2014 bate recorde de conflitos pela água e famílias
envolvidas
Desde 2002, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) faz o registro dos
Conflitos pela Água no campo. Antes desta data, já desde o início da publicação
dos Conflitos no Campo Brasil, em 1985, entre os conflitos por terra
registravam-se os conflitos gerados pelas barragens para construção de
hidrelétricas ou outros pequenos açudes. A decisão de registrar distintamente
deu-se, exatamente, pelos cenários desenhados à época, tanto em nível nacional,
como internacional, em que se vislumbrava que a disputa pela água se acirraria
no mundo inteiro. Era o estabelecimento da chamada “crise da água”.
Aquilo que era um cenário, hoje é realidade na vida de milhões de pessoas
ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Porém, há uma novidade surpreendente
que não estava no script dos vários experts no assunto, isto é, a crise urbana
da água. Essa é a novidade no Brasil de hoje. Vamos aqui nos ater a uma análise
dos Conflitos pela Água no campo, nos últimos dez anos, entre 2005 e 2014,
período em que o crescimento dos conflitos por esse bem essencial a todas as
formas de vida cresceu de forma evidente. Em 2014 foi registrado o maior número
de conflitos pela água e de famílias envolvidas nos últimos dez anos.
Neste período de 10 anos, 322.508 famílias estiveram envolvidas em
conflitos pela água.
O ano de 2014 foram 127 ocorrências desse conflito, envolvendo 42.815
famílias. Se multiplicarmos pelo número médio de cinco pessoas, que compõe uma
família rural, conforme metodologia do Centro de Documentação Dom Tomás
Balduino, da CPT, então 214.075 pessoas estiveram envolvidas nesse tipo de
conflito nesse ano.
Ranking
dos 10 últimos anos
Ao longo dessa década, observa-se que o número de famílias atingidas tem
sido maior nos estados onde há grandes projetos de “desenvolvimento”. O Pará é
o estado com o maior número de famílias envolvidas nesse período (69.302), a
maior parte por conta da Construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Além disso,
o chamado “Complexo Hidrelétrico Tapajós”, que prevê a construção de sete
usinas ao longo dos dois rios, no oeste do Pará, vai impactar diretamente
32 comunidades tradicionais, entre quilombolas, ribeirinhos, pescadores
artesanais, extrativistas e cerca de dois mil quilômetros de território
indígena, principalmente da etnia munduruku.
O Rio de Janeiro ficou em segundo lugar no número de famílias envolvidas
nesses dez anos, devido, sobretudo, à implantação do complexo industrial da
Companhia Siderúrgica do Atlântico, um empreendimento que envolve Vale, Thyssen
Krupp e CSA. Somente neste conflito estão envolvidas mais de oito mil famílias.
Nesse período foram 66.687famílias envolvidas nesse tipo de conflito no estado,
ficando atrás somente do Pará.
Minas Gerais, com 26.179 famílias envolvidas, vem em terceiro lugar,
praticamente todas em conflitos com Barragens e Açudes, que envolvem o Governo
Federal e empresas nacionais e internacionais como a Mineradora Carpathian
Gold, Manabi S/A, Anglo American, Kinross Gold Corporetion, Ferrous Resource,
SAM, Sada Bioenergia. Rondônia vem a seguir, com o envolvimento de 23.312
famílias, em conflitos, em sua maioria, com a construção das Usinas de Jirau e
Santo Antônio.
Tipos de Conflitos de Água
Tipos de Conflitos de Água
__________________ - 05 – 06 – 07 – 08 – 09 – 10 –
11 – 12 – 13 – 14 – Total conflitos 05 à 14
Apropriação Particular – 07 – 09 – 07 – 05 – 13 – 09 – 02 – 00 – 07 – 23
- 86
Barragens e Açudes – 30 – 16 – 33 – 33 – 17 – 31 – 35 – 38 – 43 – 49 -
325
Uso e preservação – 33 – 20 – 47 – 08 - 16 – 47 – 32 – 37 – 51 – 55 - 346
Sem informação – 01 - 00 – 00 - 00 – 00 - 00 – 00 – 00 – 00 – 00 – 01
Total – 71 – 45 – 87 - 46 – 46 – 87
- 69 – 79 – 101 – 127 - 758
Pelo que se vê deste quadro, o maior número de conflitos no período de
dez anos são os provocados pelo Uso e Preservação da água (346), seguido de
perto pelo de barragens (325), e, com menor incidência, o de apropriação
particular (86).
Conflitos urbanos
Enquanto escrevemos essa análise, o cenário que se desenha cada vez mais
grave atinge as cidades. Milhões de cidadãos de São Paulo já estão numa labuta
diante da falta de água que atinge milhares de residências. E o mesmo já se
sente no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Já em abril de 2014, a previsão era
a de que 200 cidades do interior de São Paulo poderiam enfrentar racionamento,
sendo que a situação mais grave era a dos municípios da região de Campinas e
Piracicaba. Se somarmos, simplesmente, a população do Rio de Janeiro, São Paulo
e interior de São Paulo, teremos aí uma população de 37,8 milhões de
brasileiros urbanos, de alguma forma envolvidos nesses conflitos. Mas os
conflitos urbanos se estenderam, ainda, por Minas Gerais, principalmente no
vale do São Francisco e praticamente por toda região Sudeste, manifestando-se
de forma veemente em 2013, particularmente no Semiárido Brasileiro. A falta de
água em centros urbanos médios e grandes obrigou governos estaduais e federal a
fazerem obras rápidas para abastecer pessoas no seu uso cotidiano. Uma delas
foi a Adutora Pajeú, que já abastece sete cidades de Pernambuco, está projetada
para prover mais 14 do mesmo estado e outras oito cidades da Paraíba. O total
de pessoas beneficiadas é, até agora, de aproximadamente 177 mil.
Adutoras semelhantes a essa foram feitas em pleno sertão baiano, como a
que ligou a cidade de Irecê às águas do São Francisco, ou ainda, a de Guanambi,
com a mesma finalidade. Dessa forma, os governos federal e estaduais deram
razão aos lutadores do São Francisco quando esses defendiam que, ao invés de
obras monstruosas como os canais da Transposição, se aplicasse os recursos em
adutoras simples que levam a água diretamente para os sistemas de abastecimento
municipais, como já diagnosticara e propusera a Agência Nacional de Águas
(ANA).
Embora tantas vezes diagnosticado e previsto, o fenômeno urbano da
escassez da água surpreendeu as autoridades e a população. Agora, ou mudamos a
governança da água, ou seremos vítimas permanentes dos desgovernos. A principal
solução apresentada pelos neoliberais na questão da água era sua privatização,
com a consequente mercantilização e precificação desse bem comum. Em outros
lugares do mundo a solução já fracassara, como Paris e Cochabamba, na Bolívia.
Agora, o fracasso tornou-se brasileiro. A solução para a crise hídrica
instalada não está em tecnologias de ponta e novas obras. Elas só ajudarão na
superação do problema se uma ética anterior de respeito pelo ciclo das águas
for instaurada na governança hídrica brasileira.
Múltiplos cientistas afirmam constantemente que teremos que manter a
Amazônia em pé para que ela continue injetando rios aéreos na região sul e sudeste.
Se perdermos definitivamente o Cerrado – e vários estudiosos nos dizem que já o
perdemos -, então viveremos das águas de enxurrada das chuvas, já que nossos
aquíferos do Planalto Central, que fazem o armazenamento e a distribuição das
águas brasileiras, perderão definitivamente sua capacidade de regular a chamada
“vazão de base”, que alimenta nossos rios em tempos sem chuvas. Já dizia
Guimarães Rosa, “a água de boa qualidade é como a saúde e a liberdade, só tem
valor quando acaba”. (ecodebate)
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