terça-feira, 19 de novembro de 2019

Biodiversidade não é problema, é solução!

No dia 4 de Novembro próximo, terá lugar no Centro de Convenções da Unicamp o evento mais importante dos últimos anos em nossa Universidade no que se refere ao mais crucial problema da humanidade, ao lado da emergência climática: a manutenção e a recuperação dos combalidos alicerces da biodiversidade, no Brasil e no planeta como um todo. O encontro, intitulado Biodiversidade não é problema, é solução!, é uma iniciativa do Programa BIOTA, da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e da Diretoria Executiva dos Direitos Humanos, da Reitoria. Ele reunirá seis dos mais ativos e experientes pesquisadores em biodiversidade, ligados às Universidades e a Institutos de Pesquisas brasileiros.
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Após os pronunciamentos do reitor e do diretor científico da FAPESP, Carlos Alfredo Joly (IB e NEPAM), membro titular da Academia Brasileira de Ciências e do Scientific Advisory Committee (SAC) do Inter-American Institute for Global Change Research (IAI), bem como coordenador da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), fará a palestra de abertura. Após essa apresentação preliminar, Maíra Padgurschi apresentará o Diagnóstico Brasileiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, baseado justamente nos resultados da BPBES. Maíra Padgurschi é membro da rede Ecosystem Services Partnership/ESP e da Young Ecosystem Services Specialists/YESS. Desde 2015, atua como Secretária Executiva da BPBES e é membro de seu Conselho Técnico-Científico. Realiza, além disso, uma pesquisa de pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia/INPA pelo Programa AmazonFACE. Em seguida, Cristiana Seixas realizará uma palestra intitulada “Contribuições da natureza para a qualidade de vida”.  Especialista em gestão ambiental, com ênfase na interface entre recursos naturais e bem-estar social, Cristiana Seixas é pesquisadora do NEPAM/Unicampco-coordenou o Diagnóstico Regional das Américas da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) e integra a Coordenação Executiva da BPBES.
Na parte da tarde, Kayna Agostini, Professora da Universidade Federal de São Carlos (campus Araras), fará um balanço da crescente crise de polinização na agricultura brasileira. Em seguida, Renato Crouzeilles fará um balanço do reflorestamento no Brasil e, enfim, Vinícius Farjalla, da UFRJ, incluirá uma variável fundamental no panorama da biodiversidade brasileira, a questão da água. O Sumário para Tomadores de Decisão de todos os diagnósticos que serão apresentados no dia 04 estão disponíveis para download na página da BPBES.
Um pouco de contexto: a BPBES e o IPBES
É importante ter presente o contexto em que ocorre este encontro do próximo dia 4, pois é ele que permite melhor entender sua importância excepcional. A BPBES integra a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, por Intergovernmental science-policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services). Como se sabe, essa Plataforma foi oficialmente estabelecida em 2012 por demanda dos governos e posta sob os auspícios de quatro organismos da ONU. Em sua breve história de sete anos, o IPBES impôs-se como uma referência incontornável na avaliação do declínio da biodiversidade, o aspecto mais crucial, ao lado da emergência climática, das crises socioambientais em que as sociedades contemporâneas vão naufragando cada vez mais rapidamente (mas ainda dá tempo de reagir!).
Das Plenárias anuais dessa Plataforma, seu órgão deliberativo máximo, participam hoje praticamente todos os países da comunidade internacional, seja na qualidade de membros plenos (132 países), seja na condição de observadores, além de outros participantes, entre os quais a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CBD), outras Convenções internacionais, agências e ONGs credenciadas. Eis como o IPBES, que tem por lema “Ciência e Política para a Natureza e para as Pessoas”, define sua razão de ser e seus objetivos:
[O IPBES] “fornece aos governos avaliações científicas objetivas sobre o estado do conhecimento relativo à biodiversidade do planeta, aos ecossistemas e aos benefícios que eles proporcionam às pessoas. Fornece aos governos também os instrumentos e os métodos para proteger e usar sustentavelmente esses ativos naturais vitais. Nossa missão é fortalecer os fundamentos do conhecimento para uma melhor governança informada pela ciência, para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade, o bem-estar humano em longo prazo e o desenvolvimento sustentável. Em certa medida, o IPBES faz para o biodiversidade o que o IPCC faz para as mudanças climáticas”.
O lançamento do Sumário do 1º Relatório do IPBES
Em 6 de maio deste ano, o IPBES lançou em Paris o Sumário de seu 1º Relatório de Avaliação sobre o estado da biodiversidade global. Esse documento leva em conta cerca de 15 mil estudos e relatórios governamentais, integrando informação das ciências sociais e das ciências da natureza, bem como informação proveniente das comunidades indígenas e tradicionais. Um comunicado de imprensa assim resume seu conteúdo:
“O perigoso declínio da Natureza é sem precedentes. A taxa de extinção das espécies está se acelerando. A resposta global de nossos dias a esse processo é insuficiente. Impõem-se mudanças transformadoras para restaurar e proteger a natureza. A oposição a interesses financeiros (vested interests) tem de prevalecer em prol do bem público. Trata-se da mais abrangente avaliação da biodiversidade: 1.000.000 de espécies estão ameaçadas de extinção”.
O que significa, quantitativamente, um milhão de espécies extintas no contexto da biosfera de nosso planeta? Há crescente consenso quanto à magnitude da biodiversidade planetária, ao menos no que diz respeito ao domínio taxonômico dos eucariotas ou eucariontes, espécies com células dotadas de um núcleo cercado por uma membrana bem definida e, portanto, com DNA separado do citoplasma. Assim, por exemplo, Rodolfo Dirzo, Mauro Galetti e Ben Collen, num trabalho intitulado “Defaunation in the Anthropocene” (Science 2014), implicitamente subscrevem esse consenso emergente: “Partindo de uma estimativa conservadora da existência de 5 a 9 milhões de espécies animais no planeta, estamos perdendo provavelmente cerca de 11.000 a 58 mil espécies por ano”. Também o IPBES trabalha com essa escala da biodiversidade. Andy Purvis, coordenador de um dos capítulos do diagnóstico global elaborado pelo IPBES, afirma:
“Em uma ampla e crescente variedade de grupos taxonômicos, cerca de 25% das espécies estão ameaçadas de extinção quando avaliadas usando os critérios bem estabelecidos e transparentes da Lista Vermelha da IUCN [International Union for  Conservation of Nature]. Alguns grupos exibem uma proporção mais alta, outros uma proporção mais baixa, mas a média de 25% está bem estabelecida. A porcentagem de insetos ameaçados pode muito bem ser menor (o que é relevante, porque cerca de 75% das espécies são insetos), mas as evidências dos insetos mais estudados (libélulas globalmente e abelhas, borboletas e alguns besouros na Europa) sugerem que é improvável que fique muito abaixo de 10%. Ainda não há acordo sobre exatamente quantas espécies existem: cerca de 1,7 milhão de espécies de animais e plantas foram descritas, mas a maioria das estimativas do número total de espécies supera o dobro desse número. Na Avaliação, usamos uma estimativa recente, entre baixa e média, de 8,1 milhões de espécies animais e vegetais, das quais cerca de 5,5 milhões são insetos (ou seja, 75%) e 2,6 milhões não. Portanto, 10% dos 5,5 milhões de insetos são 550.000 e 25% dos 2,6 milhões são 625.000. Devido à imprecisão nas estimativas, não há sentido em fornecer o total com mais precisão do que 1 milhão de espécies animais e vegetais ameaçadas”.
Portanto, perder cerca de 1 milhão de espécies significa perder 12,5% do total da biodiversidade animal e vegetal do planeta, estimada em 8,1 milhões de espécies eucariontes. E atenção: essa catastrófica taxa de extinção não ocorre num futuro longínquo, mas “nas próximas poucas décadas”, afirma o IPBES. Esse total de extinções inclui 10% dos insetos, mas também 40% dos anfíbios e 33% dos corais, tubarões e mamíferos marinhos, conforme mostra o quadro abaixo.
O relatório estima, ademais, que 5% de todas essas espécies estarão ameaçadas de extinção num clima, na média global, 2ºC acima do período pré-industrial, isto é, 0,8ºC acima do presente, aquecimento que pode ser atingido em algum momento do segundo quarto do século (já por volta de 2030 no Brasil), a menos que as emissões de gases de efeito estufa declinem pronta e drasticamente.
Dois exemplos de perda catastrófica de populações
Toda extinção começa, é claro, pela perda de abundância das populações de uma dada espécie. De acordo com um trabalho publicado em outubro de 2019 na revista Science, cerca de 3 bilhões de pássaros desapareceram nos EUA e Canadá, em todos os diversos biomas e entre as espécies com populações ainda consideradas abundantes  (29% das populações avaliadas) desde 1970.
Os polinizadores fornecem um segundo exemplo de perda catastrófica de populações. A Lista Vermelha das espécies ameaçadas de extinção da IUCN indica que 16% dos polinizadores vertebrados estão ameaçados de extinção global e 30% das espécies encontradas em ilhas, com tendência a mais extinções. Avaliações nacionais e regionais indicam altos níveis de ameaça também para abelhas e borboletas. Na Europa, 9% das espécies de abelhas e de borboletas estão ameaçadas. As populações de 37% das espécies de abelhas e de 31% das borboletas estão declinando. Onde há dados disponíveis, há indicações de que frequentemente mais de 40% das espécies de abelhas podem estar ameaçadas de extinção. Já em 2016, o IPBES publicou uma primeira grande avaliação sobre a crise dos polinizadores. Polinizadores silvestres declinaram em ocorrência e diversidade (e abundância para certas espécies) no Noroeste da Europa e na América do Norte. Até 2016, segundo esse relatório, não havia dados gerais disponíveis para a América Latina, África, Ásia e Oceania, mas foram registrados declínios locais nessas regiões. A abundância, diversidade e a saúde dos polinizadores estão ameaçadas por desmatamento, agricultura intensiva, mudanças climáticas e pesticidas, incluindo inseticidas neonicotinoides, que ameaçam os polinizadores em todo o mundo. O relatório de 2016 alerta que, “ultrapassado o limiar [de resiliência] de um sistema, as populações de polinizadores podem colapsar simultaneamente” (p. 245). Entre as muitas consequências desse declínio ou colapso dos polinizadores, para a humanidade e para tantas outras espécies, podemos recordar três:
(a) Entre 94% (nas zonas tropicais) e 78% (nas zonas temperadas) das espécies selvagens de plantas com florações (aproximadamente 308.000 espécies) dependem, ao menos em parte, da transferência de pólens por animais para a sua reprodução. Essas plantas são essenciais para o funcionamento dos ecossistemas.
(b) Dos 107 principais tipos de culturas agrícolas globais destinadas à alimentação, 91 (frutas, sementes e oleaginosas) dependem em certa medida de polinização animal para sua produtividade e/ou qualidade.
(c) A polinização animal é diretamente responsável por 5% a 8% da produção agrícola global por volume. Essas porcentagens, que serão perdidas sem polinizadores, incluem produtos contendo micronutrientes fundamentais da dieta humana, como vitamina A, ferro e ácido fólico, essencial, por exemplo, para a formação do sistema nervoso do feto.
O agronegócio global no banco dos réus
O modelo de agropecuária imposto pelo capitalismo globalizado é o principal responsável pela eliminação física (via incêndios e desmatamento) dos habitats terrestres e aquáticos e pela intoxicação (via agrotóxicos) da vida silvestre. Como afirma Jeff Tollefson, num artigo na revista Nature:
“Segundo o Relatório [do IPBES], as atividades agropecuárias têm tido o maior impacto nos ecossistemas dos quais as pessoas dependem para a alimentação, água limpa e clima estável. A perda de espécies e habitats coloca em perigo a vida na Terra tanto quanto as mudanças climáticas, afirma um sumário do relatório”.
Bem ao contrário de ser uma atividade “pop”, o agronegócio é – juntamente com a indústria de combustíveis fósseis, a mineração e a pesca industrial – a causa maior, não apenas da insegurança alimentar que, segundo a FAO, retoma agora sua linha ascendente, mas do declínio cada vez mais perigoso da biodiversidade. Os fazendeiros brasileiros que poluem os solos, a atmosfera, a água e os alimentos – após desmatar, incendiar as florestas e matar os que lhes resistem – são uma peça na engrenagem da rede de megacorporações que controlam o sistema de produção e negociação especulativa de soft commodities, das sementes ao consumo final, passando pelo financiamento, os fertilizantes, os agrotóxicos, a maquinaria e o transporte, que rasga e fragmenta o que resta da manta florestal. Por culpa sobretudo dos interesses financeiros (os vested interests acima citados pelo IPBES) dessa grande coalizão da terra arrasada, o planeta está perdendo animais e plantas a uma velocidade “sem precedentes”, como afirma ainda o IPBES. E quando se fala em velocidade sem precedentes, isso significa que a Sexta Grande Extinção de espécies, atualmente em curso, evolui a uma velocidade tão ou mais fulminante que as cinco grandes extinções anteriores, a quinta das quais ocorridas há cerca de 65 milhões de anos.
Numa declaração às delegações reunidas na Rio+20 em 2012, Julia Marton-Lefèvre, ex-Diretora Geral da International Union for Conservation of Nature (IUCN), reiterou pela enésima vez a advertência de que a Sexta Extinção em curso pode, no limite, implicar a extinção do Homo sapiens:
“Sustentabilidade é uma questão de vida ou morte para a humanidade. Um futuro sustentável não pode ser atingido sem que se conserve a diversidade biológica – espécies animais, seus habitats e seus genes – não apenas para a natureza mesma, mas também para os 7 bilhões de seres humanos que dependem dela”.
Isso significa que a Sexta Extinção já não é mais apenas uma questão moral, mas adquire sempre mais uma dimensão existencial, que revelará todo o seu potencial destrutivo para a humanidade e para um sem número de outras espécies já nos próximos poucos decênios (“the next few decades”, como afirma o IPBES).
A catástrofe brasileira
De posse desses dados, entende-se melhor a importância excepcional do encontro do dia 4 de novembro, pois as seis comunicações que se sucederão no auditório do Centro de Convenções apresentarão os resultados brasileiros desse relatório, consignados na Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES). O Brasil, como se sabe, está entre os países ao mesmo tempo mais ricos em biodiversidade e mais ameaçados de ver aniquilada essa riqueza vital pelo agronegócio e pela mineração (aí incluída, obviamente, a extração de petróleo), as duas atividades mais devastadoras da economia mundial. Se as consequências são globais, evidentes e muito mais graves do que se imagina, no Brasil elas atingem um grau extremo.  A 12ª edição do Living Planet Index 2018 (WWF/ZSL) mediu o declínio de 16.704 populações de 4.005 espécies entre 1970 e 2014. Os resultados dão uma ideia da catatonia das sociedades diante da perspectiva concreta do colapso da riqueza biológica do planeta: em média, as populações pesquisadas de animais vertebrados haviam se reduzido em 2014 a menos da metade dos níveis de 1970. Em habitats de água doce, essas populações caíram 83%. Mas em nenhum lugar como no Brasil e, em geral, na América Central e do Sul, esse massacre das populações de vertebrados é mais extremo. Nessa região do planeta houve uma queda total de 89% nas populações examinadas de animais vertebrados. Isso significa que, em média, onde havia 100 indivíduos de uma dada espécie de vertebrados em 1970, em 2014 restam apenas 11 indivíduos. Estamos realmente, no Brasil, mais próximos da extinção em massa de espécies vertebradas do que no resto do mundo. A figura abaixo mostra, comparativamente, a gravidade extrema da situação de nosso continente.
Conforme enfatizado pelos autores do Living Planet Report 2018: “de todas as espécies de plantas, anfíbios, répteis, aves e mamíferos extintas desde 1500, 75% o foram pela super-exploração ou pela atividade agropecuária ou por ambas”.
O mesmo processo fulminante de extermínio ocorre com as plantas dotadas de sementes (espermatófitas). Segundo um trabalho publicado na Nature em 2019, cerca de três espécies de plantas com sementes vêm se extinguindo globalmente a cada ano desde 1900, uma taxa de extinção 500 vezes maior que a taxa de base. Nesse contexto, a Mata Atlântica no Sudeste do país está entre as regiões que mais sofreram essas extinções, como mostra o mapa-múndi abaixo.
Reagir à letargia: tudo ainda depende de nós
Mantido o atual modelo econômico – global, carnívoro, poluente, excludente, antidemocrático, devastador da natureza e emissor de gases de efeito estufa –, não há que se fazer ilusões sobre nosso futuro, pois as chances de evitar um colapso das sociedades contemporâneas tendem a zero no decorrer do próximo quarto de século. Mas muito ainda pode ser evitado, se agirmos já para deter a espiral destrutiva. Robert Watson, diretor do IPBES, adverte: “O tempo para a ação era ontem ou antes de ontem”. Essa é a mensagem central da ciência. Ela precisa ser ouvida por todos, a começar pela comunidade universitária: docentes, alunos e funcionários. Temos um encontro marcado com a BPBES no dia 4 de novembro na Unicamp. (ecodebate)

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