quinta-feira, 5 de agosto de 2010

‘Não somos donos da natureza, mas uma parte dela’

Incentivada por Abbé Pièrre e Dom Helder Câmara a conhecer as populações pobres do mundo, a psicóloga suíça Marianne Spiller veio para o Brasil em 1972 onde fundou a Associação Brasileira de Amparo à Infância, no Paraná. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, ela fala sobre sua trajetória e, principalmente, sobre suas lutas em prol dos direitos dos mais pobres. Atualmente, ela está voltada à questão da água e, por isso, foi entender a situação do povo que depende do rio São Francisco. “Viajei várias vezes para aquela região e vi como este rio está morrendo. A transposição, ou seja, retirada de mais água deste rio, é um problema muito grande para a população ribeirinha, para as comunidades indígenas e para a natureza. A construção de grandes canais traz destruição para os biomas da catinga, do cerrado e para as comunidades indígenas”, relatou. Segundo ela, a partir dos inúmeros projetos e obras para construção de hidrelétricas no Brasil, o país “está na direção de uma ação destruidora”. Spiller considera isso uma violência contra os rios que criam diversos problemas com os países vizinhos. “A hidrelétrica do Rio Madeira, por exemplo, cria problemas para a Bolívia, pois os peixes não conseguem fazer a Piracema”. Ao analisar como a questão da água será tratada pelos candidatos à presidência, Marianne afirma: “Um candidato pensa um pouco mais no lado ecológico do que o outro, mas a grande direção não é favorável à preservação da natureza”. IHU On-Line – Quando e porque a senhora veio para o Brasil? Marianne Spiller – Desde a minha infância na Suíça, me preocupei com as populações pobres. Em 1972, decidi deixar meu país para conhecer melhor essa situação no mundo. Eu tinha professores muito competentes, como o religioso francês Abbé Pièrre e Dom Helder Câmara, arcebispo brasileiro, que divulgou no mundo inteiro que “a pobreza é um escândalo”. Estes dois homens me indicaram o Brasil. IHU On-Line – Como surgiu essa sua relação e interesse por povos na condição de pobreza? Marianne Spiller – São coisas impossíveis de explicar. Eu já nasci com isso. É uma espécie de destino, uma vocação. IHU On-Line – No início seu trabalho era diretamente com crianças e jovens que estavam envolvidos com as drogas. Você pode nos contar um pouco da história da Associação Brasileira de Amparo à Infância? Marianne Spiller – Em 1979, a Associação Brasileira de Amparo à Infância foi fundada no Brasil por um grupo de amigos brasileiros e suíços. A maioria conhecia bem o Brasil e queria contribuir com a redução da pobreza. Com fé e coragem, começamos no ano de 1981, na área rural no sul de Curitiba, com uma creche para crianças de famílias pobres. IHU On-Line – Hoje você está voltada para a questão da água. Porque começou a se preocupar com esse tema? Marianne Spiller – Descobri que não se pode apoiar a libertação dos pobres sem se preocupar com a situação dos recursos naturais. Os pobres são os primeiros que sofrem, de maneira intensa, com as consequências da destruição e privatização dos recursos naturais pelas grandes empresas transnacionais. Comecei me preocupando com a atuação da Nestlé, que tem origem na Suíça, e entrei neste assunto me tornando uma ativista contra a privatização da água, contra o agronegócio. É eticamente condenável que a água, que deve ser um direito para todos os seres, seja usada como negócio, para a ganância de poucos. IHU On-Line – Você esteve com Dom Cappio, certo? Qual a situação, neste momento, do povo que vive do Rio São Francisco? Marianne Spiller – Viajei várias vezes para aquela região e vi como este rio está morrendo. A transposição, ou seja, retirada de mais água deste rio, é um problema muito grande para a população ribeirinha, para as comunidades indígenas e para a natureza. A construção de grandes canais traz destruição para os biomas da catinga, do cerrado e para as comunidades indígenas. IHU On-Line – O que representa o fato de a ONU ter considerado a água esta semana como um direito do ser humano? Marianne Spiller – Em março do ano passado, participei do 5º Fórum Mundial das Águas, que ocorreu em Istambul, na Turquia. O evento foi organizado pelo Conselho Mundial da Água, criado pelas grandes empresas transnacionais, que trabalham com o hidronegócio, algo que dá muito dinheiro. Inclusive, amigos meus na Alemanha estão trabalhando na conclusão de um filme chamado “A água faz dinheiro”. Vi como as delegações sul-americanas, coordenadas por Bolívia e Uruguai, tentavam pressionar o Fórum para que o acesso à água fosse considerado um direito humano. Mas o Fórum não aceitou isso. A declaração final afirmava que o acesso à água é uma necessidade básica, mas não um direito humano. Houve uma declaração alternativa, assinada por alguns países, como Bolívia Uruguai e Cuba. Entre março de 2009 e o que ocorreu ontem na ONU, foi um grande passo, uma vitória impulsionada por ONGs e forças da sociedade civil de alguns país. O curioso é que o país que mais lutou para isso foi o mais pobre da América Latina: a Bolívia. Parece que são os pobres que estão libertando a natureza da ganância e que têm a força da verdade. Enquanto as transnacionais e todos que destroem a natureza trabalham com a mentira. IHU On-Line – Que avaliação a senhora faz da Conferência Mundial dos Povos sobre as mudanças climáticas e pelos direitos da “Madre Tierra”? Marianne Spiller – Foi simplesmente fantástico. Eram esperadas entre cinco e dez mil pessoas, mas compareceram 35 mil. No dia 22 de abril, Dia da Madre Terra, parecia que Cochabamba era o centro do mundo, tomado pelo entusiasmo. Em todos os lugares podia-se ver cartazes com a frase: “A Terra não pertence ao homem. O homem pertence à Terra.” Isso é um claro paradigma de origem indígena, muito diferente. É o conceito de que o homem não é o dono da natureza, mas uma parte dela. Penso que o antropocentrismo é o mal que está na raiz deste capitalismo destruidor, no qual o homem se sente no direito de destruir a natureza. IHU On-Line – Você afirmou logo após o evento que a conferência foi um momento de descoberta de uma cultura originária que não conhecíamos. Que cultura era essa? Marianne Spiller – Os povos originários da Bolívia e Equador têm um conceito muito diferente da Pátria Mãe, eles têm uma relação de amor à Mãe Terra. O discurso mais radical foi de um chanceler que disse “que, no capitalismo o mais importante é o dinheiro, para o socialismo é o homem. Para nós, povos originários indígenas, o mais importante são as montanhas, as florestas, os rios. O homem vem depois”. Isso é muito interessante e traz uma visão totalmente diferente. O futuro tem de ir para esse lado. Evo Morales disse que “no século passado lutamos muito pelos direitos do homem, dos negros, dos homossexuais, das mulheres, das crianças, e de todos os povos marginalizados.” Este século, entretanto, será da Mãe Terra. Se não aumentarmos o respeito à natureza não haverá um futuro bom. IHU On-Line – A ideia do “viver bem” poderia ser implementada em toda a América Latina? Marianne Spiller – Com certeza, em todo o mundo. Viver bem não quer dizer viver melhor. A mola mestra deste capitalismo destruidor é a concorrência. Você precisa ser melhor que o outro. O viver bem é diferente, é comunitário, é uma construção coletiva da realidade. Há também valores, como os que estão na nova Constituição da Bolívia, como “não mentir”. É algo tão simples, mas de suma importância, pois muita coisa em nossa sociedade se baseia na mentira. Outro valor na Constituição é “não ser preguiçoso”. O mais importante é não cair na ganância de ter mais e mais, mas sim de ser feliz com uma vida simples e com o suficiente. Se todos quiserem tudo, precisaremos ter vários planetas. IHU On-Line – Como a senhora vê a situação dos rios no Brasil a partir das propostas levantadas pelos candidatos à presidência? Marianne Spiller – O Brasil está na direção de uma ação destruidora, isso fica evidente quando observamos Belo Monte e a epidemia de hidrelétricas que começaram a ser pensadas ainda na ditadura. Tudo isso é uma violência para os rios e cria muitos problemas transfronteiriços. A hidrelétrica do Rio Madeira, por exemplo, cria problemas para a Bolívia, pois os peixes não conseguem fazer a Piracema. Um candidato pensa um pouco mais no lado ecológico do que o outro, mas a grande direção não é favorável à preservação da natureza. O Brasil está na contramão da história. IHU On-Line – Está na contramão também em relação à pobreza? Marianne Spiller – Durante estes anos houve mudanças muito grandes na relação do Estado junto à pobreza, que entrou, pela primeira vez, nas preocupações governamentais. Ninguém pode tirar esse mérito do governo do presidente Lula. Esses programas do Governo Federal são um grande avanço. Só o fato de ter registrado a existência de quase todas as famílias pobres do Brasil já é uma grande evolução, mas precisamos de mudanças mais profundas. Precisamos de urgência de reforma agrária uma e redução das propriedades agrícolas. Mas a preocupação social ainda é maior que a ambiental. IHU On-Line – A senhora também integra a Campanha Internacional para criação de uma Corte Penal Internacional? Marianne Spiller – Tenho amizade com Adolfo Pérez Esquivel, premio Nobel da Argentina e presidente de uma Academia de Ciência em Veneza. Essa Academia está se esforçando para levar a frente uma campanha pela criação de uma corte internacional por penas de meio ambiente. Há muitos crimes contra a natureza que lesam a humanidade e fazem sofrer milhões de pessoas, mas não existe um tribunal especializado. É uma iniciativa muito importante. Há um grupo de juízes na Inglaterra que tem o mesmo objetivo. E a terceira ação é do Evo Morales, para criar uma justiça climática internacional. Mas não será fácil, pois tem de passar pela ONU e por mudanças no estatuto de Roma, que criou um tribunal internacional. (EcoDebate)

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