, e as diversas características físico-químicas da água. Foram acompanhados, mês a mês, a presença e a densidade de mais de 40 espécies de organismos.
Os cientistas observaram que, à medida que o volume de água na represa diminuía, a água ia se tornando turva por causa do levantamento dos sedimentos do fundo, e os tipos de microrganismos que habitavam a represa se modificavam. As algas que fazem fotossíntese diminuíram e finalmente desapareceram. A represa foi dominada por cianobactérias. O impressionante é que, entre as cianobactérias, a que mais proliferou foi a Cylindrospermopsis raciborskii, a grande produtora de microcystinas, a toxina que matou os pacientes de Caruaru.
Hoje sabemos que esse fenômeno se repete em centenas de açudes e represas em diversos locais do mundo. Esse é um bom exemplo de como o ecossistema de um represa se altera quando ela é esvaziada.
O fato desse tipo de alteração ter ocorrido em represas no Nordeste do Brasil não significa que o mesmo vai ocorrer com a retirada do chamado volume morto do Sistema Cantareira. O sistema de tratamento e monitoramento utilizado pela Sabesp elimina qualquer risco de contaminação de nossa água por toxinas dessa natureza.
Mas decidi contar essa história para ilustrar um fato bem conhecido pelos ecologistas. Quando retiramos grande parte da água de uma represa, seu equilíbrio ecológico se altera. E, portanto, é bastante provável que aspirar o chamado volume morto do Sistema Cantareira vai alterar a flora e a fauna de nossa principal fonte de água. Esse fato deveria ser levado em consideração antes de decidirmos aspirar a rapa do tacho de nossa principal fonte de água. (OESP)

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