O
desenvolvimento sustentável foi mais divulgado após a Rio-92. Nesse encontro
foi criado o Dia Mundial da Água, celebrado anualmente. Em 2001, pela OMS,
tivemos “Água para Saúde”, que afirma que ambos são “bens públicos da
humanidade”. Em 2015, pelo PNUD, “Água e Desenvolvimento Sustentável” mostra
que é uma constante associar água, saúde e desenvolvimento e comparar suas
propostas aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Consideramos que
os rumos globais, na atualidade, colocam em debate a propriedade privada no
século XXI.
Desenvolvimento sustentável
A
IDEIA de desenvolvimento sustentável é associada à reunião realizada no Rio de
Janeiro em 1992, a “Cúpula da Terra”, ou Eco-92, ou ainda Rio 92. Nela foi
aprovado o compromisso denominado Agenda 21 que considera “desenvolvimento
sustentável” o modo de progresso do mundo (global) em que melhorem (com
equidade) as condições de vida da atual geração, sem prejuízo das gerações
vindouras. Embora seja muito mais ampla, essa ideia é com muita frequência
associada a questões ambientais que incluem o aquecimento global associado à
emissão de gases resultantes da degradação de combustíveis fósseis. Numa
perspectiva mais abrangente, associa-se com os Objetivos do Milênio e contempla
três eixos: ambiental, econômico e social. Numa óbvia intersecção entre eles,
hábitos contemporâneos são responsabilizados pela degradação do ambiente urbano
simbolizado na falta de saneamento básico: contaminação do ar, da água e do
solo por dejetos humanos e resíduos industriais. Há uma tendência recente de
estender esse compromisso a outros setores influenciados fortemente pelo
comportamento dos indivíduos que compõem a população: mobilidade urbana, por
exemplo. Um debate que ganha força na atualidade é a questão da predominância
do mercado transformando em mercadoria o que já foi tido como “bens públicos”.
Voltaremos a esse tema.
Tendo
sido presidente da Rio 92, Gro Harlem Brundtland, médica e política socialista,
primeira ministra da Noruega, teve seu nome associado à ideia de
desenvolvimento sustentável. Por essa razão foi incluída na lista dos (200)
maiores economistas da Enciclopedia y Biblioteca Virtual de las Ciencias
Sociales, Económicas y Jurídicas. Juntou-se a nomes ilustres como Adam Smith,
Karl Marx, Schumpeter, Keynes e outros. A lista tem hoje mais de mil nomes.
Dia Mundial da Água
Na
Rio 92 é proposto um Dia Mundial da Água, sempre em 22 de março. O lema e a(s)
entidade(s) multipolar(es) responsáveis variam anualmente, mas sempre se
promovem atividades e produz-se um Relatório. Algumas atividades propostas para
o público são notáveis pelo inusitado: por exemplo, “não usar as torneiras da
casa durante todo o dia” (no relatório de 1993).
O
lema de 2015, de responsabilidade do PNUD, foi “Água e desenvolvimento
sustentável”, uma oportunidade importante de consolidar as ênfases dadas nos
“Dias da Água” dos anos anteriores. Nesses, água foi associada a energia,
segurança alimentar, desafios urbanos, limpeza e mundo saudável, saneamento,
desastres (eventos extremos), mulheres, escassez hídrica, entre outros.
Em
2015 o PNUD deu ênfase a um aspecto específico da água fresca: “Water Supply
and Sanitation”. Deu maior importância a estatísticas assombrosas:
Globalmente,
quase 1 bilhão de pessoas não têm água potável; 2,4 bilhões de pessoas não têm
acesso a saneamento; 1,2 bilhão carece de quaisquer instalações e serviços de
saneamento. A cada dia, 5.000 crianças em média morrem devido a doenças
relacionadas com água e saneamento, muitas facilmente evitáveis.
Em
2000, através dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), a comunidade
internacional comprometeu-se a reduzir, até 2015, pela metade a proporção de
pessoas sem acesso a água potável e saneamento básico. No geral, o mundo está a
caminho de cumprir o ODM da água, mas há grandes lacunas em muitas regiões e
países, particularmente na África Subsaariana. Com as tendências atuais, o
mundo não atingirá a meta de saneamento por um débito de 1 bilhão de pessoas.
Atingir
as metas de água e saneamento dos ODM é mais do que uma questão de saúde e
dignidade. Há evidência convincente de que alcançar as metas de água e
saneamento promoveria um grande salto adiante no desenvolvimento humano:
Desenvolvimento
Humano está mais ligado ao acesso à água e ao saneamento do que outros motores
de desenvolvimento que o PNUD examinou, incluindo gastos com a saúde e/ou
educação e o acesso a serviços de energia.
A
crise da água e do saneamento afeta esmagadoramente os pobres. A
disponibilidade de água é certamente uma preocupação para alguns países. Mas a
crise global de água e saneamento é principalmente enraizado na pobreza, no
poder e na desigualdade, não na disponibilidade física. É, antes de tudo, uma
crise de governança e reforma, assim, a reforma da governança deve ser um pilar
fundamental de qualquer abordagem estratégica para enfrentar a crise.
Surpreende
a maneira e os exemplos que o PNUD apresenta para justificar que “Água é
saúde”:
Água
é saúde: Lavar as mãos pode salvar sua vida;
A
água é natureza: Ecossistemas estão no cerne do ciclo global da água;
A
água é urbanização: Toda semana, um milhão de pessoas se mudam para as cidades;
A
água é indústria: Mais água é usada para a fabricação de um carro do que para
preencher uma piscina;
A
água é energia: Água e energia são amigos inseparáveis;
A
água é alimento: Produzir dois bifes (bistecas) consome 15.000 litros de água;
A
água é a igualdade: A cada dia as mulheres gastam milhões de horas carregando
água
A
referência às bistecas (two steaks) faz lembrar
ideia importante em análise pelos especialistas sobre a “pegada da água” (footsteps). Apesar de dar ênfase às condições de pobreza, o
relatório assinala, como desigualdade, apenas a de gênero.
Água e desenvolvimento
Não
foi apenas o PNUD, neste ano de 2015, responsável pela celebração do Dia
Mundial da Água, que deu ênfase à relação com o desenvolvimento. Em documento
recente, de uma série dedicada a “Desenvolvimento Sustentável e Saúde”, a
representação em Brasília da Organização Pan-Americana da Saúde já encaminhava
o debate para elaborar indicadores que pudessem identificar desigualdades (no
Brasil).
Recupera
documento anterior à Rio 92, produzido pela e chamado “Brundtland Report”, que
identifica a necessidade de mensurar os avanços no desenvolvimento sustentável
em três dimensões: social, ambiental e econômica. O documento da emprega
engenhosa proposta metodológica que se inicia pela inclusão da saúde na
interseção dessas três dimensões, baseada no documento final da Reunião Rio+20
(2012): “saúde é uma condição prévia, um resultado e um indicador das três
dimensões do desenvolvimento sustentável”. Associa esses quatro campos a
Objetivos Do Milênio (ODM) e escolhe um indicador (I) para traduzir cada um
deles:
Dimensão
social: ODM (universalizar a educação primária); I (taxa de analfabetismo)
Dimensão
econômica: ODM (erradicar a extrema pobreza e a fome); I (proporção de pobres)
Dimensão
ambiental: ODM (garantir a sustentabilidade ambiental); I (taxa de cobertura de
água encanada)
Saúde
(interseção): ODM (reduzir a mortalidade na infância): I (taxa de mortalidade
infantil)
A
partir dessas escolhas, apresenta as tendências desses indicadores no Brasil,
de 1991 a 2010, por meio de engenhoso diagrama triangular que alberga os
valores em relação ao ideal, traduzidos pelos quartis Q1 e Q3. A distância
interquartil dá uma ideia da desigualdade.
Considerando
a maneira como os autores escolheram os indicadores, fica reforçada a ideia da
estreita e relevante associação da saúde com o acesso à água encanada como
alicerces do desenvolvimento sustentável.
Os rumos globais
Propriedade privada no século XXI
Analisar
os rumos do capitalismo, ou da “hegemonia do mercado”, neste século XXI remete
ao que se entende por esquerda e direita na atualidade. O polêmico filósofo
considera que a esquerda “necessita de novo paradigma, em vista do colapso do
comunismo (real) e do abandono pelos socialistas democráticos da ideia de
eliminar a propriedade privada dos meios de produção”. Há considerável volume
de críticas à sua proposta de uma esquerda que admita que é inevitável o
caminho da humanidade para uma cordial cooperação. Haveria a seleção natural
dos mais solidários, uma espécie de “darwinismo social”.
Importante
contribuição recente sobre as tendências do fim do século XX nos apresenta uma
visão muito menos otimista. Referindo-se à realidade dos Estados Unidos, por
comparação aos Estados europeus de “bem-estar social”, defende que essa
construção histórica está associada a circunstâncias que dificilmente se
repetirão. Em particular identifica “grupos de interesse” e sua atuação
desenfreada que os transforma de cidadãos em consumidores. A essa ideia de
dualidade cidadão-consumidor assinala que as ciências sociais americanas a
denominam hiphenization. Essa
sociedade, repleta de grupos “com hífen”, não é novidade. Há décadas, foi
identificada pelo geógrafo brasileiro em sua inteligente distinção entre
usuário (aceita tudo sem discutir), consumidor (briga por interesse pessoal) e
cidadão que “é um ser multidimensional… na procura de um sentido para a vida; o
que dele faz o indivíduo em busca do futuro, a partir de uma concepção de
mundo”. Na área da saúde coletiva, a Epidemiologia é tratada como “ciência da
saúde do ser social” pelo epistemólogo argentino, num texto instigante que a
associa com a geografia num texto em que homenageia Milton Santos. Nada mais
justo do que apontar para essa tendência de analisar os rumos do bem-estar da
humanidade do que recorrer a uma epidemiologia “Miltoniana”. Claro está que a
“crise hídrica”, objeto deste trabalho, merece uma abordagem com essa feição.
Os “novos donos do mundo” e o “elogio ao predador”
A
crise do mercado, no Brasil, está claramente expressa na atuação do ministério
público e do judiciário em questões de grande apelo na atualidade. São
“operações” designadas por nomes que passam a pertencer ao jargão popular e
acabam por encaminhar à prisão poderosos empresários e políticos, nunca antes
atingidos por punições dessa natureza no Brasil.
Lamentavelmente,
o mesmo passa no mundo, dito desenvolvido, a julgar por impressionante dossier “Les nouveaux maîtres du monde”, publicado pelo Le Monde
Diplomatiqueem maio de 1995. São
seis artigos extremamente contundentes sobre a maneira de proceder dos grandes
empreendedores, os “magnatas” ou “novos donos do mundo”. Estivesse publicado em
português pela imprensa brasileira no mês de junho de 2015, pensaríamos que se
referisse à “Erga omnes“, 14ª fase da
“Operação Lava Jato”.
A
chamada de capa do Le Monde, “Eloge du
prédateur”, de autoria de, relata o diálogo entre um magnata inglês com o
âncora de um conceituado programa de TV. Vamos reproduzir, em tradução livre (o
original em francês está no Anexo 3):
Em 2
de abril, o canal Arte TV dedicou uma noite à especulação financeira. O
programa incluiu uma entrevista, conduzida por Anthony Sampson, com o
empresário britânico James Goldsmith, que expôs seus pontos de vista de forma
nua e crua sobre o assunto:
James
Goldsmith – Eu acredito em mudança e que, sem mudança, chega a decadência. Pode
ser uma coincidência, mas empresas como Bank of America e General Motors, todas
as multinacionais norte-americanas, para não mencionar as empresas britânicas
ou francesas que esclerosaram, são cada vez menos competitivas, porque não se
atreveram a evoluir. Se a escolha é entre uma mudança brutal e a continuidade
tranquila, a última é a solução mais desastrosa. É como dizer que é muito
difícil se levantar de manhã, é melhor ficar na cama Sair para a rua é
perigoso, mas não temos escolha.
Anthony
Sampson – Mas, se todos tivessem um espírito empreendedor como o seu, seria
impossível viver neste mundo.
James
Goldsmith – Não estou de acordo, definitivamente. É como dizer que, na
natureza, a vida é impossível por causa de predadores. Isso me faz pensar nas
pessoas bem-intencionadas que criaram uma reserva para proteger as presas dos
grandes felinos. Os animais terminam por enfraquecer e morrem, porque os
predadores são um estímulo necessário. É o que acontece no mundo dos negócios se
eliminamos os predadores para criar burocracias confortáveis e monopólios. Sem
os predadores, a indústria morre, as empresas
periclitam, o país definha e as pessoas sofrem muito mais do que se
estivessem submetidas à estimulação e à concorrência.
Resta-nos,
apenas, lamentar que para evitar que a indústria venha a morrer, prejudicando o
desenvolvimento, os predadores sejam “um estímulo necessário”.
Água e saúde, direitos humanos: são bens públicos da
humanidade
Quando
se pensa na água e na saúde como bens públicos da humanidade, e na ideia do
desenvolvimento sustentável, o Relatório do Dia Mundial da Água de 2001, de
responsabilidade da então Diretora da WHO, Gro H. Bruntland, oferece a mensagem
principal em instigante prefácio associando “água, saúde e desenvolvimento”:
Água
para a Saúde – Tomando conta, Coordenado pela Organização Mundial de Saúde
(OMS).
A
mensagem para o Dia da Água: esforços concretos são necessários para fornecer
água potável e melhorar a saúde, bem como aumentar em todo o mundo a conscientização
dos problemas e das soluções; 22 de março é uma ocasião única para lembrar a
todos que as soluções são possíveis; ajude a transformar palavras em ação e
compromisso político.
Abastecimento
de água potável e saneamento adequado para proteger a saúde estão entre os
direitos humanos básicos. Garantindo a sua disponibilidade contribuiria
imensamente para a saúde e produtividade para o desenvolvimento. “Business as
usual” não é mais uma opção. Nós não temos tempo suficiente para esperar por
grandes investimentos em infraestrutura para fornecer serviços básicos a todos
os que deles necessitam. Várias intervenções simples estão disponíveis, tais
como a melhoria da qualidade da água na casa, bem como melhorar a educação de
higiene a nível familiar. As pessoas pobres podem tomar conta de seus próprios
destinos e melhorar suas vidas através da aplicação de algumas destas medidas.
Mas eles precisam saber o que funciona e como tais intervenções podem ser
exploradas.
Destacamos
dois pontos essenciais sobre a disponibilidade de água (limpa): (1) é
indispensável para a saúde e a produtividade, bases do desenvolvimento; (2) não
é uma opção ser tratada como um “negócio qualquer”. Essa é a mais evidente
contradição atual entre direitos e mercadorias, ou cidadãos e consumidores, já
mencionados acima. De resto, Tony Judt menciona como exemplo: hoje, quando
pedimos um copo de água num bar, nos perguntam “com gás ou sem gás”?.
A hiphenization é traduzida, na atual “crise hídrica” que nos assola,
pelo surgimento de intensa propaganda de empresas de perfuração de poços
artesianos. Há um óbvio interesse de setores industriais e agrícolas que têm na
água um insumo essencial ao processo produtivo. Mas faz sucesso também em
comunidades fechadas (condomínios habitacionais) que se mobilizam para
encontrar solução privada para o abastecimento. Água, direito coletivo, passa a
ser tratada como mercadoria. Não espanta saber que a maioria dos municípios já
terceirizou o abastecimento para empresas que abrem seu capital em bolsas de valores,
no Brasil e no exterior. Os especialistas consideram digno de análise o
processo em curso na vizinha Bolívia, onde consta a existência de um processo
de “desprivatização” das companhias de abastecimento de água.
A
alternativa aos grupos de interesse (consumidores) poderia ser uma ação
política voltada para a garantia de direitos da cidadania. As “manifestações de
rua”, convocadas pelas redes sociais raramente produzem efeitos concretos
perceptíveis. Mas, podem ser substituídas por manifestações programadas por
agremiações formalmente constituídas. Em São Paulo, foi o caso de ato público,
chamado por um Coletivo Luta pela Água (Figura 1).
O noticiário assinala: “Cansados da falta de transparência da Sabesp,
manifestantes reivindicam comitê de crise com participação popular para
planejar o enfrentamento da seca”. Um comitê de crise aponta para uma realidade
da política atual: é preciso garantir a governança com a inclusão de todas as
correntes relevantes e que essas correntes prestem contas a seus segmentos (accountability). Já mencionamos a questão da governança ao analisar
o relatório do PNUD 2015.
Figura 1. Propaganda num bloco de cimento
ao lado da Estação Vila Mariana do Metrô.
Esse
Coletivo Luta pela Água está associado à Fundação Perseu Abramo, instituída
pelo Partido dos Trabalhadores em 1996. Isso nos permite uma reflexão
derradeira. Diante das visões otimista (Peter Singer) ou pessimista (Tony Judt)
a respeito do século XXI: o que representam organismos (fundações, coletivos e
similares) ligados a partidos políticos?
A
meu juízo, são o caminho necessário para conduzir o processo com o sentido de
transformar consumidores em cidadãos, conforme preconizado por Milton Santos.
(ecodebate)
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