Ártico registra recorde de degelo e aquece
disputa internacional por gás, óleo e minérios
Ambientalistas
pedem preservação enquanto empresas estão de olho no gás, óleo e minérios no
Polo Norte.
Sobrevoando o Oceano
Ártico, a sensação era de estar diante de um espelho gigante, estilhaçado em
milhões de pedacinhos. Em vez de vidro, placas de gelo quebradas, resquícios
dos últimos dias de verão, refletiam de forma descontínua os raios de sol. Vistos
do alto, de um helicóptero, os pedaços, já frágeis, ocupavam quilômetros de
mar, mas, a cada minuto, ondas engoliam mais um trecho da cobertura branca.
Diante dos nossos olhos, a geleira que cerca o Polo Norte se desfazia,
materializando números que, no dia 27 de agosto, já haviam acionado o alarme
sobre a situação. Este ano, foi registrado o recorde de derretimento da
cobertura de gelo no oceano, desde que as medições começaram a ser feitas, em
1979. Era esse o motivo que levava à região uma expedição do Greenpeace. A
bordo do navio Artic Sunrise, cientistas de diferentes partes do mundo,
protestavam contra a exploração econômica do Ártico. Eles reivindicam a criação
de uma área de proteção internacional.
O cenário é um
exemplo vivo da elevação da temperatura da Terra, que se potencializa na
região. O termômetro no local marca um aumento três vezes maior do que no resto
do planeta. Cientistas alertam que o fenômeno é acelerado pela queima de
combustíveis fósseis e que esse processo causará, cada vez mais, eventos
climáticos extremos, como tempestades, inundações e secas.
Enquanto o Ártico
derrete, aumentam, na mesma proporção, os interesses econômicos na região. E,
aos olhos de empresas e das oito nações que têm assento no Conselho do Ártico,
o problema apontado pelos ambientalistas traz oportunidades econômicas. É que o
Ártico estoca 20% das reservas de petróleo e gás do mundo e vem se tornando a
mais nova fronteira energética da atualidade. À medida que a camada de gelo
derrete, mais fácil vai se tornando o acesso a essas riquezas ainda intocadas e
novas rotas comerciais vão se abrindo para o mundo.
Nesse imbróglio, uma
instituição está sendo alçada a uma importância inédita: o Conselho do Ártico,
composto por Dinamarca, Suécia, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Islândia,
Finlândia e Rússia. São esses países que, juntos, têm o poder de estabelecer
estratégias para a região nas áreas ambiental e econômica. A China está fora,
mas está fazendo de tudo para ser incluída no conselho. Os chineses estão de
olho grande na exploração de recursos locais e, especialmente, no encurtamento
das distâncias para o comércio com a Europa, que, segundo estimativas, poderiam
resultar em rotas comerciais cinco ou seis vezes mais curtas. O resultado sobre
a candidatura da China só será divulgado em fevereiro de 2013, quando o
conselho se reunirá para escolher os novos membros – ano, inclusive, em que as
empresas Shell e a russa Gazprom prometem voltar com força total ao Polo Norte,
já que ambas, este ano, adiaram seus planos de perfurar poços no Oceano Ártico.
Atualmente, o conselho é presidido pela Suécia.
Não são apenas
ambientalistas e empresários que estão em campos opostos. Textos do próprio
conselho deixam claro que a estratégia de exploração e preservação do Ártico
está baseada numa contradição intrínseca. Enquanto trechos do documento admitem
que “a extração de petróleo e gás pela Rússia e a Noruega na região de Barents,
nos últimos 15 anos, tem aberto fronteiras energéticas importantes”, em outros
parágrafos se advoga que “o rápido aumento de temperatura potencializa a
probabilidade de efeitos dramáticos sobre os ecossistemas do Ártico. Além de
significar perdas de bens naturais insubstituíveis para os seres humanos, entre
eles a caça e a pesca”.
“O paradoxo está
presente o tempo todo nas ações dos países que possuem áreas no Ártico. Eles
querem preservar o meio ambiente e as culturas de populações tradicionais, mas
não abrem mão das riquezas obtidas a partir dos recursos naturais. O mesmo
acontece para os povos locais, que querem manter seus empregos em indústrias de
exploração, mas serão diretamente afetados pelas perdas ambientais na região. É
uma dinâmica que não se altera de uma hora para outra”, pontua Lena Breg,
antropóloga alemã, que está fazendo seu PhD na Universidade de Oslo, com foco
nas populações do Ártico, e que estava entre os tripulantes do Artic Sunrise.
Efeito Gaia – No dia
20 de setembro, enquanto a expedição do Greenpeace navegava em meio ao degelo
no Oceano Ártico, o Centro Nacional de Informações sobre Neve e Gelo (NSIDC,
sigla em inglês) da Universidade do Colorado e apoiado pela NASA, anunciou que
a cobertura havia atingido seu tamanho mínimo neste verão, registrando apenas
3,41 quilômetros quadrados de extensão. O número é 18% abaixo do registrado em
2007, ano do recorde anterior, e, numa comparação com o ponto mais alto de
congelamento no inverno deste ano, significa o derretimento de quase 12 milhões
de quilômetros quadrados de gelo.
“Se confrontarmos
dados de satélite com o que estamos vendo, concluímos que há ainda menos gelo
cobrindo o oceano. A imagem cala os céticos que dizem que o aquecimento global
é apenas um processo natural. Atividades humanas são responsáveis por 60% do
aumento das emissões de gases de efeito estufa desde 1979. Para evitar o desaparecimento
do gelo, teríamos que reduzir drasticamente o uso de combustíveis fósseis. Não
é o que está acontecendo”, avaliou a climatologista do NSIDC, Julienne Stroeve,
uma das cientistas a bordo do Artic Sunrise, que, munida de instrumentos de
medição, verificava in loco a redução não apenas do tamanho do gelo, como
também de sua espessura.
Veterana em áreas
geladas, Julienne – que já esteve na Groelândia e no Alasca pelo NSIDC – não
escondia seu espanto ao observar a olho nu o que vem ocorrendo no Ártico. “Se
os satélites já anunciavam uma situação alarmante, a imagem das calotas polares
desfeitas em milhares de pequenos e finos pedaços era ainda mais chocante”.
A cientista acredita
que a quantidade de nuvens e névoa na região pode ter alterado imagens registradas
pelos satélites, fazendo com que a cobertura de gelo pareça maior do que
realmente está nesse momento. A tese do físico inglês James Lovelock, que, nos
anos 80, alertou o mundo para os primeiros sinais de que o excesso de emissões
de gases de efeito estufa seria sentido no mundo todo, Julienne constatou, na
sua última expedição ao Ártico, que a tese de Gaia é cada vez mais visível no
Polo Norte. Além dela, estavam a bordo dois outros especialistas em gelo, ambos
da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O peso das malas da tropa
científica no Artic Sunrise incluía, além de casacos e botas preparados para o
frio polar, instrumentos de medição do tamanho e da espessura das placas de
gelo, que tinham ainda a capacidade de calcular o impacto do movimento das
ondas sobre a cobertura gelada.
Resfriador da Terra –
A expedição do Greenpeace havia passado dos 83 graus a Norte de latitude, e a
cobertura branca ainda era escassa. Afinal, o que teria acontecido com as
placas de gelo permanentes que aparecem em nossos mapas-múndi? Durante cinco
dias navegando da cidade norueguesa de Tromso em direção do Polo Norte, os
cientistas atingiram a área em degelo no último dia 10 de setembro – a
expedição teve início no dia 5.
O cenário visto pelas
pequenas escotilhas do Artic Sunrise e mesmo da cabine do comandante era a um
só tempo inóspita, estonteante e aterradora. “O que vocês estão presenciando é
um dos maiores desastres do planeta”, esclarece, por email, o pesquisador Peter
Wadhams, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, um dos maiores
especialistas em gelo do mundo.
É dele a projeção de
que o gelo do Ártico desapareceria entre os anos de 2015 e 2016. Seu
diagnóstico data de 2007, só que seus próprios colegas de academia chegaram a
considerar que Wadhams havia exagerado nas suas estimativas. À época, o Painel
Intergovernamental das Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC) considerou
o cenário alarmista, projetando o degelo para 2050. Mas cientistas do mundo
inteiro estão revendo suas previsões, encurtando o tempo restante até que os
verões no Ártico não tenham mais gelo na paisagem. Eles estão de olho em dados
que já comprovam que, desde 1979, o Ártico perdeu 50% de sua cobertura.
“O gelo deverá
desaparecer até 2016. Empresas veem isso como um bom negócio, porque haverá
mais acesso à extração de petróleo na área de oceano aberto e mais facilidade
de navegação. Por outro lado, o oceano descoberto absorverá mais calor, o que
vai acelerar cada vez mais a própria causa do problema, o aquecimento global”,
diagnostica Wadhams.
O pesquisador já
esteve no Ártico várias vezes, para observar a espessura do gelo durante os
períodos de congelamento, no inverno, e de derretimento, no verão. Só que,
desta vez, o professor acompanhava as notícias da expedição à distância. No seu
lugar, Wadhams mandou Nick Toberg. Os dois conduzem uma pesquisa sobre a
região, que aponta que o Ártico reflete 70% dos raios de sol que alcançam
placas de gelo. Se a cobertura desaparecer, o oceano absorverá tudo,
esquentando o planeta numa velocidade equivalente a 20 anos de atividades
humanas emitindo gases de efeito estufa.
Além da absorção de
mais calor pelo oceano, o degelo faz com que o permafrost (solo composto por
terra, gelo e rochas congelados) se desfaça, enviando à atmosfera grandes quantidades
de metano, um dos gases mais nocivos do efeito estufa. Tudo isso afeta a
manutenção do Ártico, ou “refrigerador da Terra”, como é chamado.
“Os dias que estamos
passando em meio ao degelo no Ártico estão sendo chocantes. É preciso que a
exploração de gás e petróleo no Ártico seja suspensa de vez. As consequências
das emissões e de um possível derramamento aqui são terríveis”, conclui a
londrina Sara Ayech, que soube, em alto-mar, que a Shell havia suspendido
temporariamente as explorações na região. A Gazprom foi a empresa a abandonar
as operações no local. (EcoDebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário