quinta-feira, 5 de maio de 2022

Terra, mãe que nos sustenta

A cosmovisão dos/as camponeses/as decorre da experiência de quem teve a oportunidade de nascer na terra e crescer trabalhando na terra.

“Terra, mãe que nos sustenta”

Cleonice Silva Souza, camponesa Sem Terra, hoje, assentada no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, dia 21/9/2014, transbordando alegria, assim se expressou sobre a terra: “Essa terra aqui estava praticamente morta. Nós ressuscitamos essa terra da Manga do Gustavo, onde acampamos desde 26/8/2006. Antes, era só monocultura do capim. Hoje essa terra está produzindo muito e de acordo com a agroecologia. Já pensou se tantas terras por aí que está sem gente para plantar estivessem nas mãos dos camponeses? Sem a terra a gente não pode sobreviver. Deus deixou a terra para todos nós. Enquanto a gente vai plantando na terra e lidando com ela, a terra fica viva. Se plantar só capim, a terra morre”.

A cosmovisão dos/as camponeses/as, expressa acima, decorre da experiência de quem teve a oportunidade de nascer na terra e crescer trabalhando na terra. A forma como os camponeses veem a terra é instrumento de emancipação humana, porque desconstrói a visão do capital que, ao mercantilizar a terra, retira a noção de terra como ‘mãe que nos sustenta’, como ‘criação de Deus para todos’, como ‘algo vivo’ que precisa ser respeitado e cuidado. Essa concepção camponesa afirma a individualização e nega o individualismo, conforme pontua Roberto Damatta, ao discutir individualidade e liminaridade: “Se a individualização é uma experiência universal, destinada a ser culturalmente reconhecida, marcada, enfrentada ou levada em consideração por todas as sociedades humanas, o individualismo é uma sofisticada elaboração ideológica particular ao Ocidente, mas que, não obstante, é projetada em outras sociedades e culturas como um dado universal da experiência humana” (DAMATTA, 2000, p. 9-10).

No mundo tido como moderno, o sistema do capital dissemina o individualismo, que é altamente ideológico no sentido de ofuscar os valores camponeses na sua relação com a terra. A luta pela terra, seja no campo para viver e plantar ou na cidade para morar e plantar, é luta que fortalece o resgate da visão que reconhece o indivíduo, mas em relação respeitosa com a sociedade, não recaindo no individualismo. Na sociedade capitalista há processos que buscam desistoricizar e mitizar relações sociais de mudança, mas como os poetas, os profetas, as profetizas e quem anda na contramão, os camponeses e as camponesas na luta pela terra “em um processo dialético com a sociedade, movimentam suas estruturas, partejando visões de mundo paralelas e conflitantes, desafiadoras dos valores, e nela introduzem uma consciência diferenciada da moralidade e do tempo, essas dimensões que são o pano de fundo da consciência de mudança social” (DAMATTA, 2000, p. 17).

Em uma Roda de Conversa, dia 21/9/2014, durante minha pesquisa de doutorado, perguntamos: “O que aconteceu que fez vocês darem uma guinada na orientação da vida e abraçar a luta pela terra?” Aldemir Silva Pinto, acampado no Acampamento Dom Luciano Mendes, um experiente Sem Terra saiu na frente e disse: “Pelo que sei, após o INCRA2 fazer o laudo da fazenda Monte Cristo, aqui no município de Salto da Divisa, MG, o MST veio fazer as reuniões de base e o INCRA cadastrou muitas famílias. Ficamos alegres com a chegada do MST propondo a união nossa para ocupar fazenda improdutiva. Eu sabia que não haveria grande repressão, pois a maioria das terras aqui em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, é sem documentos. Eu pensava: após a gente conquistar a primeira fazenda, o povo vai passar a acreditar e vai entrar para a luta”. Entrevemos aqui a noção de liminaridade ou de ‘soleira’, trabalhada por Roberto Damatta.

Na luta pela terra e pela moradia acontece um rito de passagem. Passa-se de sem-terra, o camponês expropriado e oprimido, para Sem Terra, o camponês portador de uma nova identidade, um rebelde em relação às convenções sociais impostas pelo sistema do latifúndio e do capital. Passa-se de um sem-teto para um Sem Teto, com moradia, sujeito com condições objetivas de trilhar um caminho de emancipação humana.

Na luta pela terra, a/o camponesa/o sem-terra resignada/o pode tornar-se pessoa altiva, alguém de cabeça erguida, sujeito a construir a história pelas mãos. Hélio Amorim, outro Sem Terra hoje assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, descreve o seu rito de passagem rumo a algum tipo de emancipação na narrativa: “Aqui em Salto da Divisa o que existia era coronelismo. A gente não podia nem conversar sobre nosso sofrimento. O entusiasmo do povo que estava se organizando fez criar a coragem. O ex-prefeito José Eduardo aqui de Salto da Divisa, MG, pediu ao INCRA para vir fazer vistoria na fazenda da Fundação Tinô da Cunha. O incentivo desse ex-prefeito ajudou. Jogamos fora o medo. Minha mãe tem 92 anos, mora no Salto da Divisa e sabe que essa terra onde estamos não é deles, é terra devoluta, terra grilada. Quando for medir os 19 mil hectares de terra, herança da dona Inhá Pimenta, sobre essa terra aqui, que agora ocupamos se verá que grande parte é terra grilada”.

“São os pequenos gravetos secos que fazem o fogo pegar e cozinhar o feijão na panela”, dizem muitos camponeses. Assim, um incentivo de um lado, um apoio de outro, um conhecimento aqui, outro lá, etc., acabam despertando entusiasmo, que expulsa o medo e a resignação e atrai processualmente a coragem, condição imprescindível para se engajar na luta pela terra e consequentemente em um movimento emancipatório. Pode até começar com um objetivo pequeno: apenas conquistar um pedacinho de terra, mas como os gravetos fazem crescer o fogo, a luta pela terra faz crescer os objetivos e o horizonte do campesinato. Logo após as primeiras conquistas, os Sem Terra descobrem que ‘podemos mais’ e ‘temos direito a mais’.

Na Roda de Conversa, Antoniel Assis de Oliveira, militante do MST, mestre em Educação do Campo, ponderou: “O povo teve coragem, mas desde o início não foi tranquilo. Houve ameaças de morte durante muitos anos. Irmã Geraldinha teve que andar com escolta. A Cidona do MST e o Aldemir também foram ameaçados. A resistência é muito importante para estarmos onde estamos”. Enfim, por tudo isto, para os camponeses e as camponesas “a terra é mãe que nos sustenta”.

Prece/Oração a Mãe Terra

Mãe querida, que tudo me dá, que seus jardins floresçam sempre com amor, suas matas se preservem, suas águas não se extingam, seus animais irracionais e racionais te embalem com carinho e gratidão.

Sou grata ao ar, ao alimento que extraímos de você, a água que me presenteou sempre com abundância, você me sustenta amada Mãe Terra.

Sonho com a conscientização da humanidade e creio que ela irá acontecer, tento dar o melhor fazendo minha parte, devo isso a você.

Mãe amada cujo corpo é a Terra.

Espero sermos livrados da insensatez, da cegueira que não nos permite sermos mais simples e puros.

Que o amor cure nossos corações.

Que a ganância deixe de cegar a humanidade, livrando-nos de pagar pelos atropelos insanos cometidos contra você Mãe Terra.

Que o Universo sempre conspire a nosso favor.

Que ASSIM SEJA amada Mãe Terra!!!

GRATIDÃO

De seus filhos que te amam eternamente!!! (ecodebate)

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