Se você é brasileiro,
certamente conhece a música do cantor Jorge Ben Jor: “Moro num país tropical,
abençoado por Deus e bonito por natureza”. Enquanto a ideia de residir em um
país tropical sempre esteve associada a um clima quente e com belas paisagens,
a última década trouxe consigo novos – e alarmantes – contornos. O calor, antes
anunciado como uma qualidade, hoje, diante do desmatamento crescente, coloca
parte da população em uma situação de risco. Entre 2001 e 2020, 345 milhões de
pessoas foram expostas ao aquecimento das áreas degradadas, segundo pesquisas
recentes. E mais: neste mesmo período, esse aquecimento induzido pela perda
florestal esteve associado a uma média de 28 mil mortes anuais relacionadas ao
calor.
Esses dados são apresentados no estudo “O desmatamento tropical está associado a uma mortalidade considerável relacionada ao calor”, liderado pelo Instituto de Ciência do Clima e Atmosfera da Universidade de Leeds (Reino Unido), em colaboração com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade Kwame Nkrumah de Ciência e Tecnologia (Gana), que incluiu todas as regiões tropicais do mundo nas Américas, África e Ásia. A pesquisa demonstrou que o Sudeste Asiático é a região com maior taxa de mortalidade relacionada ao calor (8 a 11 mortes para cada 100 mil pessoas que vivem em áreas desmatadas), seguida pelas regiões tropicais da África e das Américas. “O desmatamento já é um problema de saúde pública”, afirma Beatriz Oliveira, pesquisadora da Fiocruz Piauí e uma das autoras do trabalho. Segundo ela, nas áreas onde ocorreram perda florestal, o que se viu foi um aquecimento maior que nas regiões vizinhas. “Quando você desmata, você tem um aquecimento local superior àquele proveniente da mudança climática”, diz.
Países de baixa renda são desproporcionalmente afetados pelo desmatamento na Amazônia
Quente demais
Embora o aquecimento global
não seja um problema novo, as configurações atuais não são as mesmas, explica o
historiador Luiz Marques, autor de livros como “Ecocídio: por uma (agri)
cultura da vida” (Expressão Popular) e “O decênio decisivo: propostas para uma
política de sobrevivência” (Editora Elefante).
“Há algo novo que emergiu, e é uma nova taxa de aquecimento médio global,
mais rápida. Da ordem de, provavelmente, o dobro daquela que foi constatada nos
40 anos anteriores a 2010”, explica, revelando que “estamos em um processo de
aquecimento”, e que, desde 2015, houve uma aceleração nesta taxa.
Segundo Marques, há um outro
aspecto que deve ser levado em consideração nos debates mais recentes, que é a
aceleração na perda de biomassa florestal. “Isso parece cada vez mais claro,
tanto nas florestas tropicais quanto nas boreais e temperadas. Mas no caso das
florestas tropicais, a questão é evidentemente mais grave, porque elas
concentram uma biodiversidade muito maior”. O historiador explica que o Brasil
é o país biologicamente mais rico do mundo. “De longe. Dos 17 países
‘megadiversos’ em termos de concentração de espécies endêmicas, cinco são
amazônicos. Então você vê que a Amazônia é o centro nevrálgico da
biodiversidade mundial”, afirma.
O que tem se observado é uma
grande perda da vegetação nativa nessa região, ainda que, segundo dados
recentes do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por
Satélite (Prodes), do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de
agosto de 2023 a julho de 2024, a área desmatada na Amazônia tenha sido de
6.288 km², cerca de 31% menor que o período anterior (atingindo a taxa mais
baixa desde 2018). Mesmo assim, um cenário alarmante, com diversas populações
vivendo em ambientes termicamente alterados. Beatriz Oliveira conta que hoje a
principal emissão de gás de efeito estufa do Brasil é por conta da falta de
controle do desmatamento. “A exposição [ao aquecimento local] está ligada à
questão de quantas pessoas residem naquela região, e isso difere um pouco do
Sul Asiático, porque lá é muito povoado. Então mesmo que lá tenha menos
desmatamento, e talvez um menor efeito do aquecimento induzido por ele, aquele
aquecimento gerou naquela população mais mortes do que no Brasil, na América
Central e América do Sul, onde está acontecendo mais o desmatamento”, explica.
Trabalho internacional contou
com participação de cientistas da Fiocruz e foi publicado na revista ‘Nature
Climate Change’.
Desmatamento X Saúde
O Relatório de Síntese AR6:
Mudanças Climáticas 2023, lançado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC), afirma que ultrapassar um nível específico de 1,5ºC
implicaria impactos diversos aos sistemas humanos e naturais. Ainda segundo o
documento, “quanto maior a magnitude e mais longa a duração da ultrapassagem,
mais ecossistemas e sociedades ficarão expostos a mudanças mais amplas e
intensas nos fatores de impacto climático”. Quanto à urgência de ação, o IPCC é
categórico: “Há uma janela de oportunidade que está se fechando rapidamente
para garantir um futuro habitável e sustentável para todos”. Esta limitação do
aquecimento está alinhada ainda com os objetivos do Acordo de Paris, firmado em
2015, durante a COP21, e principal tratado internacional sobre mudanças
climáticas.
Todos esses esforços são ainda
mais emergenciais quando se tem em mente que meio ambiente e saúde estão
intrinsecamente ligados. A questão do desmatamento, por exemplo, está longe de
ser uma questão exclusivamente “ambiental”, tendo em vista que ele é um
impulsionador significativo da temperatura local. A exposição prolongada ao
calor extremo prejudica a capacidade do corpo de regular a temperatura interna,
de acordo com o estudo “Quente demais para ignorar: o crescente impacto das
ondas de calor na saúde do Brasil”, publicado em 2025, e que tem Beatriz
Oliveira também como um dos autores.
Algumas áreas estão mais
adaptadas ao calor, com uma população já acostumada às variações, mas há outros
locais em que isso não acontece. E com a maior frequência de dias mais quentes,
a exposição dessas pessoas aumenta, assim como o impacto sobre sua saúde. “Uma
vez que você está exposto a esses dias que não são tão normais para você, essa
exposição acaba fazendo com que o seu corpo precise se esforçar mais para se
manter a temperatura corporal interna”, diz. Em 2023, por exemplo, durante um
show da cantora Taylor Swift, no Rio de Janeiro, Ana Clara Benevides Machado,
uma jovem de 23 anos morreu por “exaustão térmica por exposição difusa ao
calor”, após passar mal em meio as 60 mil pessoas que estavam no estádio do
Engenhão para a apresentação. Na época, a cidade passava por uma onda de calor
com condições de temperatura extrema, com sensações térmicas que se aproximavam
dos 50ºC. De acordo com a perícia, houve um “quadro hemodinâmico (choque), cardiovascular
e comprometimento grave dos pulmões, e morte súbita”.
Publicado recentemente, o
“Relatório de 2025 do Lancet Countdown sobre saúde e mudanças climáticas”,
destaca que “dos 20 indicadores que monitoram os riscos à saúde relacionados às
mudanças climáticas, 60% atingiram níveis inéditos no ano mais recente de
dados”. Isso porque o corpo humano fica sobrecarregado ao tentar lidar com
tantas alterações.
A termo regulação é a responsável pela capacidade de seres vivos manterem uma temperatura corporal adequada ao seu metabolismo. E para que o corpo consiga fazer isso, há uma série de mecanismos fisiológicos que acontecem. “Isso significa que, principalmente, os sistemas cardiovascular e respiratório vão lançar mão de mecanismos para que você dissipe esse calor e mantenha a temperatura do seu corpo, entre eles, a vasodilatação”, explica Oliveira, complementando que o principal processo de dissipação do calor é o suor. “E aí você exige muito do seu sistema cardiovascular. Às vezes, você tem que respirar mais, e com mais esforço, porque precisa de mais oxigênio, o que acaba sobrecarregando o seu corpo para manter aquela temperatura corporal”, conta a pesquisadora da Fiocruz.
Calor gerado por desmatamento causa 28 mil mortes por ano
Vulnerabilidades
Mas será que todos conseguem
se proteger do calor da mesma forma? A resposta é não. Quando se pensa nos
mecanismos termo regulatórios, crianças e idosos têm mais dificuldade de
executá-los. Nos idosos, por exemplo, a pele mais rugosa dificulta a dissipação
de calor, somando-se ainda a outros fatores decorrentes do próprio processo de
envelhecimento. De acordo com o Lancet Countdown, em 2024, pessoas idosas com
mais de 65 anos e bebês com menos de 1 ano tiveram exposição a ondas de calor
em níveis recordes, com aumentos de 304% e 389%, respectivamente, em comparação
com o período entre 1986 e 2005. Ainda de acordo com o documento, ambos os
grupos estão “particularmente em risco”.
Oliveira elucida também as
ameaças às pessoas que trabalham expostas a um calor extremo. “Eu produzo calor
sentada, mas consigo manter minha temperatura e produzir muito menos calor do
que uma pessoa que está vendendo alguma coisa na praia, por exemplo. Que está
exposta ao calor externo, fazendo atividade física e ainda, com o calor interno
que produz”, reforça. A pesquisadora explica que roupas que protegem da
exposição ao sol muitas vezes impedem a dissipação de calor. “As questões
comportamentais e de vulnerabilidade, combinadas, tendem a exercer algum tipo
de impacto na saúde, principalmente nesses sistemas vitais que estão muito
associados à troca de calor”.
Além disso, outra
vulnerabilidade é alçada ao campo de disputas entre aqueles que podem se
proteger e aqueles que não têm escolha, senão adoecer. Para Luiz Marques, esta
é uma questão que tem um lado óbvio e um menos óbvio. “O lado óbvio, que é o
senso comum, é o fato de que os estratos sociais e as nações mais pobres não
podem comprar um ar-condicionado, elas vivem em territórios mais vulneráveis a
enchentes, a secas, têm um vínculo com o mar muito forte, no caso das
populações litorâneas, dependendo muito fortemente da pesca”. Ele complementa:
“Se os preços aumentam, se o arroz aumenta 20% ou 40%, isso não vai impactar o
meu orçamento, porque sou uma pessoa da classe média, mas vai impactar
enormemente uma pessoa de renda muito mais baixa. Então, tudo isso nos leva a
concluir claramente que existe uma enorme injustiça climática baseada
exatamente na desigualdade”, afirma.
Cenário futuro
Em novembro de 2025, o Brasil
sediou a 30ª Conferência das Partes (COP30), órgão máximo da Convenção-Quadro
das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), da Organização das Nações
Unidas. O evento internacional, que deve contar com a participação dos 198
países-membros da ONU, tem como objetivo acompanhar e fortalecer as ações
globais de enfrentamento à crise climática. Para Luiz Marques, a escolha de
Belém (PA) para sediar a COP30 é uma escolha estratégica do ponto de vista
geopolítico, por ser uma região amazônica, mas ele relembra que, desde 1992,
quando aconteceu a UNFCCC, o acordo tinha como objetivo estabilizar as
concentrações atmosféricas de CO2 e outros gases de efeito estufa, e
que isso não aconteceu. “Não houve essa estabilização. Muito pelo contrário.
Houve um aumento de mais de 60% desde 1992 até hoje. Não houve nem
desaceleração do aumento das concentrações, houve aceleração. Não só aumentou,
como aumentou o ritmo. É um fracasso que não posso relativizar”. Outro ponto a
ser considerado, é referente à quantia gasta em decorrência das mortes
relacionadas ao calor. Segundo outro estudo do The Lancet Countdown “Latin
America Report 2025”, O Brasil registrou o maior aumento absoluto nos custos de
mortalidade relacionada ao calor, de 2015 a 2024, entre países da América
Latina com o crescimento de cerca de R$ 20 milhões, em relação a década
anterior.
Beatriz Oliveira destaca
algumas mudanças dessa COP. “Ela tem um grande avanço para a gente, em que, de
fato, a saúde estar sendo colocada como uma pauta bem sólida. Ao invés de focar
mais nas discussões políticas e acordos políticos, econômicos, que é muito do
que a COP às vezes faz, colocaram essa questão de discutir a saúde pública.
Esse é um grande ganho que a gente tem”, afirma. A pesquisadora aponta ainda
como o SUS pode servir de lição do Brasil para o mundo nos aspectos voltados à
estruturação de políticas em saúde. “O Brasil é um país continental, com várias
realidades diferentes. O SUS é uma política capilarizada que te permite olhar
de uma forma muito mais orgânica, para essas questões do clima”, reforça e cita
exemplos: “Ele atende cerca de 70% da população, tem uma estrutura
hierarquizada, com responsabilidade entre seus entes federados, com repasse
financeiro bem definido, com estratégias localizadas e territorialidades, com
as equipes de saúde da família, com linhas específicas de cuidado, com vários
aspectos que estão relacionados, inclusive, às mudanças do clima”, diz.
Neste sentido, a Fiocruz divulgou no fim de outubro uma carta aberta para a Conferência, em que alerta: “a crise climática é, antes de tudo, uma crise de saúde”. Para garantir a proteção da saúde humana e ambiental, o documento lista diretrizes que podem fazer frente aos desafios atuais, como a importância de dar centralidade à saúde e suas determinações socioambientais nas políticas climáticas; fortalecer a resiliência dos sistemas de saúde; garantir financiamento climático para a pasta; entre outros.
Desmatamento tropical causa cerca de 28.000 mortes anuais por calor
É dentro deste panorama
crítico, em que diversas medidas devem ser referendadas por diferentes nações
para que mudanças possam efetivamente ocorrer, que Oliveira reflete sobre
aquilo que é possível fazer dentro do panorama atual de aquecimento. “Não somos
nós que decidimos economicamente vários dos fatores que influenciam a liberação
desses gases. Então trabalhamos com o que chamamos de fator de risco, que é a
ameaça climática, a exposição, a vulnerabilidade, e o efeito que eles têm na
saúde humana. Reduzir a vulnerabilidade é reduzir a exposição dessas pessoas a
um aquecimento que está acontecendo”, diz e complementa: “Fazemos isso com
melhora no acesso à saúde, emitindo alertas para as populações que são mais
sensíveis, e em alguns casos disponibilizando medidas de acesso à saúde, por
exemplo, para não deixar acontecer o que aconteceu com aquela jovem durante o
show. Enfim, reduzir vulnerabilidade é dar condições de vida”, conclui.
(ecodebate)







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