A
notícia divulgada pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – TCE, de que
uma em quatro cidades paulistas tem lixões a céu aberto, evidencia que “estamos
diante de um problema estrutural e institucional de gestão, demonstrando a
inoperância do Estado em nível local, regional e nacional, à qual eu também
agrego a perpetuação das práticas omissivas, sempre com a lógica em protelar qualquer
solução para este problema”, diz Maurício Waldman à IHU On-Line.
Waldman
informa ainda que somente “3,11% das prefeituras conseguem selecionar entre 75%
e 100% dos itens encontrados nas lixeiras”, e o resultado da não adesão à
Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS “é uma calamidade que, por sinal,
tendencialmente segue no rumo de agravar ainda mais a situação sanitária e
ambiental vivida pelo estado de São Paulo e pelo país como um todo”.
Para
Maurício Waldman, a má gestão do lixo no país pode ser atribuída ao fato de que
“a discussão do lixo é quase sempre uma narrativa fragmentada, baseada em
pressupostos absolutamente falsos, inverídicos e inadequados, frequentemente
resvalando para o autoritarismo ou para a folclorização do debate”.
Na
entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Waldman comenta as
propostas da Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS e critica a proposta
de substituir os lixões por aterros sanitários. “Propor os aterros sanitários
como contraponto não constitui, no meu entendimento – à parte materializarem
alguns ganhos na comparação com os lixões -, uma proposta contemporânea para
acabar com o problema. (…) Aterros sanitários utilizam vastas áreas de terrenos
e envolvem investimentos consideráveis para enterrar materiais passíveis de
reutilização ou compostagem”, diz.
Maurício Waldman é graduado
em Sociologia, mestre em Antropologia e doutor em Geografia pela Universidade
de São Paulo – USP. Waldman é autor de Lixo: Cenários e Desafios (Cortez
Editora, 2010), a primeira obra sobre lixo finalista do Prêmio Nacional Jabuti
(edição de 2011). No final deste mês, está lançando um novo livro, intitulado A
Civilização do Lixo, um dos quatro que publicou em 2016 pela Editora Kotev,
publicadora digital sediada em São Paulo.
IHU On-Line – Recentemente o
Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – TCE divulgou que uma em cada quatro
cidades de SP tem lixões a céu aberto. Como o senhor interpreta esse dado?
Maurício Waldman – Este dado
é em si mesmo aterrador se lembrarmos que o estado de São Paulo é a unidade da
federação que desponta como polo dinâmico da economia nacional, principal
agregador de massa cinzenta no país e que, em princípio, dispõe de um aparato
estatal adequado para dar conta de uma questão tão séria como esta. Este
panorama ganha cores mais preocupantes quando se considera que num plano geral
há um cenário jurídico delineado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos –
PNRS. Recorde-se que a PNRS, em curso legal a partir de 02/08/10, consistiu um
esforço em rever, estatuir e ampliar o escopo das legislações anteriores com
foco ou que mantinham conexão orgânica com a problemática dos resíduos sólidos.
A PNRS propôs a criação de canais institucionais que viessem a normatizar e
detalhar o funcionamento da lei, garantindo a juridicidade da proposta no
referente às normatizações específicas na aplicação dos diferentes aspectos
abarcados por esta legislação. Contudo, não seria demasiado mencionar que o
próprio preâmbulo da PNRS evoca a Lei nº 9.605, relativa a crimes ambientais,
que veio à luz em 12/02/1998. Isto é: doze anos antes já se criminalizava o uso
de lixões para a desova dos resíduos urbanos.
Problema estrutural
Além do Estado, deve-se
sinalizar para as responsabilidades de atores que orbitam na execução das
chamadas políticas públicas, tais como as ONGs, parcelas do empresariado e para
a falta de clareza da comunidade acadêmica nacional.
O que transparece com base
nesta cronologia é que estamos diante de um problema estrutural e institucional
de gestão, demonstrando a inoperância do Estado em nível local, regional e
nacional, à qual eu também agrego a perpetuação das práticas omissivas, sempre
com a lógica em protelar qualquer solução para este problema. Além do Estado,
deve-se sinalizar para as responsabilidades de atores que orbitam na execução
das chamadas políticas públicas, tais como as ONGs, parcelas do empresariado e
para a falta de clareza da comunidade acadêmica nacional, que se tornam
responsáveis, mesmo que indiretamente, por esta catástrofe, que ocorre até em
contextos como o estado de SP, o estado líder da federação brasileira. Claro
sinal do que estou colocando é tomar conhecimento de que, em 2016, seis anos
após a suposta entrada em vigor da PNRS, a ação do TCE tenha trazido a público
o inaceitável índice de 23,31% de municipalidades com lixões em funcionamento.
Mas existem outros dados
igualmente constrangedores, pois os levantamentos indicam que apenas 51,54% dos
municípios implantaram um Plano de Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos – PGIRS
e que 19,63% sequer iniciaram a elaboração dos PGIRS. Para piorar, não existe
nenhum tipo de Coleta Seletiva de Lixo – CSL em 36,20% das cidades paulistas.
Ademais, a CSL abrange fração pouquíssimo substantiva do recolhimento dos
refugos. Meramente 3,11% das prefeituras conseguem selecionar entre 75% e 100%
dos itens encontrados nas lixeiras. Portanto o que se tem é uma calamidade que,
por sinal, tendencialmente segue no rumo de agravar ainda mais a situação
sanitária e ambiental vivida pelo estado de SP e pelo país como um todo.
IHU On-Line – O que estes
percentuais representam em termos técnicos?
Maurício Waldman – É a
continuidade da ciranda de horrores que tem comandado a gestão do lixo no país.
Os lixões e os aterros ditos controlados são avatares do descaso do poder
público para com um mínimo de qualidade de vida dos governados, que pagam
impostos para terem contrapartida em serviços prestados tipo “lixo”. Se é que
este termo pode ser utilizado dessa forma. No final das contas os resíduos
sólidos merecem respeito. Note-se que mesmo destacar o aterro sanitário como
política de excelência na gestão dos refugos é merecedor de apartes, correções
e considerandos. Sendo fato consumado o avolumar incessante das sobras e,
paralelamente, o fato de que lixões e aterros controlados permanecem como
modelo em curso num grande número de municípios, propor os aterros sanitários
como contraponto não constitui, no meu entendimento – à parte materializarem
alguns ganhos na comparação com os lixões -, uma proposta contemporânea para
acabar com o problema. O aterro sanitário como equipamento capaz de
proporcionar destinação adequada aos refugos é controverso e sujeito a
contestações, mesmo quando teoricamente funcionam bem.
IHU On-Line – Quais seriam os
problemas dos aterros sanitários?
Maurício Waldman – Os aterros
sanitários utilizam vastas áreas de terrenos e envolvem investimentos
consideráveis para enterrar materiais passíveis de reutilização ou compostagem.
Constituem verdadeiras usinas de miasmas, que liberam imensas quantidades de
gás metano, poderoso gás de efeito estufa (GEE) e de chorume, este último um
efluente com razão considerado, ao lado do plutônio e das dioxinas, como das
três mais perigosas e mortais ameaças ao meio ambiente criadas pela civilização
humana. Mesmo o suposto protagonismo dos aterros sanitários em garantir a
degradabilidade dos rebotalhos não possui pleno respaldo técnico. Por exemplo,
o grande pesquisador norte-americano William Bill Rathje, decano da lixologia,
admirou-se ao escavar aterros nos Estados Unidos e Canadá, com a conservação de
certos itens orgânicos encontrados nas camadas profundas dos monturos, alguns
dos quais, apesar de décadas de clausura total, apresentavam notável estado de
conservação. Materiais celulósicos como jornais e revistas, tidos como
facilmente degradáveis, foram encontrados incólumes após décadas de
sepultamento.
Rathje assinalou a existência
de inúmeras causalidades incomuns que contribuem para estancar a degradação
biológica, desde bolsões de gás, processos de mumificação naturais e ambientes
quimicamente saturados. Tais condicionantes físicos são pouco estudados e pouco
conhecidos pela comunidade acadêmica nacional, que, até por desconhecimento da
literatura internacional, acumula décadas de atraso na pesquisa científica do
lixo. Por isso mesmo Rathje classificou a biodegradação e o confinamento seguro
nos aterros sanitários como sendo pura e simplesmente um mito, responsável,
aliás, pela aniquilação de enormes massas de materiais úteis aos humanos.
IHU On-Line – Quais são as
razões que fazem os problemas de gestão do lixo perdurarem no Brasil?
Maurício Waldman – Entendo
que a discussão do lixo é quase sempre uma narrativa fragmentada, baseada em
pressupostos absolutamente falsos, inverídicos e inadequados, frequentemente
resvalando para o autoritarismo ou para a folclorização do debate, nesta última
variável pespontando muitos dos ativistas dos resíduos sólidos. Não há como não
colocar o Estado brasileiro no centro do debate, que no caso apresenta amplo
leque de especificidades. O cientista político alemão Joachim Hirsch defende
que, numa perspectiva mais ampla, a noção de Estado no momento atual de mundo
pressagia contraposições políticas conotadas por injunções contraditórias que
se atam aos humores da economia, das reivindicações sociais e reclamos dos
cidadãos. Disto se coloca que a máquina estatal deveria, ao menos em tese,
prestar-se a uma compatibilização considerada legítima e propiciadora de um
mínimo de equilíbrio. Mas o quadro que se apresenta no Brasil é outro. Tal como
em muitos outros países periféricos, o aparato de Estado está ancorado em
fragilidades estruturais ditadas por acentuadas disritmias socioeconômicas, que
em caráter permanente influenciam, corroem e questionam sua pretendida
representatividade.
O lixão é uma materialização
da incúria, incompetência e da ausência de vínculos com o interesse público por
parte do Estado brasileiro e dos gestores postados no comando deste.
Como assegurou o geógrafo
brasileiro Milton Santos, o Estado no Brasil tem por meta um papel
mistificador, propagador, ou mesmo gerador de uma ideologia de modernização, de
paz social e de falsas esperanças, uma fabulação que nem de longe é capaz ou se
mostra disposto a transferir para o mundo real. Dito de outro modo, o lixão é
exatamente isto: uma materialização da incúria, incompetência e da ausência de
vínculos com o interesse público por parte do Estado brasileiro e dos gestores
postados no comando deste.
IHU On-Line – No que isto se
associa aos lixões?
Maurício Waldman – No
transcorrer do meu terceiro pós-doutoramento, desenvolvido nos anos 2014-2015
com aval do Programa Nacional de Pós-Doutorado – PNPD, vinculado à Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, identifiquei em termos
de uma cartografia política a atuação de um Diretorado do Lixo, articulação que
na realidade é quem dá as cartas na gestão dos resíduos. Evidentemente, num
organograma funcional a gestão e o gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos
são de competência dos Serviços de Limpeza Urbanos – SLU. Mas não de um ponto
de vista objetivo. Na realidade, os interesses das empresas de lixo
consorciados à gestão “pública” formam concretamente uma soldadura que funciona
tal como um único colegiado. Na prática é a voz e a ação de um único corpo.
Portanto um Diretorado do Lixo.
Para este campo
político-funcional não interessam tipos de solução minimamente decentes para a
gestão dos refugos, nisto incluídos os aterros sanitários. Reciclagem e apoio
aos catadores então, nem pensar. Para muitos gestores o lixo é visto como uma
miscelânea de itens imprestáveis, repugnantes e daninhos à saúde, o que
justificaria uma opção preferencial por estratégias simplesmente estéticas e
eliminatórias. Em linhas gerais, a cultura de jogar o lixo longe dos olhos do
cidadão tem-se revelado mais poderosa do que a consciência quanto aos danos
causados pela destinação inadequada. Além disso, desovar refugo num lixão é um
procedimento coerente com uma burocracia pouco afeita a formas de gestão
complexas.
O lixão é simples, exigindo
pouco de máquinas administrativas viciadas em rotinas repetitivas, na nojenta
disputa por cargos, azeitadas pelo mandonismo político, pelo corporativismo e
pela aguda falta de visão social e de preparo técnico. No geral, o aparato de Estado
tem por meta sancionar intervenções que o coloquem a salvo de interpolações e
do trato com segmentos que, como os catadores, são antes entendidos como um
estorvo do que como parceiros na gestão do lixo. Naturalmente a isto se soma a
ação das empreiteiras, que se consorciam no esforço por perpetuar os lixões, em
especial por serem remuneradas por tonelada de lixo coletada, invariavelmente
reportando a custos extremamente altos para o cidadão, que paga caríssimo por
serviços simplesmente jurássicos.
IHU On-Line – Qual é o custo
desta política?
Maurício Waldman – No âmbito
do meu terceiro pós-doutoramento, fiz uso da noção de um “Custo Brasil do
Lixo”. Em outras palavras, o alto custo da máquina de Estado voltada para
gerenciar os refugos. Muito imposto de um lado e péssimos serviços prestados de
outro. Certo é que em face das contradições e desigualdades que marcam a
economia nacional, seria inútil comparar a gestão do lixo no Brasil com os
países afluentes. Daí que uma avaliação mais oportuna seria com a América
Latina, cuja realidade é ao menos semelhante à brasileira.
O Brasil é campeão
latino-americano em geração de resíduos
Pois bem, o que as
estatísticas mostram é assombroso. No custo unitário para a remuneração da
limpeza por km, para coleta e disposição final do lixo, os valores brasileiros
são todos, sem exceção, os mais altos. Isto para abduzir refugos que evoluem
numa escala ímpar. O Brasil é campeão latino-americano em geração de resíduos.
Mesmo com os batalhões de catadores, a recuperação do total de materiais
permanece abaixo da média regional. Um dado significativo são os recursos
humanos absorvidos pelos SLU. Brasil, República Dominicana e Colômbia lideram,
na América Latina, em funcionários. Em média são 30 para cada 10.000
habitantes, as maiores taxas da região. Para planos de manejo do lixo, o Brasil
apresenta índices constrangedores. Apenas Nicarágua e Jamaica apresentam
resultados piores que o nosso. Mais: o Brasil empata com o Peru no primeiro
lugar em ausência de planos para aglomerações metropolitanas. Isso sem contar
que a existência de planos não garante qualidade do serviço prestado, nem sua
aplicação ou mesmo a possibilidade de execução. No geral, os planos nada mais
são que peças publicitárias exibidas durantes as eleições. Executá-los é outra
discussão. O pior é perceber que a reação mais sanguínea dos burocratas dos
resíduos, amparados pelo Diretorado do Lixo, quando pressionados por melhorias
no atendimento e nas formas de gerenciamento dos SLU, desemboca invariavelmente
na demanda por mais numerários, seja propondo taxas para o lixo, ou então,
arrebanhando mais arrecadação via aumento dos impostos urbanos.
IHU On-Line – Outro
apontamento feito pelo TCE diz respeito à coleta seletiva dos resíduos urbanos.
Segundo as informações do órgão, somente 63,8% dos municípios oferecem esse
serviço. Quais são as dificuldades de se implantar a coleta seletiva?
Maurício Waldman – Note-se
que muitos dos supostos programas de CSL funcionam quase que exclusivamente
como peça de marketing institucional das prefeituras, iniciativas meramente
figurativas, propagandeadas como ações de educação ambiental e de compromisso
com a sustentabilidade. No geral, estão restritos a reluzentes “ilhas
recicladoras” plotadas em locais coerentemente à vista de todos, cujos
contêineres são visitados de tempos em tempos por caminhões coletores. Mas,
apesar de irrelevantes, são úteis para os bons ofícios do Diretorado do Lixo,
pois inflam e adereçam as estatísticas, na prática uma fabulação, pois permite
que muitos municípios com inexpressiva, ficcional ou tecnicamente nula atuação
na reciclagem – daí a utilização do conceito de algum tipo de serviço de
reciclagem – sejam contabilizados na somatória dos que executam programas de
recuperação dos materiais, demonstrando assim “progressos” alcançados pela CSL.
É o que se observa nos levantamentos. Exemplo bem conhecido, relatórios da
Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais –
Abrelpe acusavam, para o ano de 2009, a existência de programas de CSL em 56,6%
dos então 5.565 municípios brasileiros, em especial no Sul e Sudeste do país,
onde respectivamente 76,2% e 78,7% das localidades confirmavam a execução,
note-se bem, de algum tipo de serviço de CSL.
Muito embora a inconsistência
desta informação tenha sido objeto de contestação por parte de pesquisadores e
especialistas, o relatório mais recente da mesma entidade esclarece, no tocante
à CSL para o ano de 2014, que aproximadamente 65% dos municípios registravam
alguma iniciativa neste sentido. Portanto a situação vigente em São Paulo não
contesta no essencial o dramático quadro nacional de mau desempenho da
reciclagem. Isto sem contar que a compostagem do lixo, relacionada à
recuperação da fração orgânica do lixo, patina em índices aviltantes. O mesmo
parecer do TCE assinala que, no estado de SP, tão somente 2,47% dos municípios
levam adiante ações de compostagem dos resíduos urbanos. E claro está que os
números da reciclagem são mais uma demonstração da força inercial dos modelos
tradicionais, conservadores e descompromissados com o meio ambiente que
tipificam a gestão do lixo no país.
IHU On-Line – Em quais
regiões de São Paulo há predominância dos lixões?
Maurício Waldman – Existem
duas regiões particularmente problemáticas: a região do Oeste Paulista, assim
entendendo o espaço geográfico magnetizado pela cidade de Presidente Prudente,
e o vale do Ribeira do Iguape, no Sul do estado de São Paulo, sendo que das
duas a que exibe contornos mais acintosos é o Oeste Paulista, área na qual tive
atuação presencial durante minha terceira investigação de pós-doutoramento.
IHU On-Line – Por que
Presidente Prudente seria um caso mais grave?
Maurício Waldman – Não diria
mais grave, mas sim mais representativo da problemática dos lixões, tal como
esta desponta no território nacional. Isto porque as contradições sociais e as
dessimetrias econômicas transparecem com nitidez cristalina nesta região. A
cidade de Presidente Prudente constitui um polo regional importante,
“pivoteando” todas as demais cidades do entorno geográfico. É um centro urbano
com aproximadamente 200.000 habitantes e que constitui a maior expressão urbana
num raio de dezenas de quilômetros. A área magnetizada por Presidente Prudente
constitui uma constelação de cidades muito inferiores em população e em
expressão econômica. Neste senso, Presidente Prudente seria virtualmente uma
“ilha”, tanto num olhar antropológico como no econômico. Porém, uma ilha dotada
de portentoso protagonismo urbano. Muitos analistas indicam Presidente Prudente
dentre as seis melhores cidades para se viver no estado de SP e a 29ª como
cidade mais apropriada para seguir uma carreira no universo urbano brasileiro.
Ao mesmo tempo, é a cidade polo de uma região pauperizada para os padrões do
estado de SP, e os refugos da região são depositados basicamente em lixões,
todos privados de acompanhamento geotécnico com todos os problemas sociais e
ambientais gerados por este tipo de instalação.
A própria cidade de
Presidente Prudente desova seus resíduos num lixão pavoroso, localizado em meio
a nascentes de água, ainda em funcionamento em 2014, quando estive na cidade
pela última vez. Isto 14 anos após uma palestra que dei na UNESP, ocasião em
que já tinha visitado este lixão, praticamente num momento em que a fase
operacional encetava os primeiros passos. Mas não é o único caso aberrante.
Note-se que o único aterro sanitário em operação na região, situado na cidade
de Presidente Venceslau, é um verdadeiro filme de terror. Um jovem pesquisador
de resíduos da região, o engenheiro Lucas Osco, filmou neste “aterro sanitário”
algo que eu nunca vi: um autêntico gêiser de chorume. Uma coisa inacreditável.
Mais incrível ainda, no que comprova o cinismo descarado dos gestores
municipais e dos órgãos ambientais, este verdadeiro lixão é, nas narrativas
institucionais, considerado referência regional em disposição final de
resíduos. E insisto em lembrar que se trata oficialmente de um aterro
sanitário. Imagina se não fosse. Assim, seguramente a situação regional
explicita contrastes que estruturalmente conectam o Oeste Paulista a um padrão,
digamos assim, nacional, marcado por cidades modernas adereçadas com o que há
de discrepante em conjunturas de atraso socioeconômico e de controle
desagregador perpetrado pelo aparato de Estado. Todavia, marcado por fortes
especificidades, as quais se associam a um variado leque de ambiguidades e
contradições, expressão de vários dos obstáculos que a gestão do lixo enfrenta
em todo o país.
IHU On-Line – Em que sentido
o Oeste Paulista seria demonstrativo do problema nacional dos lixões?
Maurício Waldman – De vários
modos, a começar pelo fato de que não existem neste mundo dois lixões iguais.
Durante minha carreira como lixólogo, visitei 63 lixões, inclusive no exterior.
Isto até agora. Mas o suficiente para dizer sem pestanejar que cada lixão é
diferente de qualquer outro. Em visitas técnicas aos lixões do Oeste Paulista,
chamaram-me a atenção vários detalhes, desde a utilização de tração animal nas
carroças dos catadores, inexistentes nos grandes centros brasileiros em virtude
da proibição de circulação de cavalos e muares nas ruas e logradouros públicos
até a presença de esqueletos de fauna silvestre no meio dos monturos, resíduos
da caça ilegal. Ao mesmo tempo, no Lixão de Pirapozinho, também no Oeste
Paulista, eis que em meio a uma carcaça de tatu-bola e sabugos de milho,
encontro um emaranhado de fios de computador e garrafas de vodka importada,
claro sinal dos vínculos de um universo espacial específico com a globalização,
regrada por formas de inserção desigual na economia estadual.
Ao mesmo tempo, mantive
conversas com os trabalhadores dos lixões e indaguei sobre o preço dos
materiais recicláveis. Fácil constatar que a remuneração do material recuperado
era menor do que nas áreas concentradoras de capital. Este seria um dos muitos
dados que exemplificam as trocas desiguais que regem a economia brasileira como
um todo, que no caso do Oeste Paulista calçam uma abdução permanentemente da
renda regional, encaminhada para os polos urbanos mais importantes, tais como a
capital paulista. Trata-se de um movimento geográfico, de uma moldura econômica
e de tratos culturais a demonstrar a diversidade de problemáticas evidenciadas
pelos lixões, fato que infelizmente não está claro de modo algum para a imensa
maioria dos acadêmicos, inclusive os da própria região e os que pesquisam os
resíduos do Oeste Paulista, que teimam em repetir fórmulas divorciadas da vida
regional. Um dos múltiplos impedimentos, inadequações e agravos que pavimentam
a perpetuação do modelo nacional capenga de gestão do lixo.
IHU On-Line – Quais são as
dificuldades de erradicar os lixões num país como o Brasil e de aplicar a
Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS?
Maurício Waldman – Entenda-se
antes de tudo que a gestão do lixo, até por estatuto legal, é uma atribuição do
Estado, daí que centrarmos nossas atenções no vai e vem da política é
essencial. Isto posto, temos que no Brasil a juridicidade das legislações não
constitui uma factualidade a priori, com o que comumente os procedimentos
omissivos, em especial dos poderes públicos, podem simplesmente revogar a
vigência das leis. Neste sentido a Lei nº 10.635 é uma das muitas legislações
brasileiras que “não pegaram”. A principal medida inserida na lei, a
erradicação dos lixões — uma determinação central da PNRS e prevista para
acontecer em agosto de 2014 —, foi sumariamente postergada em julho de 2015. O
dispositivo legal que previa a data para fechar estas instalações foi
prorrogado pelo Senado brasileiro para ser levado a cabo [teoricamente] apenas
em junho de 2021. Alegou-se, para tanto, a existência de obstáculos
administrativos e financeiros.
Mesmo metrópoles ricas, como
Brasília, mantêm lixões em funcionamento, inclusive o famoso lixão Estrutural,
situado a apenas 15 quilômetros do Planalto.
Nas considerações da Senadora
Vanessa Grazziotin (PC do B), relatora do Projeto de Lei em favor da
prorrogação, a PNRS não teria sido “realista”, em especial por prever um prazo
que no seu entendimento era demasiado “exíguo” para que os municípios, em
particular os menores e mais carentes, assumissem tal responsabilidade. Isto a
despeito de que mesmo metrópoles ricas, como Brasília, mantêm lixões em
funcionamento, inclusive o famoso lixão Estrutural, situado a apenas 15 km do
Planalto. Neste particular, alerte-se que, nos momentos em que a aplicação da
legislação era brutalizada, parecer da Confederação Nacional dos Municípios –
CNM indicava que 61,7% dos municípios não se adequavam às exigências da PNRS.
Note-se que apesar do indecente volume de verbas que os SLU gulosamente
devoram, não faltaram alegações por parte dos representantes municipais de que
a PNRS seria inviável e impossível de ser cumprida. Contudo, ao menos em termos
do que a vontade política destes gestores tem demonstrado, afirmações como
estas seriam absolutamente credíveis. No final das contas, um cálculo simples
revelaria que, na hipótese de a média anual de encerramento dos lixões em
operação ser mantida no ritmo do último quinquênio, o país somente poderia
estar livre dos lixões em 150 anos.
IHU On-Line – Dado que os
municípios não conseguiram pôr em prática a determinação da PNRS de erradicar
os lixões até 2016, como avalia a prorrogação do fim dos lixões para 2021?
Maurício Waldman – O cenário
que se descortina é dramático. Uma vez que o fechamento dos lixões foi
sepultado pela conduta omissiva dos municípios, sem dúvida alguma uma das
principais metas da PNRS, torna-se perfeitamente factível entender que os
problemas relacionados à gestão dos resíduos sólidos se agravem ainda mais nos
próximos anos, inclusive com prejuízos para a implantação da compostagem,
emperramento dos serviços de CSL, maior morosidade nas negociações dos sistemas
de logística reversa, ampliação de municípios em dissintonia com a PNRS,
criação de novos lixões e persistência dos agravos que pesam sobre os catadores
e suas entidades. Estes prognósticos ganham coloração mais sombria quando se
sabe que, entre 2010 e 2014 – período em que a PNRS em tese começou a ser
aplicada -, a geração de refugos no Brasil cresceu 10,36%.
Presumivelmente, ninguém pode
prever o que está por acontecer e, tampouco, como se tornará exequível
gerenciar a multiplicação de montanhas de lixo e os desdobramentos perversos de
uma gestão irresponsável e contrária aos interesses nacionais. Com estes múltiplos
dados desabonadores à mão, como que respaldadas por sentimentos de revolta e de
frustração, duas indagações se desenhariam na mente sem pedir licença: Quem na
época do lançamento da PNRS acreditou que, de fato, a lei “pegaria”? E hoje,
quem acredita que ela “pegará” em 2021? (ecodebate)
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