sábado, 7 de março de 2015

Aquanel: água poluída para todos

As chuvas vieram abundantes em fevereiro. No Cantareira choveu 322 milímetros. A média histórica é de 199 milímetros, 61% a mais. Com tanta chuva, você deve imaginar que muita água chegou às represas. Não é verdade. Historicamente, quando chove 199 mm em fevereiro, chegam 65,4 m3 de água por segundo ao Cantareira. Neste fevereiro choveu mais (322 milímetros) e chegou menos água ao reservatório (36,55 m3 por segundo). Ou seja, somente 34% da água esperada chegou ao reservatório. Isso é parte do custo de esvaziar a reserva técnica (eufemismo para volume morto). Como previsto, vai ser difícil recuperar o Cantareira.
Com as represas dilapidadas em 2014, como vamos sobreviver durante o período de seca de 2015? Se em 2014 vivemos do volume morto, agora a salvação está nas obras emergenciais. As autoridades prometem que, se elas forem terminadas a tempo, escaparemos do temido racionamento com rodízio (o sem rodízio já faz parte do cotidiano e nem sequer se chama racionamento). Infelizmente, da mesma forma que esvaziar o volume morto terá custos no longo prazo, essas obras, que nada mais são do que a construção de um verdadeiro Aquanel em torno da cidade, têm o potencial de serem tão ou mais nefastas que a dilapidação dos volumes mortos.
O que é um Aquanel?
Conceitualmente, é similar ao Rodoanel. Antes da construção do Rodoanel, cada região da cidade recebia o tráfego de uma rodovia. Os caminhões que vinham de Campinas chegavam pela Rodovia dos Bandeirantes; os que vinham de Santos, chegavam pela Imigrantes, e assim por diante. Era extremamente difícil chegar pela Bandeirantes e sair pela Imigrantes. O Rodoanel, ao interligar as estradas por meio de um anel que passa por fora da cidade, permite essa conexão. No caso da água, a situação é parecida. A água da zona sul da cidade é suprida pelo Sistema do Guarapiranga, a da zona leste, pelo Alto Tietê, e a da zona norte, pelo Cantareira. Se o Cantareira seca, hoje é impossível suprir a zona norte com água de outro sistema. As diversas obras que estão sendo executadas a toque de caixa (como foram as que permitiram a retirada do volume morto) nada mais são do que tubulações, canais e sistemas de bombeamento que permitem a transferência de água entre os sistemas localizados no sul, oeste e norte da cidade. Tomadas como um todo, essas obras formam um Aquanel que transporta água da mesma maneira que um Rodoanel transporta caminhões.
O Aquanel se inicia na Represa do Guarapiranga (sudoeste de São Paulo), que já está ligada ao Rio Pinheiros. O Rio Pinheiros, desde que foi revertido há muitas décadas, está ligado à Represa Billings (sul de São Paulo). Uma das obras bombeará água da Billings para o Sistema Rio Grande (sudoeste de São Paulo). Um enorme tubo vai levar água do Sistema Rio Grande para o Alto Tietê (oeste de São Paulo). O segundo trecho vai ligar o Rio Paraíba (oeste de São Paulo) ao Sistema Cantareira (norte).
A primeira vista, o Aquanel parece uma ideia genial. Interligando todos os sistemas fica possível transportar água de um para o outro. Mas isso é metade da história. A simples interligação não aumenta a quantidade de água disponível, só torna a carência mais igualitária. Nos planos da Sabesp, a função do Aquanel vai além da simples redistribuição de água entre os sistemas.
Como o governador Geraldo Alckmin explicou sem explicar: “O trabalho vai ser em torno da Represa Billings, porque ela é maior que o Cantareira, tem 1,2 bilhão de metros cúbicos e está com mais de 50%da reserva. Então, pode ajudar o Guarapiranga e o Alto Tietê”. Explicando: as obras do Aquanel vão permitir que a água da Billings seja transferida para outros sistemas e, portanto, adicionada ao suprimento de água potável da cidade.
A Billings é realmente enorme. O problema é que faz quase meio século que grande parte dela foi transformada em um enorme esgoto a céu aberto. As águas poluídas do Rio Pinheiros são bombeadas para lá, suas margens estão tomadas por enormes bairros que despejam seu esgoto diretamente na represa. Com o novo Aquanel, essa água poluída vai ser transferida para os outros reservatórios (ainda limpos) que abastecem a cidade. Pelo novo Aquanel, fezes presentes no Rio Pinheiros podem ir para a Billings, de lá para o Sistema Rio Grande, atingir o Alto Tietê e a zona norte de São Paulo. Parte do Aquanel vai atravessar uma barragem construída no passado para evitar que a Poluição  da Billings chegasse ao Sistema Rio Grande. É a Poluição para todos.
A Sabesp e o governo garantem que a água será tratada antes de chegar ao consumidor, e isso é verdade. Mas, se executado como planejado, o Aquanel tem o potencial de redistribuir parte da Poluição da Billings por quase todos os sistemas de abastecimento de São Paulo. Assim, diluindo a sujeira da Billings por todo o sistema, o governo vai aumentar a quantidade total de água disponível. E essa água parcialmente poluída vai ser tratada e bebida por todos nós. O Aquanel tem o potencial de acabar se transformando em um verdadeiro pesadelo ecológico, semelhante à inversão do Rio Pinheiros décadas atrás.
O triste é que o Aquanel poderia ser bem feito. Bastaria exigir que toda água que sai da Billings pelo Aquanel seja tratada antes (e não depois) de ser transportada para outros sistemas de abastecimento. Mas, em tempos de vacas magras, pânico e potencial desgaste político, quem se importa em fazer o serviço bem feito? De minha parte, prefiro o rodízio 5 por 2 a ver sistemas ainda limpos contaminados por esgoto e produtos químicos. E, assim, passo a passo, vamos destruindo o planeta. (OESP)

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