Em quase 10 anos de colaboração
no Portal EcoDebate, chego ao artigo de número mil. Durante esta década de
reflexões sobre os temas de população, desenvolvimento e meio ambiente foi
ficando claro que são enormes e diversificados os desafios para a redução da
pobreza, para a promoção da equidade social em todas as suas formas e para
garantir a justiça e a sustentabilidade ambiental. Porém, há que se destacar
dois problemas urgentes – tipo espadas de Dâmocles – que se constituem em duas
ameaças básicas à continuidade dos avanços civilizacionais e à biodiversidade
da vida na Terra: as mudanças climáticas e o ecocídio.
Estas duas ameaças não brotaram
do nada, mas, sim, foram sendo gestadas nos últimos 250 anos, desde o início da
Revolução Industrial e Energética surgida na segunda metade do século XVIII. O
gráfico acima mostra o impressionante crescimento demoeconômico ocorrido entre
1769 e 2019. O ano de 1769 é considerado um marco, pois foi quando James Watt
patenteou a máquina a vapor, dando início ao uso em larga escala dos
combustíveis fósseis (na época carvão mineral).
Em 250 anos, a economia global
cresceu 134 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita
cresceu 14,6 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o de todo o
período dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. Mas
todo o crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas do encolhimento e
empobrecimento do meio ambiente. O conjunto das atividades antrópicas
ultrapassou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica da humanidade
extrapolou a Biocapacidade do Planeta. A dívida do ser humano com a natureza
cresce a cada dia e a degradação ambiental pode, no limite, destruir a base
ecológica que sustenta a economia e a sobrevivência humana.
Artigo de Steffen et. al
(2015), que atualizou a metodologia e os dados das fronteiras planetárias,
mostrou que quatro das nove fronteiras já foram ultrapassadas: Mudanças
climáticas; Perda da biodiversidade; Mudança no uso da terra e Fluxos
biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio). Duas delas, a Mudança climática e a
Perda de biodiversidade, são o que os autores chamam de “limites fundamentais”
e tem o potencial para conduzir o Sistema Terra a um novo estado que pode levar
a civilização ao colapso. Vejamos as duas grandes ameaças que pairam sobre a
civilização e a vida na Terra.
Mudanças climáticas e aquecimento global
O florescimento da civilização
humana ocorreu nos últimos 12 mil anos e só foi possível devido à estabilidade
climática prevalecente no Holoceno. Em 12 milênios, a variação climática ficou
restrita à 0,5ºC, para cima ou para baixo, em relação à média do século XX. O
gráfico abaixo mostra, contudo, que o mundo ruma para a temperatura mais alta
dos últimos 5 milhões de anos. O Antropoceno está rompendo com o equilíbrio
climático que houve no Holoceno e que possibilitou o florescimento da
civilização humana.
Os últimos 5 anos (2014 a 2018)
foram os mais quentes já registrados (2019, provavelmente, será o terceiro ano
mais quente). Se o aquecimento global continuar no ritmo atual, a civilização
estará no caminho de uma catástrofe. Como mostrou o jornalista David
Wallace-Wells, a Terra pode se tornar um lugar inabitável ou terrivelmente
inóspito.
Um estudo das universidades de
New South Wales, na Austrália, e de Purdue, nos Estados Unidos, publicado na
“Proceedings of the National Academy of Sciences”, em 2010, afirma um aumento
de apenas 4ºC medidos por um termômetro úmido levaria metade da população
mundial a enfrentar um calor equivalente a máximas registradas em poucos locais
atualmente. Embora seja improvável que isso aconteça ainda neste século, é
possível que já no próximo, várias regiões estejam sob calor intolerável para
humanos e outros mamíferos. O estudo também ressalta que o calor já é uma das
principais causas de morte por fenômenos naturais e que muitos acreditam,
erroneamente, que a humanidade pode simplesmente se adaptar a temperaturas mais
altas. A fisiologia humana não suporta temperaturas acima de 50ºC. Ou seja, o
aquecimento global pode deixar até metade do planeta inabitável.
Acompanhando o aumento médio da
temperatura global, as ondas de calor ficaram, cada vez mais, frequentes. A
duração, a frequência e a intensidade das mesmas provavelmente aumentarão na
maioria das zonas terrestres ao longo deste século antecipando o “cenário de
Mad Max” em diversas regiões do Planeta. Hoje em dia, já dá para notar o
aumento da intensidade e da frequência de furacões, tufões e ciclones, além de
tempestades e tornados que devastam o território e a qualidade de vida de
milhões de pessoas.
A última vez que a temperatura
ultrapassou os 2ºC, no Planeta, foi no período Eemiano (há cerca de 120 mil
anos) e provocou o aumento do nível dos oceanos em algo entre 5 e 9 metros.
Tudo indica que a temperatura no século XXI vai ultrapassar os 2ºC em relação
ao período pré-industrial. Os prejuízos poderão ser incalculáveis tanto nas
áreas urbanas, quanto rurais. A fome pode voltar a assustar grande parte da
população mundial.
E
o mais grave é que uma Terra inabitável e inóspita levará a autodestruição
humana, mas também pode levar junto milhões de espécies que nada tem a ver com
os erros egoísticos dos humanos que se julgam seres superiores e mais
inteligentes. A humanidade pode estar rumando para o suicídio, podendo também
gerar um ecocídio e um holocausto biológico de proporções épicas.
Ecocídio e a 6ª extinção em massa
Existe uma grande desigualdade
entre as espécies da Terra, pois enquanto cresce a população humana, definham
as populações não humanas. Segundo Ron Patterson (2014): “Há 10.000 anos os
seres humanos e seus animais representavam menos de um décimo de um por cento
da biomassa dos vertebrados da terra. Agora, eles são 97%”. A jornalista
Elizabeth Kolbert, no livro The Sixth Extinction, documenta o processo de extinção das espécies que ocorre
com o avanço da civilização.
O Ecocídio é um crime que
acontece contra as espécies animais e vegetais do Planeta. Esse crime se
espalha no mundo em uma escala maciça e a cada dia fica pior. Exatamente por
isto, cresce a consciência de que é preciso mudar o modelo de desenvolvimento
que adota um padrão de produção e consumo danoso para o meio ambiente e que é
responsável pelo aumento da destruição da vida na Terra. Para tanto, é preciso
considerar o Ecocídio um crime contra a paz, um crime contra a natureza e um
crime contra a humanidade e as futuras gerações. O site “Eradicating Ecocide”
considera ser necessário a aprovação de uma lei internacional contra o Ecocídio
para fazer com que os dirigentes de empresas e os chefes de Estado sejam
legalmente responsáveis por proteger a Terra e as espécies não humanas.
O crime do especismo é
equivalente aos crimes de racismo, sexismo, classismo, homofobismo, escravismo,
etc. Recentemente foi criado um site para incentivar a mobilização contra a
discriminação das espécies, definindo o dia 22 de agosto de 2015, como o “Dia
mundial contra o Especismo”. A humanidade ocupa cada vez mais espaço no Planeta
e tem prejudicado de forma danosa todas as demais formas de vida
ecossistêmicas. O ser humano está reincidindo cotidianamente nos crimes do
especismo e do ecocídio. Se a dinâmica demográfica e econômica continuar sufocando
a dinâmica biológica e ecológica a civilização caminhará para o abismo e o
suicídio. Porém, antes de o Antropoceno provocar uma extinção em massa da vida
na Terra é preciso uma ação radical no sentido conter a ganância egoística,
garantir a saúde do meio ambiente e a livre evolução da biodiversidade.
O último Relatório Planeta Vivo
(2018) divulgado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF), mostra que o avanço
da produção e consumo da humanidade tem provocado uma degradação generalizada
dos ecossistemas globais e gerado uma aniquilação da vida selvagem: as
populações de vertebrados silvestres, como mamíferos, pássaros, peixes, répteis
e anfíbios, sofreram uma redução de 60% entre 1970 e 2014.
Confirmando o impacto
devastador das atividades humanas sobre a natureza, a Plataforma
Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na
sigla em inglês), da ONU, mostrou que há 1 milhão de espécies ameaçadas de
extinção. O relatório elaborado nos últimos três anos, e divulgado em maio de 2019,
fez uma avaliação do ecossistema mundial, com base na análise de 15 mil
materiais de referência.
O documento afirma que, embora
a Terra tenha sofrido sempre com as ações dos seres humanos ao longo da
história, nos últimos 50 anos os arranhões se tornaram cicatrizes profundas. A
população mundial dobrou desde 1970, a economia global quadruplicou e o
comércio internacional está dez vezes maior. Para alimentar, vestir e fornecer
energia a este mundo em expansão, florestas foram derrubadas num ritmo surpreendente,
especialmente em áreas tropicais. Entre 1980 e 2000, 100 milhões de hectares de
floresta tropical foram perdidos, principalmente por causa da pecuária na
América do Sul e plantações de palmeira de dendê no sudeste da Ásia.
A situação dos pântanos é ainda
pior – apenas 13% dos que existiam em 1700 estavam conservados no ano 2000. O
aumento dos plásticos nos oceanos é de tal ordem que em um futuro próximo
haverá mais plásticos do que peixes nos oceanos. Portanto, toda a ação humana
está matando mais espécies do que nunca. Cerca de 25% dos animais e plantas se
encontram agora ameaçados.
As tendências globais em
relação às populações de insetos não são conhecidas, mas foram registrados
declínios acelerados em algumas regiões. O desaparecimento das abelhas, por
exemplo, é não só um crime de ecocídio, mas também uma ameaça à própria
alimentação humana, que depende dos polinizadores para viabilizar montantes
crescentes de comida para a população mundial.
Ainda segundo o cientista Will
Steffen (06/06/2019), membro sênior do Centro de Resiliência de Estocolmo,
tratando do aumento da temperatura média da Terra que ultrapassou 1º C, desde
1880, a taxa crescente em que as temperaturas estão subindo só agravam os
problemas na biosfera. Ele diz que a humanidade está erodindo os próprios
fundamentos da economia, afetando os meios de subsistência, a disponibilidade
de alimentos, a segurança, a saúde e qualidade de vida em decorrência de
“sistema econômico predatório” e completa: “Precisamos nos livrar dessa ideia
de recursos, recursos, recursos. Precisamos ser regenerativos por projeto e é
assim que o sistema econômico do século 21 deve funcionar”.
Artigo de Nafeez Ahmed
(03/06/2019), resenha uma análise sobre as mudanças climáticas – escrita por um
ex-executivo de empresa de combustíveis fósseis e apoiada pelo ex-chefe das
forças armadas da Austrália – mostrando que a civilização humana pode entrar em
colapso nas próximas décadas devido à mudança climática. A análise, publicada
pelo Centro Nacional Breakthrough para a Restauração do Clima, um think-tank em
Melbourne, Austrália, descreve as mudanças climáticas como “uma ameaça
existencial de médio prazo à civilização humana”. O documento argumenta que os
“resultados extremamente sérios” das ameaças à segurança, relacionadas ao clima
são, com frequência, muito mais prováveis do que o convencionalmente assumido,
mas quase impossível de quantificar porque “estão fora da experiência humana
dos últimos mil anos”. Na atual trajetória, adverte o relatório, “os sistemas
planetário e humano devem atingir um ‘ponto de não retorno’ até meados do
século, no qual a perspectiva de uma Terra praticamente inabitável leva ao
colapso das nações e da ordem internacional”.
Portanto, o avanço do progresso
humano vai esbarrar em duas barreiras nas próximas décadas, que são as mudanças
climáticas e a perda de biodiversidade. A ideia utópica de uma harmonia entre o
crescimento da população e o desenvolvimento está se transformando em uma
distopia, pois o desenvolvimento sustentável virou um oximoro.
Até 2100 a população mundial
deve atingir mais de 11 bilhões de habitantes. Se o “sistema econômico
hegemônico” (modelo “Extrai-Produz-Descarta” com desigualdade social) conseguir
incluir todas estas pessoas no padrão médio de consumo a demanda por recursos
naturais será enorme e o impacto sobre a degradação do meio ambiente pode ser
irreversível. Se a maioria destas pessoas ficarem de fora das “benesses” do
capitalismo, haverá uma grande revolta social e uma grande disputa entre os
povos do mundo. O fato é que vivemos numa sociedade de risco que gera
negatividades crescentes.
Assim como o desenvolvimento
sustentável se tornou uma contradição em termos, o tripé da sustentabilidade
virou um trilema, segundo Martine e Alves (2015). Uma “Terra estufa” e com
menos biodiversidade será não só um lugar mais triste para se habitar como
poderá ser a Era de um colapso civilizacional e de um apocalipse ambiental.
(ecodebate)
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