A
contaminação das águas e a disseminação de doenças de proliferação hídrica
“Ainda
coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no
ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso
antes de lançar aos rios esses dejetos”, comenta o virologista.
“As
causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um
processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na
segunda metade do século XX”, diz Fernando Spilki à IHU On-Line, em entrevista
concedida por e-mail.
Segundo
o pesquisador, a expansão urbana foi feita sem planejamento e os corpos d’água
foram “considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos
domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a
‘diluição é a solução’, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais
contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses
mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes
cidades”, pontua.
Na
entrevista a seguir, Spilki comenta que além da falta de tratamento de esgoto,
as águas contaminadas são um potencial para o desenvolvimento de uma série de
vírus causadores de doenças. “Há uma gama de doenças de veiculação hídrica
(especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas
ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda
não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto
em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma
situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais
idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento”.
Fernando
Spilki é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em Ciências Veterinárias pela UFRGS, na
área de Virologia Animal, e doutorado em Genética e Biologia Molecular, área de
Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente leciona na
Universidade Feevale.
Confira
a entrevista
IHU
On-Line –
Quais são as causas da contaminação das águas brasileiras? A água de todas as
regiões brasileiras está contaminada?
Fernando
Spilki –
As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um
processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na
segunda metade do século XX. Essa expansão se deu de forma fragmentada, sem
planejamento adequado. Justamente por isso, pela falta de planejamento, e por
uma óptica que já podia ser considerada anacrônica mesmo para a época, os
corpos d’água foram em muitos momentos considerados meros receptores e canais
de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda
é) da máxima de que a “diluição é a solução”, quanto maior ou mais caudaloso um
corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente
desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas
grandes cidades.
Outros
determinantes históricos importantes foram a concepção dos militares de que
governo e desenvolvimento estavam ligados a grandes obras de distribuição de
água potável, sem considerar a necessária expansão na outra via de coleta e
tratamento de esgoto e o foco do crescimento baseado na indústria e na
revolução verde, em muitos casos a qualquer custo do ponto de vista ambiental.
De alguns destes males não estamos livres até hoje, mesmo passadas décadas do
processo de redemocratização. Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto
doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais
grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos.
Ainda que esforços tenham sido feitos pelas indústrias, muito em virtude da
evolução dos processos de fiscalização, em todo o Brasil ainda são notificados
em grande número problemas relacionados ao descarte inadequado de efluentes industriais.
E ainda há a questão dos dejetos de produção animal e agrícola, que não são de
modo algum negligenciáveis.
Quanto
à segunda questão, os dados da Agência Nacional de Águas - ANA e de inúmeros
pesquisadores mostram que lamentavelmente em todas as regiões pode-se sim
observar problemas quanto à qualidade da água. Alguns problemas como a
eutrofização (crescimento de algas que afeta a viabilidade dos corpos hídricos
em sustentar a vida), a contaminação por diferentes microrganismos e poluentes
químicos podem ser notadas em diversas regiões, praticamente onde quer que se
busque.
IHU
On-Line – O
que a análise microbiológica da Baía de Guanabara revela sobre a qualidade da
água da Baía?
Fernando
Spilki–
Essa análise que conduzimos junto à agência de notícias Associated Press não
revela algo desconhecido, os problemas de qualidade da água no contexto da Baía
da Guanabara são descritos de longa data, mas infelizmente parece que sempre
temos de avisar sobre questões que vão sendo deixadas de lado. A própria presença
de vírus causadores de doenças de veiculação hídrica na Lagoa Rodrigo de
Freitas e nas praias mais frequentadas tem antecedentes. A Fiocruz produziu,
num passado recente, excelentes estudos sobre o mesmo tema. Aquela situação
nada mais é que o resultado dessas questões de um processo de crescimento dos
grandes centros urbanos não acoplados a um plano de desenvolvimento que
contemplasse a questão do esgoto doméstico. São hoje em torno de 13 milhões de
pessoas que vivem naquele entorno, com um sistema de tratamento de esgoto muito
aquém do ideal.
Não
é uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, mas é
emblemático, pois trata-se de um cartão postal maravilhoso do país, com um povo
alegre e hospitaleiro como poucos, daí o impacto que teve esse estudo, claro
que associado à questão olímpica.
O
que esperamos é que toda essa polêmica gerada tenha reflexos para depois e além
da Olímpiada: que se repense o manejo do esgoto doméstico naquele ambiente
e que seja de fato beneficiada a população residente no Rio de Janeiro. E
tomara que toda essa discussão sirva também de alerta no resto do Brasil. Outra
questão relevante é de trazer à tona a questão de parâmetros e medidas mais
adequados ao século XXI para monitoramento da segurança e qualidade da água.
“Esses
patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças
respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves”
IHU
On-Line –
Quais são as principais doenças associadas à água contaminada e como essa
questão é vista em termos de saúde pública?
Fernando
Spilki –
Quando pensamos em doenças de veiculação hídrica, o foco está principalmente
relacionado às gastroenterites (vômito e diarreia). Essas doenças são uma das
principais causas de atendimento de crianças nos serviços de saúde dos países
em desenvolvimento, são especialmente importantes nessa faixa etária, bem como
em idosos e imunossuprimidos e, para piorar o quadro, muitas vezes os adultos
saudáveis transmitem esses agentes aos corpos d’água pelos dejetos sem
apresentar qualquer sintoma, o que permite a perpetuação desse ciclo onde o
sistema de saneamento básico for ineficiente. Nesse âmbito, diferentes
microrganismos estão envolvidos com diarreia, mas os vírus sem dúvida têm
grande importância, em parte por que não são monitorados e os atuais
indicadores de qualidade microbiológica da água (coliformes fecais) não são
capazes de apontar sua presença. Um copo d’água livre de coliformes fecais pode
conter vírus, ou mesmo outras bactérias e protozoários.
Além
das gastroenterites, esses patógenos de veiculação hídrica podem causar
conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais
graves.
IHU
On-Line – O
que são os vírus entéricos e como se dá a proliferação e contaminação deles
pela água?
Fernando
Spilki –
São vírus com uma característica estrutural peculiar (ausência de envelope
lipídico) que os torna muito resistentes no ambiente, desse modo evoluíram para
essa via de transmissão fecal-oral e por se multiplicarem nas células do trato
digestivo, chamados entéricos.
Um
indivíduo sadio ou doente pode excretar bilhões de partículas desses vírus em
uma defecação. Sem o devido tratamento do esgoto, mesmo que uma parte desses
vírus seja destruída no caminho até os corpos hídricos, sobraram milhões de
partículas virais capazes de contaminar a água e causar infecções em outros
indivíduos. Imagine isso replicado para milhões de pessoas em uma bacia
hidrográfica.
IHU
On-Line – Em
que consiste sua pesquisa sobre a detecção de vírus da Hepatite E em amostras
de água? Quais são as principais constatações da pesquisa até o momento?
Fernando
Spilki –
A hepatite E é causada por um desses vírus entéricos. É uma doença muito
especial, pois expressa bem algo contemporâneo em saúde: a necessidade de
entender o processo de saúde como algo único, não podemos mais dissociar em
muitos casos a saúde humana, animal e ambiental. Esse vírus da hepatite E causa
infecções assintomáticas em suínos, pode ser transmitidos aos seres humanos
pela água contaminada pelos dejetos desses animais ou mesmo alimentos de origem
suína não devidamente cozidos. Em pessoas pode causar desde infecções
subclínicas (sem nenhum sinal visível) até hepatites graves. É uma doença
emergente em nível mundial. Na nossa Bacia dos Sinos ainda não detectamos o
vírus na água, mas em outras regiões do Rio Grande do Sul, onde há maior
presença de atividade suinícola, detectamos o vírus de forma muito frequente em
amostras de dejetos suínos e de efluentes de suinocultura.
IHU
On-Line –
Uma das suas pesquisas investigou quais doenças foram possivelmente
transmitidas pela água na região da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Quais
são as conclusões da pesquisa? Que doenças estão associadas à contaminação da
água do Rio dos Sinos?
Fernando
Spilki –
Fizemos um enorme esforço de pesquisa em conjunto com a CORSAN, onde
monitoramos durante 24 meses para vírus e centenas de outros parâmetros a água
captada pela companhia no Sinos e afluentes para tratamento. Ao mesmo tempo
acompanhamos os atendimentos notificados pelos órgãos de saúde para doenças de
veiculação hídrica na nossa região. Pudemos observar que há um forte impacto da
falta de tratamento adequado do esgoto na qualidade da água nessa bacia
hidrográfica e que as doenças de veiculação hídrica sofrem variação ao longo do
tempo conforme o ciclo hidrológico (mais ou menos chuva, por exemplo), o que já
foi observado em outros locais.
IHU
On-Line –
Quais são as principais dificuldades ou problemas dos sistemas de tratamento
biológico de esgoto doméstico e água para consumo no sentido de tratar a água e
torná-la potável e livre de vírus, por exemplo?
Fernando
Spilki –
Em primeiro lugar, antes de discutirmos a eficiência dos processos, devemos
elevar de forma expressiva os índices de tratamento de esgoto instalados. Tomemos
em conta que na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com
uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que
é produzido. Em um segundo momento, deveremos sim lidar com a adoção de
tecnologias que levem a uma efetiva degradação de microrganismos mais
resistentes, tais como vírus e protozoários, pois as estações de tratamento de
água e esgoto convencionais usualmente não dão conta desta tarefa. Todo o
sistema atual está baseado na resistência dos coliformes fecais aos processos
de desinfecção, que infelizmente é muito mais baixa que a desses patógenos
emergentes. Desse modo, o que é eficaz para os coliformes pode ser inócuo para
esses outros agentes. Daí a necessidade de desenvolvermos novas soluções para
degradação e remoção desses agentes em esgoto e água, sem perder a noção de que
há a necessidade de essas novas tecnologias terem um custo baixo e serem de
adoção fácil.
“Na
bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento
de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido”
IHU
On-Line –
Por outro lado, quais são as dificuldades do sistema de saúde brasileiro no que
se refere ao tratamento de doenças causadas pela água contaminada?
Fernando
Spilki –
Isso é de fato preocupante. Há todo um sistema de trabalho baseado na ideia de
uma nova configuração da população, de seu envelhecimento e do aumento da
frequência de doenças crônicas e um maior preparo dos sistemas de ensino,
pesquisa e mesmo de atendimento para lidar com essas situações. Isso está sem
dúvida correto, mas não podemos esquecer que não vencemos no Brasil a etapa de
controlar e tratar as doenças transmissíveis. Há uma gama de doenças de
veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças
indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre
Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém
chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o
futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de
uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em
desenvolvimento.
IHU
On-Line – Os
padrões estipulados para a qualidade da água, pela resolução CONAMA 274 de 29
de novembro de 2000, são adequados ou precisariam ser revistos?
Fernando
Spilki –
Esta e outras portarias e regulamentações, incluindo a Portaria MS n° 2914 de
2011, que versa sobre a água potável, ainda foram formuladas sob uma óptica de
restrições técnicas e orçamentárias para a adoção de marcadores mais fidedignos
de segurança para a saúde dos consumidores e do ambiente. Essas normativas
estão mais adequadas às necessidades e capacidades instaladas de órgãos
reguladores e das próprias concessionárias de produção de água e tratamento de
esgoto. Não só no caso de vírus, mas também para outros microrganismos,
poluentes orgânicos emergentes e outros parâmetros notavelmente importantes
hoje, a adoção foi em muitos casos negligenciada, seja em virtude de custos,
dificuldade na implantação de protocolos ou mesmo inabilidade ou morosidade dos
sistemas de vigilância e produção em renovar suas abordagens.
Considero
grande parte desse pensamento anacrônico; grande parte dessas metodologias
especialmente de monitoramento teve custo muito reduzido nessa última década e
há hoje muito mais pessoal treinado para execução dessas análises. Há sim que
haver uma revisão constante desses parâmetros. Da parte da investigação
científica, uma preocupação que devemos ter é buscar inovação no sentido de
desenvolver protocolos mais simples, robustos e baratos, seja para
monitoramento ou tratamento dessas novas ameaças presentes na água. Só assim
lograremos um conjunto de parâmetros de qualidade da produção de água e
tratamento de esgoto que esteja de fato focado nas pessoas e nos ecossistemas e
não apenas nas limitações técnicas ou orçamentárias dos entes envolvidos.
(ecodebate)
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