Sociedade do decrescimento: Como se faz uma revolução
cultural
“O decrescimento
é uma arte de viver. Uma arte de viver bem, em acordo com o mundo. O objetor do
crescimento é também um artista. Alguém para quem o gozo estético é uma parte
importante da sua alegria de viver.“
A reflexão é do
economista e filósofo francês Serge Latouche, conhecido defensor do
“decrescimento sustentável”, em artigo para o jornal L’Unità, 25/02/11. O
trecho faz parte de seu livro Come si esce dalla società dei consumi. Corsi e
percorsi della decrescita, Ed. Bollati Boringhieri, 2011.
Eis o texto.
A via do
decrescimento é uma abertura, um convite a encontrar um outro mundo possível.
Esse outro mundo nós o chamamos de sociedade do decrescimento.
O convite é a viver
aqui e agora, e não em um hipotético futuro que, embora desejável, talvez não
veremos nunca. Esse outro mundo, portanto, está também naquele em que vivemos
hoje. Está também em nós. O caminho é também um olhar, um outro olhar sobre o
nosso mundo, um outro olhar sobre nós. (…)
A “common decense”
A via do
decrescimento é, portanto, acima de tudo, uma escolha. (…) É, em todo o caso,
um caminho de saída da enorme decadência gerada pela sociedade do crescimento.
Um caminho de saída para recuperar a estima de si mesmo. É o caminho para
reconstruir uma sociedade decente. Uma sociedade decente, diz o ensaio, é uma
sociedade que não humilha os seus membros. É uma sociedade que não produz lixo.
A via do
decrescimento é também a “common decense” de George Orwell. A decência comum
significa ter controle, estar atento, ser capaz de ter vergonha por aquilo que
é feito ao mundo e às pessoas. “Ser desenvergonhado – diz Bernard Stiegler –
significa ter se tornado incapaz de ter vergonha”. A sociedade do crescimento é
um mundo desenvergonhado, um mundo em que reina o desprezo. E o desejo de fugir
do desprezo é uma aspiração universal (talvez a única verdadeiramente
universal) que se realiza apenas nas sociedades decentes. A ausência de
controle, a falta de atenção equivalem à ausência da decência comum definida
por Orwell. Um mundo decente talvez não é mundo de abundância material, mas é
um mundo sem miseráveis e sem sujeira. (…)
Quando dizemos que o
decrescimento é um projeto político, entendemos que é também uma ética, porque,
para nós, como para Aristóteles, a política não é concebível sem uma ética, e
vice-versa, mesmo que seja oportuno não confundir os dois planos. Uma política
que fosse apenas uma ética seria impotente ou terrorista, mas uma política sem
ética (como a que vivemos principalmente a partir da reviravolta dos anos 90,
do grande salto para trás neoliberal) vê o triunfo da banalidade do mal. (…)
A via do
decrescimento é também o da emancipação e da conquista da autonomia. É a busca
pela liberdade verdadeira e não da sua caricatura, a do hedonismo desenfreado e
sem regras, proposta pela publicidade e pelo marketing e promovida pelo novo
espírito do capitalismo, falsamente alegre e de fato mortífero. (…)
A via do
decrescimento é uma saída de emergência do beco sem saída da imundialização
[immondializzazione, jogo de palavras entre imundo e mundialização]. O caminho
do crescimento é um exílio. É a travessia do deserto rumo à terra prometida,
mas é também um oásis no deserto do crescimento. “A revolução – adverte Jérôme
Baschet – não tem sentido se ela não é concebida, ao mesmo tempo, como uma
festa, se é privada daquelas ocasiões tão importantes como um baile ou uma
explosão de risos… É vão querer combater a alienação com formas alienadas… É
preciso admitir a impossibilidade de conduzir uma verdadeira luta pela
humanidade sem começar a perceber, no próprio processo dessa luta, a verdade da
humanidade à qual se aspira, sem reconhecer o direito ao prazer e a necessidade
de uma poesia que nada mais é do que o nome dado a uma existência
verdadeiramente digna do homem”.(…)
O decrescimento é uma
arte de viver. Uma arte de viver bem, em acordo com o mundo. O objetor do
crescimento é também um artista. Alguém para quem o gozo estético é uma parte
importante da sua alegria de viver. (…) Fazer da sua própria vida uma obra de
arte não é o objetivo, mas um dos resultados.
A via do
decrescimento é uma ascese. Limitando-se ao aspecto curativo e à luta contra a
toxicodependência do consumismo, pode-se retomar a ideia de Ivan Illich do
“tecnojejum”. O decrescimento é um exercício de emancipação das próteses
técnicas, uma libertação da servidão voluntária e uma alienação à autonomia.
A via do
decrescimento é uma conversão de si mesmo e dos outros. A conversão exigida
para realizar a transformação social necessária e desejável pressupõe que se
crie uma atitude de acolhida e de abertura a essa mudança. Essa educação é, ao
mesmo tempo e indissoluvelmente, saber e ética, resistência e dissidência. (…)
A via do
decrescimento é reconquista da realidade e da terra que é o seu princípio.
Trata-se de habitar a terra como um território, um lugar de cumplicidade e de
reciprocidade. De reencontrar a nossa intimidade com uma dimensão originária.
“Hoje, uma linha de horizonte técnica – escreve de modo inspirado Xavier
Bonnaud – separa o ser humano da fauna e da flora. Esses elementos que o ser
humano tem afastado, enfraquecido e canalizado não produzem mais nele aquelas
relações afetivas profundas que derivavam de um contato direto”. (…)
A via do
decrescimento é a da crítica livre. É a da autolimitação e não do
desencadeamento sem freios das paixões tristes. O decrescimento quer retomar o
programa de emancipação política da modernidade, enfrentando as dificuldades
que a sua realização comporta. A experiência autenticamente democrática
instaura uma experiência de transcendência do homem no homem que permite sair
das aporias do igualitarismo. Como diz o filósofo belga Robert Legros:
“Reconhecer uma limitação dos poderes do homem que não seja uma autolimitação
significa claramente admitir uma heteronomia no centro da autonomia.
Interpretar essa limitação como uma norma inscrita na humanidade do homem, e
não como uma norma de origem religiosa, significa tentar compreender o sentido
de uma heteronomia propriamente democrática”.
Se o decrescimento e
o projeto de construção de uma sociedade autônoma realizam o sonho de
emancipação dos Iluministas e da modernidade, não fazem isso por meio de uma
desvinculação da ligação com a natureza e do enraizamento na história, mas, ao
contrário, reconhecendo a dupla herança da nossa naturalidade e da nossa
historicidade. É preciso lutar contra a ilimitação do indivíduo e da sua
relação com a natureza que pretendemos criar.
A via do
decrescimento é essa luta. A via do decrescimento é uma emancipação da religião
do crescimento. Requer, portanto, necessariamente, também um “descrer”. É
preciso abolir a fé na economia, renunciar ao ritual do consumo e ao culto do
dinheiro. Para os teólogos Alex Zanotelli, Pe. Achille Rossi, Pe. Luigi Ciotti
e Raimon Panikkar, assim como para Ivan Illich ou Jacques Ellul, a sociedade do
crescimento apoia-se sobre uma estrutura de pecado.
Contrariamente à
fórmula desventurada da encíclica Populorium progressio, o desenvolvimento não
é o novo nome da paz, mas sim o da guerra, guerra pelo petróleo ou pelos
recursos naturais em via de exaurimento. Na sociedade do crescimento, não
haverá nunca mais nem paz nem justiça. Ao contrário, uma sociedade do
decrescimento trará novamente ao seu próprio centro a paz e a justiça.
Não queremos cair na
ilusão de uma mítica sociedade perfeita, em que o mal seria erradicado
definitivamente, mas sim inventar uma sociedade dinâmica, que enfrenta as suas
inevitáveis imperfeições e contradições, dando-se como horizonte o bem comum,
ao invés da avidez desenfreada. A via do decrescimento não é uma religião nem
uma antirreligião: é uma sabedoria.
Para os objetores do
crescimento, a busca dessa via é um dever, mas não é um imperativo categórico
de tipo kantiano, embora assumamos o imperativo kantiano assim como reformulado
por Hans Jonas: “Age de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra”. (EcoDebate)
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