“Terra, mãe que nos sustenta”
Cleonice Silva Souza,
camponesa Sem Terra, hoje, assentada no Assentamento Dom Luciano Mendes, em
Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, dia 21/9/2014, transbordando
alegria, assim se expressou sobre a terra: “Essa terra aqui estava praticamente
morta. Nós ressuscitamos essa terra da Manga do Gustavo, onde acampamos desde
26/8/2006. Antes, era só monocultura do capim. Hoje essa terra está produzindo
muito e de acordo com a agroecologia. Já pensou se tantas terras por aí que
está sem gente para plantar estivessem nas mãos dos camponeses? Sem a terra a
gente não pode sobreviver. Deus deixou a terra para todos nós. Enquanto a gente
vai plantando na terra e lidando com ela, a terra fica viva. Se plantar só
capim, a terra morre”.
A cosmovisão dos/as
camponeses/as, expressa acima, decorre da experiência de quem teve a
oportunidade de nascer na terra e crescer trabalhando na terra. A forma como os
camponeses veem a terra é instrumento de emancipação humana, porque desconstrói
a visão do capital que, ao mercantilizar a terra, retira a noção de terra como
‘mãe que nos sustenta’, como ‘criação de Deus para todos’, como ‘algo vivo’ que
precisa ser respeitado e cuidado. Essa concepção camponesa afirma a
individualização e nega o individualismo, conforme pontua Roberto Damatta, ao
discutir individualidade e liminaridade: “Se a individualização é uma
experiência universal, destinada a ser culturalmente reconhecida, marcada,
enfrentada ou levada em consideração por todas as sociedades humanas, o
individualismo é uma sofisticada elaboração ideológica particular ao Ocidente,
mas que, não obstante, é projetada em outras sociedades e culturas como um dado
universal da experiência humana” (DAMATTA, 2000, p. 9-10).
No mundo tido como moderno, o sistema do capital dissemina o individualismo, que é altamente ideológico no sentido de ofuscar os valores camponeses na sua relação com a terra. A luta pela terra, seja no campo para viver e plantar ou na cidade para morar e plantar, é luta que fortalece o resgate da visão que reconhece o indivíduo, mas em relação respeitosa com a sociedade, não recaindo no individualismo. Na sociedade capitalista há processos que buscam desistoricizar e mitizar relações sociais de mudança, mas como os poetas, os profetas, as profetizas e quem anda na contramão, os camponeses e as camponesas na luta pela terra “em um processo dialético com a sociedade, movimentam suas estruturas, partejando visões de mundo paralelas e conflitantes, desafiadoras dos valores, e nela introduzem uma consciência diferenciada da moralidade e do tempo, essas dimensões que são o pano de fundo da consciência de mudança social” (DAMATTA, 2000, p. 17).
Em uma Roda de Conversa, dia 21/9/2014, durante minha pesquisa de doutorado, perguntamos: “O que aconteceu que fez vocês darem uma guinada na orientação da vida e abraçar a luta pela terra?” Aldemir Silva Pinto, acampado no Acampamento Dom Luciano Mendes, um experiente Sem Terra saiu na frente e disse: “Pelo que sei, após o INCRA2 fazer o laudo da fazenda Monte Cristo, aqui no município de Salto da Divisa, MG, o MST veio fazer as reuniões de base e o INCRA cadastrou muitas famílias. Ficamos alegres com a chegada do MST propondo a união nossa para ocupar fazenda improdutiva. Eu sabia que não haveria grande repressão, pois a maioria das terras aqui em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, é sem documentos. Eu pensava: após a gente conquistar a primeira fazenda, o povo vai passar a acreditar e vai entrar para a luta”. Entrevemos aqui a noção de liminaridade ou de ‘soleira’, trabalhada por Roberto Damatta.
Na luta pela terra e pela
moradia acontece um rito de passagem. Passa-se de sem-terra, o camponês
expropriado e oprimido, para Sem Terra, o camponês portador de uma nova
identidade, um rebelde em relação às convenções sociais impostas pelo sistema
do latifúndio e do capital. Passa-se de um sem-teto para um Sem Teto, com
moradia, sujeito com condições objetivas de trilhar um caminho de emancipação
humana.
Na luta pela terra, a/o
camponesa/o sem-terra resignada/o pode tornar-se pessoa altiva, alguém de
cabeça erguida, sujeito a construir a história pelas mãos. Hélio Amorim, outro
Sem Terra hoje assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, descreve o seu
rito de passagem rumo a algum tipo de emancipação na narrativa: “Aqui em Salto
da Divisa o que existia era coronelismo. A gente não podia nem conversar sobre
nosso sofrimento. O entusiasmo do povo que estava se organizando fez criar a
coragem. O ex-prefeito José Eduardo aqui de Salto da Divisa, MG, pediu ao INCRA
para vir fazer vistoria na fazenda da Fundação Tinô da Cunha. O incentivo desse
ex-prefeito ajudou. Jogamos fora o medo. Minha mãe tem 92 anos, mora no Salto
da Divisa e sabe que essa terra onde estamos não é deles, é terra devoluta,
terra grilada. Quando for medir os 19 mil hectares de terra, herança da dona
Inhá Pimenta, sobre essa terra aqui, que agora ocupamos se verá que grande
parte é terra grilada”.
“São os pequenos gravetos secos que fazem o fogo pegar e cozinhar o feijão na panela”, dizem muitos camponeses. Assim, um incentivo de um lado, um apoio de outro, um conhecimento aqui, outro lá, etc., acabam despertando entusiasmo, que expulsa o medo e a resignação e atrai processualmente a coragem, condição imprescindível para se engajar na luta pela terra e consequentemente em um movimento emancipatório. Pode até começar com um objetivo pequeno: apenas conquistar um pedacinho de terra, mas como os gravetos fazem crescer o fogo, a luta pela terra faz crescer os objetivos e o horizonte do campesinato. Logo após as primeiras conquistas, os Sem Terra descobrem que ‘podemos mais’ e ‘temos direito a mais’.
Na Roda de Conversa, Antoniel Assis de Oliveira, militante do MST, mestre em Educação do Campo, ponderou: “O povo teve coragem, mas desde o início não foi tranquilo. Houve ameaças de morte durante muitos anos. Irmã Geraldinha teve que andar com escolta. A Cidona do MST e o Aldemir também foram ameaçados. A resistência é muito importante para estarmos onde estamos”. Enfim, por tudo isto, para os camponeses e as camponesas “a terra é mãe que nos sustenta”.
Prece/Oração a Mãe Terra
Mãe querida, que tudo me dá,
que seus jardins floresçam sempre com amor, suas matas se preservem, suas águas
não se extingam, seus animais irracionais e racionais te embalem com carinho e
gratidão.
Sou grata ao ar, ao alimento
que extraímos de você, a água que me presenteou sempre com abundância, você me
sustenta amada Mãe Terra.
Sonho com a conscientização
da humanidade e creio que ela irá acontecer, tento dar o melhor fazendo minha
parte, devo isso a você.
Mãe amada cujo corpo é a
Terra.
Espero sermos livrados da
insensatez, da cegueira que não nos permite sermos mais simples e puros.
Que o amor cure nossos
corações.
Que a ganância deixe de cegar
a humanidade, livrando-nos de pagar pelos atropelos insanos cometidos contra
você Mãe Terra.
Que o Universo sempre
conspire a nosso favor.
Que ASSIM SEJA amada Mãe
Terra!!!
GRATIDÃO
De seus filhos que te amam eternamente!!! (ecodebate)
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