O futuro jaz no planeta Terra
‘Destruímos o futuro de nossos filhos’
Crise da água é mais séria do que pensamos e
terá consequências por muitos anos.
Existe, nos debates sobre aquecimento global, uma expressão recorrente
para medir o barril de pólvora sobre o qual estamos todos (friso: todos)
sentados: responsabilidade intergeracional. É um palavrão daqueles que
levam qualquer leigo a abandonar a conversa e deixar o abacaxi para os
especialistas. Seria prudente, porém, incorporar tal palavrão em nosso
vocabulário antes de sair por aí distribuindo votos para um próspero ano
novo.
Mal
rabiscando, responsabilidade intergeracional é a capacidade de
calcular um ato ou uma decisão levando em conta o bem-estar de quem ainda não
nasceu. Nossos filhos, por exemplo. Ou os filhos dos nossos filhos. Ou os
filhos dos filhos dos nossos filhos.
Parece
simples, mas num contexto em que se ensina, desde a escola, a trucidar todas as
barreiras diárias, do vestibular ao sucesso profissional, para sobreviver, tudo
o que não pensamos ao fim do dia é sobre como estará o mundo em 2050. Ao fim do
dia somos todos boiadeiros: estamos mais ocupados em nos manter no lombo do
touro do que em saber para onde ele vai.
No
passado, a lógica da urgência material, e da consequente
irresponsabilidade intergeracional, criou aberrações urbanas como
as observadas em São Paulo, um cemitério de rios canalizados e sepultados sobre
o asfalto e o concreto. Nas grandes cidades do país, a força da grana ergueu e
destruiu coisas belas que esquentam no inverno, esfriam no verão e inundam (ou
costumavam inundar) nas estações chuvosas. No presente, a opção pelo transporte
individual e pela ausência de espaços públicos criou, a curto o prazo, um
terreno propício ao transtorno de seus habitantes, mas isso quase nunca entra
na conta da vida em cativeiro. Para isso existem os remédios.
Nos
relatos sobre a crise hídrica atual, o que mais assusta não são os apertos
temporários só agora anunciados, mas a perenidade da tragédia. Há anos se fala
em uso, reuso, reciclagem, gestão, desperdício, esforços individuais,
possíveis racionamentos. Mas nenhuma dessas palavras dá voto, e por isso
seguimos sugando tudo até a última gota.
Entre
especialista, há quem assegure que as represas do sistema Cantareira, hoje no
limite do (des) abastecimento, jamais voltarão a ser o que eram. Ou seja: a
água da São Paulo no século XXI corre o risco de entrar na lista dos recursos
naturais extintos pela exploração desenfreada. As cidades-cemitérios dos ciclos
do ouro, da borracha, do ferro ou da madeira não me deixam mentir: quem lucrou
parte em debandada rumo a outras fontes, e o legado a quem fica é só um rastro
de destruição.
A
urgência da exploração irresponsável pautou praticamente todos os ciclos de
desenvolvimento testados no país. Em todos havia sempre questões mais urgentes
do que o bem-estar de quem sequer havia nascido. Pois ninguém enriquece
pensando no futuro. Daí a ação predatória sobre os recursos materiais e
humanos: é preciso aproveitar enquanto eles existem.
Há,
no entanto, um detalhe: o que a economia arruína, a história condena. Assim, a
prosperidade do empreendedor do passado é hoje a ruína moral do escravista.
Este enriqueceu em um modelo socialmente aceito, porque lucrativo até certo
momento. Entrou para a história como canalha. Como não aprendemos nada com a
história, o mundo de 2050 também não perdoará os costumes forjados neste início
do século. Estes lavam a calçada com esguicho e esquecem a sede do neto.
Há
décadas os cientistas da área ambiental alertam para as relações diretas entre
a destruição dos recursos naturais, o desmatamento e a emissão de gases
poluentes com as intempéries climáticas. Mas a floresta é distante, a área de
risco é distante, a safra é distante, o futuro é distante, a seca é distante.
Pagamos
pra ver e o rio secou, justamente no momento em que o planeta discute como
impedir a catástrofe. No relatório da 20ª Conferência do Clima, que acaba
de ser encerrada em Lima, no Peru, autoridades de todos os países concordaram
sobre um ponto: é urgente um esforço global para reduzir as emissões de CO2.
Tudo para não corrermos o risco de chegar a 2050 com a temperatura média global
2ºC superior à atual - o suficiente para provocar febre em qualquer corpo. Uma
febre de derreter as calotas polares. Para isso será inevitável pensar em
soluções para a substituição de combustíveis fosseis e naturais. Grande ironia:
por aqui, a salvação da lavoura é justamente a descoberta de jazidas
de…combustíveis fosseis.
O
ciclo, dessa maneira, se perpetua pela contracorrente. Quanto mais combustível,
mais oportunidade de negócios (agora são as empreiteiras apanhadas na Lava Jato
que não me deixam mentir), mais incentivo ao transporte individual, mais
necessidade de concreto e asfalto, mais rios canalizados, mais área verde
sepultada, menos escoamento, menos água para o reservatório.
Os
escândalos, da água e do petróleo, podem ser distintos, mas a natureza, com o
perdão do trocadilho, é a mesma. Em um, como em outro, o ciclo predatório é
alimentado por um misto de omissão, ganância e cinismo que nos coloca em um
mesmo barco: enquanto não discutirmos o modelo, e o mundo que queremos deixar
para o futuro distante, seremos sempre corresponsáveis pela tragédia iminente.
Garantir, na TV, que tudo está sob controle, do racionamento ao delito
investigado, pode funcionar na urgência das urnas. Mas a História não tolera o
atavismo. Ela governa para as gerações futuras - e elas não nos perdoarão.
*Seca
deixa Represa do Jaguari com 1,7% do nível de água. (yahoo)
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