Dividir e separar a discussão sobre população,
desenvolvimento e meio ambiente é não só um erro conceitual e prático, como um
precedente que abre espaço para todo tipo de esquizofrenia. No passado, a ONU,
pressionada pelas divergências geopolíticas da Guerra Fria, seccionou estes
três temas realizando a Conferência sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo
(1972) e a Conferência Mundial de População, em Bucareste (1974). Nas
Conferências seguintes a divisão se manteve, como a Rio/92 e o Cairo/94. Se tal
estratégia facilitou a aprovação de resoluções específicas, ela dificultou o tratamento
conjunto das questões relativas a população, economia e ambiente. Pior, este
procedimento pode levar a diferenças de ênfase e até contradições, uma vez que
setores da ONU podem defender uma coisa, enquanto outros podem defender o
oposto, surgindo resoluções simultâneas, mas conflitantes.
Estas discrepâncias de abordagens e prioridades ficaram
novamente expostas, e de maneira dramática, nesta primeira quinzena de abril de
2014. O relatório “Mudanças Climáticas 2014: mitigação das mudanças climáticas”
do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), divulgado dia
13/04, mostra que as políticas climáticas consistentes com o cenário para
manter o aquecimento global em até 2 graus Celsius necessitam buscar reduções
significativas nas emissões globais de gases de efeito estufa (GEE). O
documento diz que as emissões dos gases que provocam o efeito estufa e que
podem estar provocando um aquecimento global cresceram mais rapidamente entre
2000 e 2010 do que em cada uma das três décadas anteriores. A crise econômica
global de 2007/2008 reduziu temporariamente as emissões, mas não mudou a
tendência. O IPCC recomenda que os governos devem agir de forma rápida e
agressiva se quiserem evitar as consequências mais sérias da mudança no clima
mundial e na vulnerabilidade social.
Por incrível que possa parecer, enquanto o IPCC mostrava os
efeitos nocivos do desenvolvimento e do padrão de produção e consumo adotado no
mundo, a reunião da Comissão de População e Desenvolvimento (CPD), aprovou, no
dia 12 de abril (ou seja, apenas um dia antes da publicação do relatório do
IPCC) documento que faz apologia do desenvolvimento e do crescimento econômico,
como nos dois parágrafos abaixo:
“PP6. Recognizing further that the right to development is a universal
and inalienable right and an integral part of fundamental human rights, and the
human person is the central subject of development, (CPD, 12/04/2014)”
“PP9. Reaffirming that sustainable development is a central goal in
itself and that its economic, social and environmental dimensions constitute
key elements of the overarching framework of United Nations activities, (CPD,
12/04/2014)”
A defesa do desenvolvimento e do crescimento econômico, como
um direito humano e um fim em si mesmo, abre espaço para se continuar adotando
práticas degradantes do meio ambiente. Seria preciso colocar algum
condicionante ao desenvolvimento e ao processo de acumulação de lucro, nem que
seja como fez a CIPD do Cairo, que em várias passagens do Programa de Ação
condenou: “a degradação ambiental levada a efeito por sistemas não-sustentáveis
de produção e consumo” (CIPD, 1994).
É certo que a CPD de abril de 2014, pressionada pelos países
insulares que estão sendo ameaçados de extinção pela elevação do nível do mar,
também falou das mudanças climáticas:
“OP15. Notes with concern that climate change is one of the greatest
challenges of our time, and that the population of all countries,
particularly those in developing countries, are vulnerable to adverse
impacts of climate change threatening their food security and efforts to
eradicate poverty and achieve sustainable development, and urges Governments to
strengthen efforts to address climate change, including mitigation and
adaptation;” (CPD, 12/04/2014)
Porém, enquanto o IPCC fala da necessidade de mitigação das
mudanças climáticas e outros setores da ONU falam da degradação dos solos, da
salinização e desertificação, da poluição das águas, da acidificação dos
oceanos, etc, a Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) ignorou as
principais ameaças de um paradigma de desenvolvimento insustentável ao fazer
uma defesa abstrata do desenvolvimentismo. O modelo de desenvolvimento
globalizado e hegemônico vive uma grande crise financeira e ambiental, que não
pode ser ignorada e muito menos jogada para debaixo do tapete.
A CPD – além de reforçar as ideias do conservadorismo moral
ao não incluir os direitos sexuais e as novas formas de família – também
reforçou a concepção homocêntrica ao dizer que a pessoa humana é o objeto
central do desenvolvimento, ignorando os direitos da Terra e os direitos dos
animais e das outras espécies. Contudo, os direitos humanos só serão efetivos
quando se respeitar os direitos da natureza e dos demais seres vivos do
Planeta. O crescimento contínuo das atividades antrópicas tem reduzido o espaço
para a vida não humana e tem colocado um forte estresse sobre os recursos
naturais, além de aumentar a poluição, o lixo, o esgoto e os resíduos sólidos.
A capacidade de carga da Terra e as fronteiras planetárias já foram ultrapassadas
e a necessidade de um novo equilíbrio sustentável é inadiável.
Para piorar o quadro, a ONU não tem poder para implementar
suas decisões e tudo depende da boa vontade dos países que possuem soberania
para aplicar ou rejeitar as recomendações. O mundo passa por uma crise de
governança, como mostrou o sociólogo George Martine em artigo do EcoDebate em 02/04/14, que chama a atenção
para a urgência da revitalização do sistema das Nações Unidas.
Assim, sinais contraditórios sobre as soluções a serem
adotadas só dificultam o enfrentamento dos graves problemas que o mundo tem
pela frente. Como mostrou o relatório do IPCC, ações urgentes são necessárias
para mudar a matriz energética e evitar a depleção ambiental, reduzindo os
riscos de conflitos sociais e o aumento dos fenômenos da fome, pobreza,
enchentes, migrações indesejadas e refugiados do clima. (ecodebate)
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