As chuvas vieram abundantes em fevereiro. No Cantareira choveu
322 milímetros. A média histórica é de 199 milímetros, 61% a mais. Com tanta
chuva, você deve imaginar que muita água chegou às represas. Não é verdade.
Historicamente, quando chove 199 mm em fevereiro, chegam 65,4 m3 de
água por segundo ao Cantareira. Neste fevereiro choveu mais (322 milímetros) e
chegou menos água ao reservatório (36,55 m3 por segundo). Ou seja,
somente 34% da água esperada chegou ao reservatório. Isso é parte do custo de
esvaziar a reserva técnica (eufemismo para volume morto). Como previsto, vai
ser difícil recuperar o Cantareira.
Com as represas dilapidadas em 2014, como vamos sobreviver
durante o período de seca de 2015? Se em 2014 vivemos do volume morto, agora a
salvação está nas obras emergenciais. As autoridades prometem que, se elas
forem terminadas a tempo, escaparemos do temido racionamento com rodízio (o sem
rodízio já faz parte do cotidiano e nem sequer se chama racionamento).
Infelizmente, da mesma forma que esvaziar o volume morto terá custos no longo
prazo, essas obras, que nada mais são do que a construção de um verdadeiro
Aquanel em torno da cidade, têm o potencial de serem tão ou mais nefastas que a
dilapidação dos volumes mortos.
O que é um Aquanel?
Conceitualmente, é similar ao Rodoanel. Antes da construção do
Rodoanel, cada região da cidade recebia o tráfego de uma rodovia. Os caminhões
que vinham de Campinas chegavam pela Rodovia dos Bandeirantes; os que vinham de
Santos, chegavam pela Imigrantes, e assim por diante. Era extremamente difícil
chegar pela Bandeirantes e sair pela Imigrantes. O Rodoanel, ao interligar as
estradas por meio de um anel que passa por fora da cidade, permite essa
conexão. No caso da água, a situação é parecida. A água da zona sul da cidade é
suprida pelo Sistema do Guarapiranga, a da zona leste, pelo Alto Tietê, e a da
zona norte, pelo Cantareira. Se o Cantareira seca, hoje é impossível suprir a
zona norte com água de outro sistema. As diversas obras que estão sendo
executadas a toque de caixa (como foram as que permitiram a retirada do volume
morto) nada mais são do que tubulações, canais e sistemas de bombeamento que
permitem a transferência de água entre os sistemas localizados no sul, oeste e
norte da cidade. Tomadas como um todo, essas obras formam um Aquanel que
transporta água da mesma maneira que um Rodoanel transporta caminhões.
O Aquanel se inicia na Represa do Guarapiranga (sudoeste de São
Paulo), que já está ligada ao Rio Pinheiros. O Rio Pinheiros, desde que foi
revertido há muitas décadas, está ligado à Represa Billings (sul de São Paulo).
Uma das obras bombeará água da Billings para o Sistema Rio Grande (sudoeste de
São Paulo). Um enorme tubo vai levar água do Sistema Rio Grande para o Alto
Tietê (oeste de São Paulo). O segundo trecho vai ligar o Rio Paraíba (oeste de
São Paulo) ao Sistema Cantareira (norte).
A primeira vista, o Aquanel parece uma ideia genial.
Interligando todos os sistemas fica possível transportar água de um para o
outro. Mas isso é metade da história. A simples interligação não aumenta a
quantidade de água disponível, só torna a carência mais igualitária. Nos planos
da Sabesp, a função do Aquanel vai além da simples redistribuição de água entre
os sistemas.
Como o governador Geraldo Alckmin explicou sem explicar: “O
trabalho vai ser em torno da Represa Billings, porque ela é maior que o
Cantareira, tem 1,2 bilhão de metros cúbicos e está com mais de 50%da reserva.
Então, pode ajudar o Guarapiranga e o Alto Tietê”. Explicando: as obras do
Aquanel vão permitir que a água da Billings seja transferida para outros
sistemas e, portanto, adicionada ao suprimento de água potável da cidade.
A Billings é realmente enorme. O problema é que faz quase meio
século que grande parte dela foi transformada em um enorme esgoto a céu aberto.
As águas poluídas do Rio Pinheiros são bombeadas para lá, suas margens estão
tomadas por enormes bairros que despejam seu esgoto diretamente na represa. Com
o novo Aquanel, essa água poluída vai ser transferida para os outros
reservatórios (ainda limpos) que abastecem a cidade. Pelo novo Aquanel, fezes
presentes no Rio Pinheiros podem ir para a Billings, de lá para o Sistema Rio
Grande, atingir o Alto Tietê e a zona norte de São Paulo. Parte do Aquanel vai
atravessar uma barragem construída no passado para evitar que a Poluição da Billings chegasse ao Sistema Rio Grande. É
a Poluição para todos.
A Sabesp e o governo garantem que a água será tratada antes de
chegar ao consumidor, e isso é verdade. Mas, se executado como planejado, o
Aquanel tem o potencial de redistribuir parte da Poluição da Billings por quase
todos os sistemas de abastecimento de São Paulo. Assim, diluindo a sujeira da
Billings por todo o sistema, o governo vai aumentar a quantidade total de água
disponível. E essa água parcialmente poluída vai ser tratada e bebida por todos
nós. O Aquanel tem o potencial de acabar se transformando em um verdadeiro
pesadelo ecológico, semelhante à inversão do Rio Pinheiros décadas atrás.
O triste é que o Aquanel poderia ser bem feito. Bastaria exigir
que toda água que sai da Billings pelo Aquanel seja tratada antes (e não
depois) de ser transportada para outros sistemas de abastecimento. Mas, em
tempos de vacas magras, pânico e potencial desgaste político, quem se importa
em fazer o serviço bem feito? De minha parte, prefiro o rodízio 5 por 2 a ver
sistemas ainda limpos contaminados por esgoto e produtos químicos. E, assim,
passo a passo, vamos destruindo o planeta. (OESP)
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