Para não ficar
cantando durante o banho, verifico antes como anda o Cantareira. Na
quinta-feira, 15, restavam 8,2% do volume útil. Suspiro e banho rápido.
Em 16/05/14 repeti minha rotina. Levei um susto. O Sistema Cantareira estava com 26,7%.
Como o volume de água no reservatório poderia ter aumentado 18% em uma noite?
Curioso, entrei no Diário do Sistema Cantareira, no site da Sabesp. Informava
que havia começado o bombeamento do "volume morto" (quantidade de
água que fica no fundo da represa) do Sistema Cantareira. O texto dizia:
"Com isso, o nível do Sistema Cantareira será acrescido de 182,5 bilhões
de litros de água, o que fará com que o nível suba 18,5% a partir de 16/05/14".
Se não estivesse
acompanhado essa enorme crise ambiental que assola São Paulo, teria tomado um
banho longo e despreocupado, afinal o Cantareira estava salvo! Mas não se
engane: os 26,7% são uma ilusão retórica.
O que aconteceu foi
que, com o começo do funcionamento das bombas, a quantidade de água disponível
para ser vendida em São Paulo realmente aumentou. Estamos sugando o fundo da
represa, o chamado "volume morto" ou, como prefere a Sabesp, a
"reserva técnica". Na lógica do marketing, se esse volume passou a
ficar disponível, porque não somá-lo ao nível da represa? Parece simples.
Talvez seja purismo, mas, na minha opinião, essa soma é uma forma de
desonestidade intelectual que prejudica a compreensão da crise que estamos
vivendo.
O discurso honesto
seria dizer que o Sistema Cantareira está no limite de sua capacidade e que sua
maior represa, responsável por 83% do volume, está com somente 1,7% de sua
capacidade útil. Quando a capacidade útil chega a zero, o sistema deixa de ser
capaz de fornecer água para São Paulo.
O Sistema
Cantareira abastece de água quase 9 milhões de pessoas. Se ele deixar de levar
água para São Paulo, boa parte dessas pessoas não terá água em suas casas.
Felizmente, parte dessas residências pode ser abastecida por outras represas,
mas metade delas não pode ser abastecida de outra maneira e teria de receber
água de caminhão-pipa ou ser desocupada.
Dada a seriedade do
problema foi decidido instalar uma série de bombas capazes de coletar parte do
"volume morto". Esse é o volume de água que garante a recuperação da
represa e sua sobrevivência no longo prazo. Essa decisão foi inevitável e vai
garantir o abastecimento por alguns meses, talvez até o inicio do próximo
período de chuva. Mas é importante dizer que essa decisão envolve riscos. Se
gastarmos a maior parte do "volume morto" durante este ano e não
chover no final do ano, talvez não exista sequer água para organizar um
racionamento em 2015. Além disso, a retirada dessa água vai dificultar, atrasar
ou mesmo impedir a recuperação do Sistema Cantareira.
Mas discurso
honesto é difícil.
Para entender o
problema, é preciso saber que quando uma represa é projetada, é praxe não
colocar o túnel que capta a água no ponto mais profundo da represa. Isso
garante a existência de um volume que nunca é retirado, o que permite a
recuperação do reservatório. É o "volume morto". Além disso, os
engenheiros definem um mínimo operacional, abaixo do qual é recomendável
reduzir drasticamente a retirada de água de modo que o reservatório possa
cumprir sua função por mais tempo. Quando o Sistema Cantareira foi construído,
o nível mínimo operacional foi definido em 829 metros (é o número de metros
acima do nível do mar em que se encontra a superfície da água) e o "volume
morto" começava aos 820,8 metros.
Como eu descrevi no
artigo da semana passada, durante a seca de 2004, o reservatório ficou abaixo
de 829 metros, e os governos estadual e federal decidiram redefinir o nível do
volume mínimo, que passou a ser igual ao início do volume morto (820,8 metros).
Naquela época foi usado o mesmo truque retórico. Da noite para o dia, o volume
do Sistema Cantareira "cresceu" quase 20%. O equivalente aos 8 metros
entre 829 e 820,8. Foi a primeira vez que o Cantareira "subiu" de
nível sem que entrasse uma gota de água. Agora chegamos nos 820 metros, e foi
necessário instalar as bombas. E, com elas, o "nível" cresceu
novamente. A água diminui, mas a represa sobe.
Como disse Ésquilo,
“A primeira vítima de uma guerra é a verdade”. (OESP)
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