A perenidade do rio São
Francisco cada vez mais ameaçada
A
cada dia aumentam as evidências de que a sangria do rio São Francisco progride
a passos largos. As estatísticas oficiais divulgadas pela Companhia
Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) apontam que Sobradinho acumula apenas 3%
de sua capacidade, o menor volume da sua história. O que se fala é que para
tirar o rio deste estado agonizante, é preciso chover. A dependência das chuvas
por si só já indica que o rio mais importante do Semiárido está perdendo sua
característica perene e se igualando aos demais rios da região, que secam durante
o verão.
“O
rio São Francisco era um rio perene e de alguma forma ainda é um rio perene,
mas cada vez mais fragilizado”, comenta Roberto Malvezzi, Gogó, colaborador da
ASA e da Articulação Popular Semiárido Vivo e uma das referências para falar
sobre o rio no Brasil. Na entrevista concedida à Asacom essa semana, com sua
voz calma e segura, Gogó criticou severamente o modelo de desenvolvimento
adotado pelo governo brasileiro, cuja “concepção não olha a realidade, não faz
a equação da sustentabilidade e está realmente levando o São Francisco a um
processo de destruição”. Confira!
Asacom
– Que leitura você faz da atual situação do rio São Francisco?
Gogó
– A leitura que a gente tem da realidade atual do São Francisco, na verdade, é
uma leitura histórica, de um processo de degradação do São Francisco, que
começa com os vapores ainda no século 19, com o desmatamento das matas ciliares
para abastecer os vapores com lenha, depois toda entrada do capital no São
Francisco que começa em 1945 com a criação da Chesf, depois com a barragem de
Paulo Afonso, depois com as Três Marias e a decisiva pra marcar a situação
atual é, sobretudo, a construção da barragem de Sobradinho de 1975 a 1979. Aí o
rio foi dividido no meio e junto com a barragem de Sobradinho veio todo o
processo de irrigação no Vale do São Francisco.
Então,
de uns 30 anos pra cá, a decadência do São Francisco [se dá] por conta deste
modelo de desenvolvimento que puxa muita água do rio, mas ao mesmo tempo, não
cuida de seus mananciais, não cuida dos seus aquíferos, não cuida das suas
matas ciliares, não cuida de seus afluentes, e sobretudo, a depredação do
Cerrado brasileiro, que é a grande caixa d´água do Brasil que abastece o São
Francisco. O rio tem perdido força com muita velocidade, muita rapidez,
chegando a essa situação que estamos vendo hoje com o lago de Sobradinho com 3%
de sua capacidade, o menor nível da sua história.
É um
drama real. Os projetos de irrigação de Petrolina e Juazeiro estão ameaçados e
muitas comunidades e cidades ao longo do São Francisco estão com o
abastecimento humano comprometidos e não temos nenhuma perspectiva de que isso
vai se resolver, a não ser a expectativa de que chova, o que não é certo, não é
garantido.
Asacom
– E se chover, não resolve a situação, só faz amenizar…
Gogó
– Ultimamente estamos vivendo uma situação no rio São Francisco praticamente
igual aos demais rios do Semiárido brasileiro, que são rios intermitentes. Os
nossos rios do Semiárido não são perenes. Eles só correm nos tempos de chuvas
com a água da enxurrada. Já que aqui no Semiárido, nós que somos da ASA temos
ciência do com o subsolo cristalino, a água não penetra, ela escorre
rapidamente ou para em algum reservatório de superfície ou vai embora por
evaporação ou por escoamento.
O
rio São Francisco era um rio perene e de alguma forma ainda é um rio perene,
mas cada vez mais fragilizado. Quando a gente entra nesta situação recessiva
das chuvas permanentemente, é sinal que aqueles mecanismos naturais dos
aquíferos e dos afluentes que alimentavam o São Francisco, mesmo em tempo de
seca, já estão comprometidos.
Além
do mais, aumentou o uso do rio São Francisco intensamente, sobretudo para a
irrigação. Realmente, a chuva agora passa a ser um fator de amenização, mas ela
não resolve evidentemente um problema fundamental que é degradação da bacia e
de alimentação da calha central pelos afluentes e pelos aquíferos que
abasteciam o São Francisco.
Asacom
– E mesmo numa situação como essa, os projetos de irrigação continuam
avançando?
Gogó
– Como o modelo tem uma vitrine a ser mostrada, quem vem aqui em
Juazeiro-Petrolina é levado para as áreas de irrigação, pro cultivo da manga,
da uva, o vinho, como tem uma beleza nisso, de abundância e de riqueza,
inclusive, foram cidades do Brasil que mais geraram empregos no passado. Só que
o modelo não é universalizável porque já num estudo no governo de Fernando
Henrique, se dizia que o Sertão tem apenas 5% de solos aptos para a irrigação e
nós temos apenas água para 2%.
Então
a ideia de expandir esse modelo como está proposto em vários projetos, como tem
o projeto do Canal do Sertão, aqui pro lado de Petrolina – Pernambuco, indo pra
Ouricuri, como tem a expansão no baixio de Irecê, como tem as proposta para a
Bahia, nos cerrados chamado Matopiba, que pega Mato Grasso, Piauí e Bahia… se
avançar essa expansão do modelo de irrigação, nós acabamos com São Francisco em
muito menos tempo do que se imaginava porque o rio tem limite, as águas têm
limites e o modelo não é universalizável.
Mesmo
nessa situação crítica tem gente que só pensa em expandir o modelo. Inclusive o
governo. O governo alimenta essa imagem, alimenta essa política e não mede as
consequências do que está acontecendo. Sempre digo que o governo está de costas
para o São Francisco. Ele pensa da tomada de água do rio para frente, mas não
enxerga o que está acontecendo dentro do São Francisco.
Asacom
– Nos debates sobre a transposição, tinha-se uma previsão de que o rio entraria
em colapso lá para 2050. Mas as obras nem terminaram e vemos isso acontecendo
agora…
Gogó
– Então, quando a gente debatia com o governo sobre a transposição, inclusive
debatendo com Ciro Gomes, eles tinham essa afirmação categórica: ‘O que vamos
tomar do São Francisco – 26m³, no mínimo, 60m³, em média, e nos picos de cheia,
126m³ para os quais os canais estão preparados’. Eles diziam que isso não vai
afetar em nada o São Francisco porque a partir de Sobradinho, nós temos uma
vazão segura, firme – uma palavra técnica essa – de 1800m³. Na verdade, hoje
estamos em Sobradinho com apenas 900m³por segundo, 50% do que eles garantiram
que era a vazão segura.
Aquele
mito de que o São Francisco tinha uma vazão segura de 1800m³/s,
comprovadamente, há meses, que ele está muito abaixo sem que a gente saiba o que
vai acontecer agora.
A
transposição, efetivamente, ainda é uma promessa. Ela tem obras em construção,
mas ela não retirou água do São Francisco. Então, a gente não sabe o que
acontecer, qual vai ser o impacto real, na hora que começar a tirar água,
sobretudo quando se está numa situação como essa.
Como
aqui em Juazeiro e Petrolina, os próprios projetos de irrigação estão ameaçados
de não ter acesso à água e de verem seu acesso cortado exatamente por falta de
água, é claro, começa entrar nessa discussão – se você não consegue alimentar
nem os projetos da borda do lago [Sobradinho], como você vai alimentar projetos
para fora dessa região?
Tem
toda uma campanha na mídia local pra transposição do Tocantins para o São
Francisco. Enquanto o Ceará e os outros estados querem a transposição do São
Francisco, agora o pessoal do São Francisco quer a transposição do Tocantins
pra cá, que é uma loucura. Um rio que tinha quase 3000m³ de água por segundo,
agora tem 900m³, você vai buscar o que no Tocantins? 100m³, 200m³? O que é isso
diante da perda do volume de água que o São Francisco está tendo?
Esse
modelo, essa concepção que não olha a realidade, não faz a equação da
sustentabilidade, ele é mortal. E ele está realmente levando o São Francisco a
um processo de destruição.
Asacom
– De acordo com a Constituição Federal, diante de uma situação de colapso como
essa que estamos vivendo, existem as prioridades para o uso da água que são
para o consumo humano e dos animais…
Gogó
– Isso é um consenso mundial. Vêm de outras reflexões na lógica dos direitos
humanos, na lógica da sustentabilidade ambiental, os chamados dos Princípios
Dublin [da Conferência Internacional de Água e Meio Ambiente (ICWE) em Dublin,
Irlanda, em janeiro de 1992] (http://www.meioambiente.uerj.br/emrevista/documentos/dublin.htm),
em caso de escassez de água a prioridade é o abastecimento humano que é uma
coisa lógica pra você ter água pra beber, pra cozinhar e também a dessedentação
dos animais, que é pra matar a sede dos animais. Todos os outros usos,
irrigação, geração de energia elétrica, mineração, todos os usos econômicos,
eles estão subordinados a esses princípios fundamentais do uso da água.
Isso
está na lei brasileira de recursos hídricos, que é a 9433/1997, que estabelece
que a prioridade, em caso de escassez, é a pessoa humana e a dessedentação dos
animais. Mas, na prática, nós sabemos que os outros usos competem com a
necessidade humana e dos animais e, muitas vezes, têm a prioridade real.
Sobretudo, no Brasil, a água para geração de energia elétrica acaba sendo
prioridade e também, em vários lugares, a questão da irrigação. Temos isso aqui
no Vale do São Francisco. Tem muitas casas em Casa Nova, que é uma cidade na
porta do lago [de Sobradinho], que ficaram sem água esses dias, mas o braço do
lago de Sobradinho que abastecia Casa Nova secou não por conta do abastecimento
humano. Ele secou por conta do abastecimento dos projetos de irrigação. Ali a
prioridade foi invertida.
De
vez em quando, aqui no Brasil, se quer criar um mercado de águas, de outorgas,
se quer privatizar a água, como se isso fosse a melhor forma de gerenciar, mas,
na verdade, é uma forma de retirar a prioridade do uso humano e de animais para
outros interesses que na lei são secundários. Mas, na prática, são
economicamente poderosos e querem fazer prevalecer o seu uso em detrimento das
prioridades humanas estabelecidas em lei.
Asacom
– Como está a situação das comunidades ribeirinhas?
Gogó
– De Sobradinho pra cima [alto, médio e parte do submédio do São Francisco,
acima do lago do Sobradinho] e está muito grave porque o lago é muito raso. Tem
comunidade que estava na borda do lago e hoje está a 20, 30 quilômetros de
distância da água. Então, a dificuldade é imensa de você ter água mínima no dia
a dia. Pro lado de Minas, várias cidades estavam com dificuldade de captarem
água no leito do rio pra abastecer as suas populações. E essa situação tende a
se agravar daqui pro final do ano.
Tem
também toda a situação do Baixo São Francisco que é onde se concentram todos os
problemas da bacia. Ali fica o lixo, ficam os dejetos, a vazão é mínima, o mar
está entrando no rio São Francisco tem salinizado a água de alcance de vários
municípios. Você tem uma série de problemas que essa baixa do rio causa ao
longo do vale todo, sobretudo para os ribeirinhos.
Asacom
– Quais são os riscos que a gente tem com a Agência Nacional de Água (ANA)
colocando em votação um projeto de outorgas de água?
Gogó
– Essa é uma ideia que existe há tempos. Isso é uma coisa do Banco Mundial
(clique aqui para ler um artigo de Gogó sobre o assunto). Inclusive, na
transposição do rio São Francisco a ideia é criar um mercado de águas. A Chesf
vende, o pessoal do lago da Paraíba, as empresas compram essa água, depois elas
vão revender para as empresas usuárias como irrigantes, abastecimento e depois
é que chega no consumidor final. Vai ter todo um mercado de água que vai ser
criado aí.
Só
que no Brasil, até agora, você não tem como fazer isso porque é proibido. A
água é um bem público, um bem da União e ela não pode ser privatizada, não pode
ser mercantilizada no sentido de vender m³ de água. Você pode cobrar por
serviços, não por m³ de água.
Agora,
com o valor da água e como a outorga é uma licença, uma espécie de contrato
entre o Estado e o usuário, o Estado tem em mente que uma determinada empresa
tenha um volume de água para utilizar, por exemplo, uma empresa de irrigação
vai pode captar 5m³/s e vai poder fazer esse uso e vai pagar por isso. Em todo
caso, se ela não usar essa água, ela devolve pro Estado. E o Estado é que pode
destinar para outro empreendimento que ele achar conveniente ou necessário.
O
que eles estão querendo? Que em vez de você, que tem uma outorga, devolver para
o Estado, que você possa vender a tua reserva de volume de água para outra
empresa que esteja interessada nisso. O Estado perde a autonomia para gerenciar
a água e as empresas podem vender entre si volumes de água conforme o preço.
Numa situação como essa a água está valendo um horror, se você permite que um
bem público como esse possa ser vendido sem que você tenha pago nada por ele,
você cria um mercado de água. É isso que a Agência Nacional de Água está
querendo criar.
Agora
isso complica tudo porque se a prioridade é a pessoa humana e os animais, quem
garante que no mercado de água isso estará garantido? E depois disso, se é um
bem público não pode ter mercado de água, não pode ser privatizado, não pode
ser vendido. Como defensor dos direitos humanos, como defensor da água como bem
público, como bem da União, a gente é contra o mercado de água. Mas, de vez em
quando, se volta nesta tentativa porque tem gente que está a serviço destas
ideias no Brasil e o pessoal sempre rondou a Agência Nacional de Águas que é
quem acaba estabelecendo as políticas de água no Brasil.
Asacom
– Como podemos fazer para resistir?
Gogó
– A primeira questão é a denúncia, temos a possibilidade de acionar o
Ministério Público. Na minha visão, isso é inconstitucional, ilegal.
(ecodebate)
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